Comentário que escrevi a propósito da reportagem da jornalista Carla Castelo, emitida pela SIC, acerca da contestação ao glisofato.
Foi recentemente conhecida uma tomada de posição pública da Plataforma Transgénicos Fora, com base num suposto “estudo” conduzido por essa mesma organização acerca do que chamaram “Contaminação crónica por glifosato em Portugal”. Esse “estudo” é apresentado com um ar científico, sendo ilustrado com uns gráficos de ar insuspeito. Mas é pura propaganda alarmista. O problema é que esse “estudo” não é científico. Não passou pelo crivo do normal processo da ciência. Não foi publicado numa reconhecida revista científica, sujeito ao habitual processo de revisão pelos pares. E isso não é um pormenor. Esse processo, que é fundamental para a ciência, garante várias coisas:
- Os resultados e a discussão de um trabalho de investigação são descritos num artigo científico, proposto para publicação a uma revista científica. Nele os autores fazem o enquadramento do seu trabalho, citando estudos e resultados anteriores. Descrevem em pormenor os métodos que usaram, com referências e detalhe suficiente para que outros investigadores possam repetir o trabalho. Discutem os seus resultados, enquadrando-os com outros acerca do mesmo tema.
- Os editores das revistas científicas decidem se o artigo tem interesse para ser considerado para publicação ou não. Se é relevante, ou seja, se os resultados ou métodos reportados acrescentam alguma coisa ao que já se sabe. E se é credível. Se aparenta ter robustez metodológica e levar em conta a literatura científica adequada. Se decidirem que pode ter interesse, os editores enviam o artigo para pelo menos dois revisores, que são dois investigadores da mesma área, que verificam se o artigo é realmente relevante, se tem problemas metodológicos, se os procedimentos usados são descritos em detalhe suficiente, se os dados obtidos apoiam realmente as conclusões que os autores tiram ou se há especulações abusivas e exageros. Os revisores fazem quase sempre propostas de alterações ao artigo, como condição para que recomendem ao editor a sua publicação. Podem pedir para que se detalhe mais um procedimento experimental, que se melhoreo tratamento estatístico. Que se discuta um aspecto da literatura científica que terá sido ignorado. Que se removam conclusões pouco fundamentadas. Etc. Às vezes há trocas de correspondência entre os autores e os revisores, que são discussões científicas, durante meses. Se passar por todo este processo, o artigo científico é finalmente publicado numa revista científica credível (e há maneiras objectivas de saber quais são em cada área, tendo em conta o número médio de citações de cada artigo lá publicado, por exemplo).
- Mas ainda não acabou! Uma vez publicado o artigo científico, fica sujeito a um escrutínio científico ainda mais amplo. Um artigo científico não é a verdade absoluta escrita na pedra. Há artigos que são fraudes deliberadas. Há outros que têm conclusões erradas sem que haja dolo. Um artigo científico é como se fosse um postal ilustrado. Temos sempre que ver a paisagem toda, ou seja enquadra-lo na literatura científica publicada acerca do assunto. E é isso que é necessária fazer quando queremos saber quais são as principais ideias da literatura científica acerca de um assunto: uma revisão da literatura científica.
Estas questões não são uma espécie de formalidade dispensável. São a essência do processo científico. Obviamente que este processo não infalível. Mas é o que nos permite ter confiança na ciência. Com todas as falhas que possam ocorrer, à medida que mais grupos de investigação independentes publicam acerca de um determinado assunto, o nosso conhecimento acerca desse tema torna-se cada vez mais seguro.
Este comunicado da Plataforma Trangénicos Fora não é uma comunicação científica. Não tem, por exemplo, detalhe suficiente para outros possa repetir o trabalho exactamente como foi feito. Não sabemos se os métodos são adequados e os resultados relevantes, porque não foi sujeito ao processo de revisão pelos pares. É um híbrido que mistura supostos dados com declarações de pessoas envolvidas. É um comunicado de imprensa com um gene de química analítica. Um aberrante OGM!
O glifosato é um herbicida que pode ser usado com algumas espécies de plantas transgénicas (de milho, por exemplo) resistentes ao glifosato. Esta estratégia de manipular os meios de comunicação social com uma estratégia alarmista não é nova no campo dos OGM. Outro exemplo, é o que ficou conhecido como “caso Séralini”, que descrevo no meu livro Pseudociência, do qual transcrevo aqui um excerto:
“Em Novembro de 2012 foi publicado um estudo na revista Food and Chemical Toxicology acerca da toxicidade de um tipo de milho geneticamente modificado para ser resistente a um herbicida comercializado pela Monsanto chamado roundup. De acordo com os resultados, os ratos alimentados com esse milho OGM tiveram uma incidência de tumores muito superior à dos ratos do grupo de controlo, que foram alimentados com milho sem modificações genéticas.
O caso, que ficou conhecido como o caso Séralini (nome do primeiro autor do estudo), começou a ter contornos estranhos no momento da publicação do artigo e subsequente divulgação mediática. Para receberem uma cópia do artigo, Séralini exigiu aos jornalistas que assinassem um acordo de confidencialidade, que os proibia de contactarem outros investigadores antes da conferência de imprensa de apresentação do trabalho. Assim, o primeiro impacto mediático foi uma versão sem qualquer contraditório das conclusões do artigo, ilustrada com fotografias de ratos com tumores gigantes. Em todo o mundo, os títulos dos jornais deram conta do perigo dos OGM (de todos eles, presume-se). Finalmente os investigadores tinham descoberto o que os activistas ambientais já sabiam há muito tempo: os OGM causam cancro. Abriram-se as garrafas de espumante biológico.
Logo após a sua publicação, vários investigadores vieram a público criticar os métodos e as conclusões do artigo alarmista. Uma chuva de cartas que questionavam a validade das conclusões chegaram aos editores da revista. Podemos, é claro, supor que todos esses cientistas são avençados da Monsanto, e contra essa fé na conspiração pouco há a fazer. As críticas incidiam sobre o número reduzido de animais usados nas experiências e sobre a estirpe de ratos escolhida (chamada Sprague-Dawley) que tem tendência para desenvolver tumores por tudo e por nada. Os autores do estudo tiveram a possibilidade de responder às críticas. Mantiveram a sua posição e defenderam a validade das conclusões do seu artigo. Mas, em Novembro de 2013 a revista Food and Chemical Toxicology revolveu retirar o artigo. Podemos, claro, continuar a alargar a nossa rede de conspiradores e supor que os editores da revista, que apenas um ano antes não tiveram qualquer problema em publicar o artigo, foram comprados ou ameaçados pela Monsanto para o retirar. Ou podemos optar pela explicação mais simples, que é a de que os editores retiraram o artigo face a dúvidas pertinentes acerca das suas conclusões, apresentadas por 22 cientistas de várias países em 17 cartas ao editor.”
Obviamente que se deve avaliar a exposição e toxicidade dos herbicidas. Mas cada trabalho publicado nessa área tem que ser enquadrado numa visão ampla da literatura científica. E há várias organizações internacionais fazem esse tipo de revisões. Neste caso da Plataforma Transgénicos Fora nem artigo científico há. É uma pura manobra de propaganda.
5 comentários:
O arranha-céus que representa, nos nossos dias, o conhecimento científico já alcançado, não foi construído sobre alicerces de certezas absolutas. A própria Física Quântica, com tantas aplicações no moderno mundo tecnológico, tem, como um dos seus princípios basilares, "O Princípio da Incerteza de Heisenberg".
Os autores destes estudos pseudocientíficos alegam a sua credibilidade apresentando conclusões extraídas de dados estatísticos, mas se me derem a escolher entre milho tratado com herbicidas químicos, ou milho cultivado sem auxílio de venenos, eu optarei sempre pelo milho livre de eventuais contaminações. Tempos houve, em que o óleo era melhor do que o azeite na alimentação humana, com base em estudos mais ou menos científicos!
O milho plantado "sem auxílio de venenos" será de muito pior qualidade, e terá um muito maior risco de ter sido contaminado por animais. É o seu risco. Afinal, é moda hoje em dia as pessoas pensarem que "antigamente" é que se fazia bem as coisas, e que a higiene e saúde de hoje em dia é pior, como se isso fosse possível.
O milho cultivado com auxílio de venenos pode ficar envenenado! "Antigamente", quando a poluição antropogénica era menor, as pessoas tinham, em média, uma menor percentagem de mercúrio no corpo. Não me venham dizer que o mercúrio (Hg) faz bem bem à saúde!
A insistência em combater o uso do glifosato, o herbicida mais seguro que existe no mercado, e deixar de lado mais de 100 outros que são de facto perigosos, é no mínimo uma tolice. Os agricultores sempre usaram produtos para o combate a pragas, como a calda bordalesa e outras barbaridades tão tóxicas ou mais que muitos dos praguicidas em uso. No caso dos herbicidas, a química avançou muitíssimo, assim como sua segurança. Se o agricultor moderno não empregar herbicidas, terá que usar gradagem com tratores e deixará uma pegada ambiental muito maior.
Como Portugal tem uma agricultura pequena e pouco produtiva, talvez não faça diferença se o glifosato for banido. Mas para grandes países produtores isso é a decisão mais absurda, anti-ecológica e anti-económica possível
Antigamente, a esperança de vida eram 30/35 anos. Hoje em dia são quase 80. Deve ser culpa dos venenos...
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