domingo, 29 de setembro de 2019

A MADEIRA NA ROTA DAS GRANDES VIAGENS DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO


A propósito da 1.ª viagem de circum-navegação de Magalhães - Elcano deixo aqui o meu artigo sobre a madeira nas rotas das viagens de circum-navegação, que vai aparecer no Dicionário Enciclopédico da Madeira (coordenação de José Eduardo Franco): 

O navegador português Fernão de Magalhães (1480-1521) não passou pelo arquipélago da Madeira, mas sim pelo arquipélago das Canárias, a 26 de Setembro de 1519, quando, após a sua partida de Sevilha, empreendeu, entre 1519 e 1521, o que viria a ser, embora involuntariamente, a primeira viagem de circum-navegação ao globo terrestre. A viagem, como é bem sabido, foi completada por Sebastian del Cano (1476-1526) desde as Filipinas, onde Magalhães pereceu, até ao regresso a Espanha. O facto explica-se por se tratar de uma expedição espanhola, embora comandada por um português. O primeiro navegador a completar uma viagem marítima à volta da Terra (1577-1580) foi Francis Drake (c. 1540-1596), o corsário inglês ao serviço de Isabel I, e também ele não passou pela Madeira.

No entanto, a Madeira, esteve, no século XVIII, na rota de duas grandes viagens de circum-navegação, com carácter científico,  ambas capitaneadas pelo navegador inglês James Cook (1728-1779) (Figura 1): a  primeira  realizada entre 1768 e 1771 no navio HMS Endeavour e a  segunda entre 1772 e 1775 no navio HMS Resolution (acompanhado pelo HMS Adventure).  A terceira viagem de Cook, realizada também no HMS Resolution, entre  1776 e 1779, não passou pela Madeira, tendo antes parado em Tenerife, nas Canárias. Não foi completada pelo grande navegador uma vez que ele morreu no Pacífico às mãos de indígenas tal como tinha acontecido com Magalhães. O conjunto das três viagens asseguram a Cook um lugar único na história da exploração: foi ele quem mais terras descobriu no grande Oceano Pacífico.

Cook foi, em 1768, o comandante escolhido pelo Almirantado britânico para levar um grupo de distintos membros da Royal Society ao Taiti, com o fito principal de observar o trânsito de Vénus, que  tinha sido previsto para 1769, naquilo que constituiu a primeira expedição científica ao Pacífico. Esse evento astronómico, relativamente raro, permitiria determinar com maior precisão a distância entre a Terra e o Sol. Participaram na expedição, que partiu de Plymouth, na Inglaterra, a 26 de Agosto de 1768, e, como primeira paragem, atracou no  Funchal a 13 de Setembro de 1768, o famosíssimo naturalista britânico  Joseph Banks (1743-1820), que foi um dos fundadores dos Royal Botanical gardesn em Kew e haveria mais tarde de presidir à Royal Society ao longo de mais de 41 anos, e outro naturalista também famoso, o sueco Daniel Solander (1733-1782), um prosélito do seu compatriota Carl Linnaeus (1707-1778) que trabalhou em Londres, designadamente catalogando as colecções de História Natural do Museu Britânico. Contrariando alguma desconfianças das autoridades portuguesas, os dois encabeçaram o grupo que empreendeu um rápido reconhecimento botânico da ilha, colectando mais de duas centenas de espécies botânicas (entre as quais o que haveria de ser conhecido por buganvília). Após conveniente reabastecimento do navio (com água, vegetais e carne de vaca, não esquecendo 3000 galões de vinho) e depois da substituição de um marinheiro morto num acidente com uma âncora, ele zarpou rumo ao Sul.  Apesar de haver de haver disputa sobre quem foi o descobridor da Austrália, é incontroverso que Cook foi o primeiro a contactar com indígenas australianos nesta viagem. Banques e Solander foram, assim, os primeiros naturalistas a visitar a Austrália, identificando novas espécies para a ciência como o canguru.

Entre 29 e 31 julho de 1772 James Cook voltaria ao Funchal, sendo desta vez acompanhado, em vez de Banks (que colocou exigências que o Almirantado não aceitou) e Solander, dos naturalistas ingleses  Johann Reinhold  Forster  (1729-1798) e o seu filho Georg Forster (1754-1794), ilustrador; os dois efectuaram recolhas botânicas na madeira e plantaram uma árvore na Quinta do Vale Formoso, propriedade de Michael Grabham. Do Funchal Cook escreveu ao Almirantado elogiando as qualidades náuticas da sua embarcação. O navio foi reabastecido com água, cebolas e carne de vaca. A 17 de Janeiro de 1773, o HMS Resolution foi o primeiro navio a atravessar o Círculo Polar Antárctico, tendo chegado à latitude de 71º 10’ sul, mostrando que um grande continente no sul do hemisfério (a terra australis) que aparecia nalguns mapas a fechar o atlântico e o Pacífico não passava de um mito. Este reconhecimento era de resto um dos principais objectivos da viagem.

De acordo com os botânicos J. Francisco-Ortegas et al., que estudaram recentemente as contribuições científicas que advieram das paragens de Cook na Madeira, estas permitiram a recolha de plantas madeirenses que foram incluídas em herbários britânicos, uma flora da Madeira preparada por Solander que não foi publicada, as primeiras pinturas a cores das plantas da Madeira feitas pelo desenhador Sydney Parkinson (c. 1710-1771) que ia a bordo na primeira viagem e viria a falecer durante o percurso,  a descrição de novas espécies da Madeira publicadas pelos Forsters (1775) e  a primeira visão de conjunto das plantas das ilhas da Macarronésia feita por George Forster (1789). Não é pouca coisa.

O empreendimento de circum-navegação seguinte que passou pelo Funchal foi capitaneado pelo francês Jean-François Galaup, conde de la Pérouse (ou de Lapérouse) (1741-1788) (Figura 2). Esse navegador foi escolhido pelo rei Luís XVI para, no comando de uma grande expedição francesa, prosseguir objectivos políticos e científicos, complementando as descobertas de Cook no Pacífico, Os dois navios de La Pérouse, o Coussole e  Astrolabe, com numerosos cientistas a bordo, partidos de Brest, passaram no porto do Funchal entre 13 e 16 de Agosto de 1741. Pormenor curioso:  candidatou-se a um lugar no navio um jovem, então com 16 anos, de seu nome Napoleão Bonaparte, que não foi escolhido (muito mais tarde, a 22 de Agosto de 1815 chegaria ao Funchal um navio inglês conduzindo o ex-imperador francês ao exílio na ilha de  Santa Helena). A expedição fez um longo périplo pelo planeta, que incluiu Macau, mas desapareceu por completo no mar em 1788 em Vanikoro, Ilhas Salomão, no Pacífico. Em 2005 foram descobertos restos de um naufrágio que inequivocamente pertenciam à expedição de la Pérouse.

Já no século XIX, teve lugar uma uma outra famosa viagem científica à volta do mundo, que não passou pelo Funchal: foi a do navio  HMS Beagle (1831-1836), comandado pelo inglês Robert  FitzRoy (1905-1865), a bordo do qual o jovem Charles Darwin (1809-1882) fez a sua aprendizagem de naturalista que lhe permitiria afirmar-se como um dos maiores cientistas de sempre. Apesar de Darwin nunca a ter sido visitado, a Madeira aparece mais vezes referida na Origem das Espécies  (1859) do que as ilhas Galápagos, o habitat dos tentilhões cujos bicos serviram para abonar a teoria da evolução. Para isso muito valeram as explorações realizadas por naturalistas britânicos e de outros países, como aqueles que participaram nas duas expedições de Cook. Darwin, que se interessava pelas ilhas como “laboratórios de evolução”,  tinha um bom conhecimento da literatura naturalista, e as visitas feitas por outros à Madeira foram para ele extremamente úteis.



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Figura 1 Itinerários das três expedições de circum-navegação de James-Cook: a primeira a vermelho, a segunda a verde e a terceira a azul. Só as primeiras duas é que passaram pela Madeira.


Figura 2  Itinerário  da viagem de circum-navegação de La Pérouse.

Referências
·         Beaglehole, J.C., ed. (1968). The Journals of Captain James Cook on His Voyages of Discovery, vol. I:The Voyage of the Endeavour 1768–1771. Cambridge University Press.
·          Beaglehole, J.C.,ed. (1959). The Journals of Captain James Cook on His Voyages of Discovery II, vol. I:The Voyage of the Resolution and Adventure 1772–1775. Cambridge University Press. 
·         Darwin, Charles (2011, original 1839). A Viagem do Beagle, Lisboa: Relógio d´Água.
·         Darwin, Charles (2011, original 1859): A Origem das Espécies, Lisboa: verbo
·         Hough, Richard (1995). Captain James Cook. Hodder and Stoughton. 
·         Jean-François de Lapérouse, ‘’Voyage autour du monde sur l’Astrolabe et la Boussole’’, Paris : La Découverte / Poche, 2005.
·         Vieira, Alberto,Viajantes, in “Aprender Madeira”. http://aprendermadeira.net/viajantes
·         Francisco Ortega, J., “The botany of the three voyages of Captain James Cook in Macaronesia: an introduction”, Revista de la Academia Canaria de Ciencias, Vol. XXVII, 357-410 (Dez. 2015).

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