Como hoje é um dia importante para a Madeira pré-publico aqui uma entrada que preparei para o Dicionário Enciclopédico da Madeira (dirigido por José Eduardo Franco). Pouca gente saberá o papel que a Madeira teve como entreposto na exploração da Antárctida (na foto onorueguês Amundsen e os seus companheiros, na primeira expedição a chegar ao pólo sul):
Se os séculos
XVIII e XIX tinham assistido à concretização de vários projectos de
circum-navegação do globo, que se interessaram particularmente pela realização
de descobertas no Oceano Pacífico, o início do século XX assistiu à exploração
das regiões polares, tanto no norte como no sul do globo terrestre. A 6 de Abril de 1909
o engenheiro da Marinha norte-americana
e explorador Robert Edwin Peary (1856-1920) terá chegado
ao pólo norte (de facto, ficou, de acordo com o nosso conhecimento actual,
a cerca de 100 km desse sítio e os
primeiros seres humanos só atingiram o
pólo norte em 1968), mas a corrida ao
pólo sul revelou-se bem mais dramática. Se há fortes dúvidas sobre a primazia de
Peary a chegar ao pólo norte, já não as há no que respeita ao pólo sul. Ele foi
alcançado em 14 de Dezembro de 1911 pelo norueguês
Roald Amundsen (1872-1928), que bateu
por escassos 35 dias o inglês Robert Falcon Scott (1868-1912),
que, com os seus companheiros,
morreria de exaustão e frio durante a sua viagem de regresso. Ora, tanto
Amundsen como Scott passaram, a caminho do Sul, pelo Funchal. Mais: foi no
Funchal, a 9 de Setembro de 1910, que Amundsen, que tinha anunciado a sua
partida para as águas do Árctico (dando a volta ao continente americano pelo
cabo Horn), decidiu inopinadamente partir em direcção ao pólo sul, tentando
bater Scott. Amundsen, que foi mais tarde, em 12 de Maio de 1926, o primeiro
a atingir o pólo norte por meios aéreos
(com o capitão italiano Umberto Nobile, 1885-1978, usando o dirigível Norge), teve um fim trágico tal como
Scott: pereceu no Árctico em 1928, quando o seu hidroavião desapareceu sem
deixar rasto, numa expedição de socorro ao Nobile, capitão do dirigível Italia, que sofreu um acidente numa
expedição ao pólo norte. Amundsen foi, portanto, o primeiro homem a estar nos
dois pólos da Terra.
Foram
várias as viagens de reconhecimento da
Antárctida, antes da corrida final decidida ao sprint entre Amundsen e Scott, tendo algumas delas passado pela ilha
da Madeira. Em Julho de 1902 passou
no Funchal o navio Morning, comandado por
William Colbec, capitão da Marinha Real Inglesa, que rumava aos gelos antárcticos,
com o intuito de ajudar o HMS Discovery, navio de Scott, que na primeira expedição deste à
Antárctica tinha ficado aprisionado nos gelos do estreito de McMurdo, que
separa a ilha de Ross da Antárctica continental. A expedição Discovery (1901–1904) foi um
empreendimento britânico tanto de exploração como científico que teve o
patrocínio conjunto da Royal Geographical Society e da Royal Society. A sua meta
era o pólo sul, mas a marcha realizada por Scott e outros dois famosos
exploradores polares, o irlandês Ernest Shackleton (1874 -1922) e o inglês Edward
Wilson (1872-1912), só conseguiu atingir a latitude de 82° 17′ S, a cerca de
850 km do pólo, um recorde na época. A difícil marcha de volta provocaria um
colapso a Shackleton, apanhado pelo escorbuto. No final da expedição, foi
preciso a ajuda de dois navios de resgate para libertar o Discovery, sendo um deles o referido Morning e o outro o Terra
Nova, que haveria de dar o nome à segunda expedição antárctica de Scott.
A 10
de setembro de 1903 passou
pelo Funchal o vapor Le Français, tendo
a bordo o navegador, médico e cientista francês
Jean-Baptiste Charcot (1867–1936), em viagem para a Antárctica. Charcot, filho
do famoso neurologista Jean-Martin Charcot, explorou, no comando da Expedição
Antárctica Francesa, a costa oeste da Terra de Graham, parte da Península Antárctica,
entre 1904 e 1907. À semelhança de
outros exploradores polares, Charcot teve um fim infeliz: morreu quando
o seu navio Pourquoi-Pas? foi
destroçado por uma violenta tempestade ao largo da Islândia no ano de 1936.
A
segunda expedição de Scott, a Terra Nova,
ocorreu de 1910 a 1913. No seu plano o
comandante dizia que o seu "principal objetivo é alcançar o pólo sul, e
garantir para o Império Britânico a honra desta conquista." Scott não
sabia que iria participar numa corrida até em 12 de Outubro de 1910 ter lido um
telegrama, enviado por Amundsen para Melbourne, na Austrália, a 9 de Setembro de
1910. Foi já na sua base na ilha de Ross que Scott soube que Amundsen estava
acampado com a sua equipa, e um largo grupo de cães trazidos da Gronelândia, na
baía das Baleias, a cerca de 500 km a leste (e mais perto do pólo sul). Scott não
fez qualquer desvio dos seus planos, que consistiam em viajar por uma rota
conhecida, que já tinha sido experimentada por Shackleton em 1907. A marcha
para sul começou a 1 de Novembro de 1911, com a ajuda de um conjunto de vários
trenós carregados, puxados por vários meios: a distância total a percorrer
seriam 1353 km. No dia 4 de Janeiro de 1912, à latitude 87° 34′ S, Scott
anunciou quais seriam os quatro homens que com ele iam tentar alcançar o pólo
austral: Edward Wilson (que era médico e tinha estado com Scott na expedição
anterior), Lawrence Oates, Henry Bowers e Edgar Evans. Este grupo chegou, de
facto, ao pólo sul no dia 17 de Janeiro de 1912, mas, para sua surpresa e
desilusão, encontrou a bandeira norueguesa e a tenda que Amundsen tinha erguido
35 dias antes. O regresso, em condições muito difíceis, não chegou a ser consumado:
os corpos gelados do grupo final formado por três exploradores (Oates já tinha
ficado para trás, desaparecido no gelo) foram encontrados meses depois da data
da morte, que deve ter ocorrido a 29 de Março de 1912, a avaliar pelo diário de
Scott que estava ao seu lado na tenda que lhe serviu de túmulo
Se
a passagem de Scott pela Madeira, foi normal, tendo sido efectuado o necessário
reabastecimento para a viagem de longo curso que se seguia, a paragem de
Amundsen na Madeira está, como foi dito, associada a uma viragem que se
afigurou decisiva na corrida ao pólo sul. Os planos de Amundsen
eram no sentido de alcançar o pólo norte. Com a notícia divulgada de que Robert
Peary teria chegado a esse pólo (e, pouco antes dele, o explorador
norte-americano Frederick Cook, 1865-1940, num feito que, tal como o de Peary,
não pôde ser confirmado), mudou de
ideias. No seu navio Fram, que era famoso por já antes ter participado
noutras viagens no Árctico, partiu da Escandinávia em 1910. De facto, o navio de Amundsen tinha sido preparado para ir
para norte, e a decisão de ir para sul só foi tomada pelo próprio na ilha da Madeira,
tendo sido anunciada primeiro aos tripulantes, que a aceitaram unanimemente, e
depois por telegrama lacónico (“Estou a ir para sul”, ) enviado aos seus rivais
ingleses. A imprensa deu uma notícia falsa que, com a mudança de planos, se
tornou verdadeira. Em 7 de Setembro de 1910, o Diário de Notícias da Madeira, numa breve notícia intitulada “Ao
pólo-sul”, informava: "Fundeou ontem no nosso porto [do Funchal], o
navio-explorador norueguês Fram,
procedente de Christiania [antigo nome de Oslo], em 20 dias de viagem,
conduzindo uma expedição scientífica ao pólo-sul." Esta notícia foi
verdadeiramente extraordinária, por se ter revelado premonitória dos factos
reais: o jornal não podia nessa altura saber que o Fram iria para o pólo sul, tendo dado essa informação por mera
confusão. O certo é que nem os correspondentes britânicos na ilha da Madeira se
aperceberam da grande novidade, ainda que involuntária, contida na notícia.
Houve já quem considerasse esse notícia “a maior ‘cacha’ de sempre da imprensa
portuguesa”. Não foi fácil para Amundsen tomar essa decisão pois consideráveis fundos, em boa parte públicos, tinham-lhe
sido concedidos para ir para o Árctico e não para o Antárctico. Em carta ao seu
armador, explicou as razões da mudança, pedindo desculpa. Informou, também por
carta, o rei norueguês. A notícia foi de início mal recebida no seu país natal.
A concorrência aos ingleses não foi, de início, particularmente bem-vista, na
Noruega e na Europa em geral, até porque Scott era mundialmente conhecido.
O
ambicioso Amundsen foi mais bem sucedido porque se revelou mais pragmático e profissional do que Scott, como mostram os
seus diários: atingiu o pólo sul, num grupo onde também estavam Olav Bjaaland,
Helmer Hanssen, Sverre Hassel e Oscar Wisting, usando trenós puxados por cães,
uma técnica que ele aprendeu em terras árcticas (este terá sido um dos segredos
do seu êxito). Em contraste com Scott, que confiou numa rota conhecida, Amundsen
teve que procurar o seu próprio caminho atravessando os difíceis Montes
Transantárcticos para penetrar no extenso planalto antárctico e, depois da sua
chegada ao extremo sul da Terra, conseguiu retornar ao acampamento-base, após ter
percorrido durante três meses, no trajecto de ida e volta, mais de 3000 km em
condições meteorológicas bastante adversas.
Shackleton recuperou
e voltou ao activo em explorações antárcticas. Para além de ter participado como
oficial subalterno na primeira expedição de Scott, Shackleton liderou três
expedições britânicas à Antárctida. Regressou aí em 1907 à frente da expedição
Antárctica Britânica de 1907-1909 ou expedição Nimrod, do nome do navio. Nesse quadro, ele e três companheiros
efectuaram, em Janeiro de 1909, uma marcha para sul que estabeleceu uma nova
marca de latitude sul - 88° 23′ S, a apenas
180 km do pólo sul. Depois da corrida ao pólo sul ter terminado, Shackleton dirigiu
a sua atenção para o que considerava ser o último objectivo da exploração antárctida:
atravessar o continente gelado de mar a mar, passando pelo pólo sul. Preparou então
a expedição que foi chamada Transantárctica Imperial (1914–1917). Entre 21 e 25 de Agosto de 1914 o navio Endurance, sob o comando do capitão
neozelandês Frank Arthur Worsley (1872-1943), parou na Madeira, na sua rota para
o pólo sul, com o irlandês Ernest Henry
Shackleton a bordo. que não correu bem, por o navio ter ficado aprisionado
no gelo, ter sido esmagado e finalmente afundado. O salvamento dos náufragos,
depois de algumas aventuras, só foi feito in-extremis,
sem terem ocorrido perdas humanas, graças à grande perícia e coragem de Worsley.
Shackleton regressaria finalmente em 1921 à Antárctida, com o intento de realizar
um programa científico. Os navios Quest,
de novo com Worsley a bordo, e Dans pararam
na Madeira a de 16 a 19 de Outubro de
1921. Ainda antes de a expedição ter iniciado os seus trabalhos, Shackleton morreu
a 5 de Janeiro de 1922 de ataque cardíaco quando o Quest estava ancorado na Geórgia do Sul, uma ilha no sul do
Pacífico descoberta por James Cook, na sua segunda viagem de circum-navegação, tendo
sido aí sepultado.
Em
resumo: todos os três grandes exploradores do pólo sul - Samuel Amundsen,
Robert Scott e Ernest Shackleton - passaram pela Madeira, mais especificamente
pelo porto do Funchal, a caminho dos mares do sul. Os três morreram durante o
seu trabalho de exploração nas regiões polares. Podemos falar de “idade heróica”
da exploração polar e dizer que a Madeira esteve no caminho da exploração, ainda que apenas
como ponto de reabastecimento entre o Norte da Europa e o extremo sul do mundo.
As
expedições polares, para além do pioneirismo na exploração, foram empreendimentos
científicos. No século XX, houve uma outra famosa expedição científica, que rumou
não ao pólo sul, mas sim à linha do equador, e que se destinava a observar um
eclipse solar total no arquipélago de S.
Tomé e Príncipe e no Brasil, a fim de estar a teoria da relatividade geral de
Albert Einstein (1867-1955). Também esta expedição, realizada no HMS Anselm, passou a 8 de Março de 1919 pela Madeira, como
posto intermédio entre a Inglaterra e a latitude equatorial, dividindo-se aí a
expedição numa parte que rumou a Sobral, Brasil, e noutra parte, que rumou, a
bordo do paquete Portugal, após
algumas semanas de espera, à ilha do Príncipe, então uma colónia portuguesa. O
chefe da expedição ao Príncipe era o famoso astrofísico inglês Arthur Eddington
(1882-1944) e o resultado das
observações de 27 de Maio de 1919 foi conclusivo: Einstein estava certo pois os
raios de estrelas que no campo de visão estavam perto do Sol se dobravam na
medida certa ao passar perto do disco solar. Este foi, sem dúvida, um dos
maiores eventos científicos do século XX.
Referências
- Amundsen, Roald; Nilsen, Thorvald; Prestrud, Kristian; Chater, A.G.
(trad.), (1976) [1912]. “The South Pole: An Account of the Norwegian expedition
in the Fram, 1910–12” (Vols. I and II). London: C. Hurst & Company. Original
publicado em 1912 por John Murray, Londres.
- Francisco,
Luís, “Diário de dois rivais, Pólo Sul:
rivalidade entre Amundsen e Scott através dos seus diários”, Público,
4 de Janeiro de 2011,
-Mota, Elsa; Simões, Ana; e Crawford, Paulo,
“Eddington’s expedition to Principe and the reaction os the Portugueses
astronomers (1917-1925)”, The British
Journal of the History of Science 42(2) 245-273 (2009)
Sem comentários:
Enviar um comentário