segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Política de identidades”, uma regressão civilizacional

Artigo de Guilherme Valente que saiu no Público de 17/2: 

Uma das responsabilidades definidoras do Estado liberal é a preocupação com as minorias, a sua integração, valorização e representatividade. O caso recente do bairro Jamaica anuncia o que virá se entregarmos esse espaço de imperativa intervenção política, social, cívica e humana a movimentos racistas e à sua instrumentalização por forças políticas iliberais.

Inventando racismos, racializando o que nada tem a ver com a côr de pele, esse activismo dito anti-racista, de negros e de brancos, semeia a animosidade da população branca menos informada contra a minoria negra pobre, não hesitando em sacrificar aos seus desígnios inconfessáveis a gente fragilizada fugida de lugares de horror que procura paz, esperança e futuro no nosso país.

Fechanda nos guetos, impedem a valorização e integração a que aspira. O objectivo é promover o conflito entre brancos e negros. Que crescerá exponencialmente se o Governo não assumir a intervenção justa e os partidos políticos e a sociedade não se mobilizarem para esse objectivo e ideal humano exaltante.

A propósito da agitação do bairro Jamaica, aproveitamento da cívica intervenção da Polícia, convocada por uma senhora residente no bairro, como ela própria declarou, JMT lembra numa crónica notável (Público, 25/1/19), o grande Martin Luther King, quando disse “eu tenho o sonho de que as minhas quatro crianças irão um dia viver numa nação onde não serão julgadas pela cor da pele, mas pela qualidade do seu carácter”.

O racismo contra o qual ele lutava não é o mesmo “racismo” contra o qual luta o expatriado Mamadou Ba. Luther King colocava o problema ao nível dos indivíduos – a cor não deveria ser critério na relação entre pessoas. Mamadou Ba coloca a questão ao nível dos grupos: a cor da pele, que antes se desejava abolir como critério, precisa agora de regressar, porque é ela que diferencia os grupos para MB desejavelmente em conflito.

O que também começa a chegar a Portugal é emergência de um novo paradigma de acção política, a substituição das causas sociais pela chamada “política de identidades”. Novidade que especialmente a esquerda totalitária trotskista tem cavalgado, alimenta e tenta comandar. “Política de identidades” para a qual também a esquerda liberal tem começado a deslizar. Foi esse deslizamento que determinou a derrota de Hilary Clinton nos Estados Unidos e está a levar o PS francês à insignificância.

Na sondagem mais recente do IFOP relativamente às próximas eleições europeias, o PSF surgia com 6% das intenções de voto. A substimação das causas sociais, o esquecimento das necessidades e expectativas da população que, negra ou branca, hetero ou trans ou homossexual, etc., etc., quer ser PESSOA, o imperativo de uma mais justa distribuição da riqueza, de uma generalizada igualdade de oportunidades, o abandono, preparado pela devastação na escola de novo em força, do universalismo e do humanismo, enfim, estão na origem da actual fragilidade da democracia, criando terreno para a ameaça iliberal em curso.

Fruto das ideologias irracionalistas constituintes da chamada pós-modernidade, as “políticas de identidade”, traduzidas frequentemente em manifestações que ao senso comum parecem delirantes e caricaturais, resulta no entanto de uma dificuldade inerente ao próprio projecto liberal, para a qual os grandes pensadores liberais não deixaram resposta: um grande desafio que se coloca ao desenvolvimento das sociedades liberais e ao aprofundamento do liberalismo.

Trata-se, segundo Fukuyama* “de uma escolha que o Estado liberal tem de fazer, se o tipo de liberalismo pluralista que é responsável por proteger é um liberalismo dos indivíduos ou se é dos grupos, e se for este último que tipo de restrições dos direitos individuais pelos grupos está disposto a aceitar.”

A maior parte das sociedades liberais percebe e tem agido em conformidade com a evidência que o reconhecimento do grupo pode minar o princípio liberal básico da tolerância e dos direitos dos indivíduos. É por isso que “o liberalismo não pode ser completamente equitativo em relação às diferentes culturas, já que ele próprio reflecte certos valores culturais e tem portanto de rejeitar grupos culturais alternativos que são eles próprios profundamente não liberais”.

Exemplo, o radicalismo islâmico. De entre as inúmeras caricaturas do fenómeno em expansão, refiro a título de exemplo duas: Em Setembro de 2018 foi publicado em França um livro de feministas negras que proclamava como inimigas o Estado francês, o racismo de estado e…o feminismo branco! O seu combate anunciado era "contra a negrofobia, o imperialismo, o heteropatriacado [branco e negro?] e o capitalismo”. Em Junho de 2018, em Montréal, Robert Lepage, famoso encenador canadiano, viu-se no centro de uma polémica violenta por causa da peça Slav em que o recurso aos cânticos de escravos negros não foi acompanhado por uma distribuição racial em conformidade - o intérprete principal e alguns dos músicos eram... brancos. Um dos slogans da manifestação à porta do teatro: “Os cânticos dos escravos não foram escritos para que deles aproveitassem os brancos.” A direcção do Festival de Jazz decidiu em Julho suspender a representação. Também entre nós, a encenação de peças de Gil Vicente, por exemplo, terá de recorrer em breve a actores que na realidade se confundam com os personagens. Os judeus da Farsa de Inês Pereira terão de ser interpretados por verdadeiros judeus (e como se prova isso, talvez desenterrando Mengel ou Himmler!).

Nesse universo extremo atomisado de identidades que se anuncia deixa de haver lugar para o diálogo, a criação e as artes. Nessas sociedades pulverizadas (inviáveis) o negro, o branco, o gay, a lésbica, o hetero, etc., passam a ser importantes por serem tal, e não importantes enquanto... pessoas. Pessoas, como deve sentir-se toda a gente e o universalismo e o humanismo consagram.

Estaremos, estamos já hoje, portanto, perante inumeráveis “racismos”. Seria, será a multiplicação de apartheids, o regresso de um hiper tribalismo, um mundo hobbesiano mad max de todos contra todos.

* Fukuyama, O Fim da História, posfácio à edição de 2019, Lisboa, Gradiva. Tentarei tratar este aspecto num próximo artigo.

Guilherme Valente

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