A Física tem estado ao serviço da
saúde desde o seu início como disciplina científica. Curiosamente a medicina
moderna surgiu ao mesmo tempo que a física. O “pai” da Física, o italiano Galileu
Galilei (1564- 1642), foi estudante de Medicina na Universidade de Pisa e
que, entre os instrumentos que mais
tarde desenvolveu, conta-se um termómetro, que mais não era do que um recipiente
de um gás que se expandia ao contacto com as mãos.
De entre as várias descobertas e
invenções que a Física proporcionou às áreas da saúde, a começar pela medicina,
merecem destaque as várias formas de ver o interior do corpo humano por meio de
luz invisível. Os equipamentos que hoje se encontram nos hospitais usando raios
X, raios gama e ondas de rádio (ressonância magnética), todas elas formas de
luz invisível, tiveram os seus primórdios no final do século XIX, quando foram
descobertas as radiações de menores comprimentos de onda, mais energéticas e
por isso mais penetrantes, descobertas que abriram caminho à identificação do
núcleo atómico e a todos os extraordinários desenvolvimentos científicos e tecnológicos
que a física nuclear possibilitou. Esboçamos aqui a história dessas descobertas
e ilustramos algumas das possibilidades que elas abriram, em particular
práticas correntes nos hospitais e laboratórios médicos de hoje.
Um outro grande contributo da
física no sentido de promoção da saúde foi aquele que permitiu, usando raios X,
a meio do século XX, a revelação da estrutura da molécula do ADN. Grandes
desenvolvimentos tanto da bioquímica como dos meios informáticos conduziram, já
no século XXI, à sequenciação completa do genoma humano, que está a abrir novas
possibilidades para a prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças. Podemos hoje
falar de Revolução Genética, uma vez que vivemos no limiar de uma era em que o big data genómico permitirá melhor
prevenção e melhores cuidados de saúde, no quadro do que se convencionou chamar
“medicina personalizada”. Discutiremos alguns dos meios disponíveis nesta área
e algumas das possibilidades em aberto, sem deixar de referir os riscos
potencias associadas a essas novas tecnologias.
Se os métodos de observação do
interior do corpo humano se tornaram de algum modo banais em equipamentos e
instalações hospitalares, é facilmente previsível que os referidos novos
avanços da genética combinados com continuados avanços da informática, como os algoritmos
da inteligência artificial, venham a alterar instalações e equipamentos
hospitalares, colocando novos desafios aos engenheiros e gestores hospitalares.
Ver com os raios X
Fig. 1 Primeira imagem em raios X feita em Portugal por Henrique Teixeira Bastos na Universidade de Coimbra. Fonte: Museu de Ciência da Universidade de Coimbra.
Foi o físico alemão Wilhelm
Roentgen (1845-1923), Prémio Nobel da Física em 1901 (tratou-se do primeiro laureado
Nobel na Física) quem, no final do ano de 1895, descobriu os raios X. Estava a
realizar experiências de raios catódicos (descargas de feixes de electrões em
gases numa ampola) quando reparou que uma chapa fotográfica fechada numa gaveta
aparecia impressionada. Só podia tratar-se do resultado de uma radiação
invisível. Colocado um objecto opaco, como uma mão, no caminho entre a ampola e
a chapa fotográfica, para analisar as propriedades dessa radiação, observou uma
sombra, que, no caso da mão, era a estrutura óssea. Pela primeira vez,
conseguia-se realizar fotografias de corpos opacos! Depois das mãos de Roentgen
e da sua senhora, outras observações do corpo humano se seguiram realizadas por
outras pessoas. Uma vez que o potencial médico da nova e misteriosa radiação foi
rapidamente percebido, os aparelhos de raios X começaram a ser instalados nos
hospitais. De facto, começaram também a aparecer noutros sítios, incluindo em
salas de espectáculos que anunciavam “a maior descoberta científica da nossa
era,” que permitia, por exemplo, ver as moedas no interior de uma carteira sem
a abrir. Na época não se sabia da estrutura dos átomos que constituem toda a
matéria normal, mas hoje sabemos que são os choques dos eletrões que
bombardeiam um material com os electrões mais internos de um átomo que criam lacunas
electrónicas, que são preenchidas por electrões mais externos, com emissão de
uma radiação muito energética, precisamente os raios X.
Os raios X chegaram rapidamente
na Portugal. Logo em Fevereiro de 1896 era repetida na Universidade de Coimbra a
experiência de Roentgen, pois o equipamento necessário era simples e estava
disponível. O lente de física, que ensinava os estudantes dos primeiros anos de
medicina (a física destinava-se então apenas à formação geral dos futuros médicos),
era Henrique Teixeira Bastos (1861-1943), que ensinava no Colégio de Jesus, não
muito longe do hospital universitário (Fig.1). Um dos alunos que assistiu às
lições daquele lente, que incluíram a demonstração dos recém-descobertos raios X,
foi António Egas Moniz (1874-1955), o médico que haveria de receber o Prémio
Nobel da Medicina em 1949 (Fig. 2). O prémio foi-lhe atribuído pelo
desenvolvimento de uma técnica de cirurgia cerebral, mas poderia ter sido dado –
e mesmo antes - por uma técnica de visualização
das artérias do cérebro que ele propôs recorrendo a raios X, designado por
arteriografia cerebral. Por outras palavras, os raios X acompanharam-no na
vida.
Fig. 2 Ficha que comprova a matrícula de António Egas Moniz no 1.º ano médico na Universidade de Coimbra em 1894-1895. Font: Arquivo da Universidade de Coimbra.
Hoje em dia os raios X são usados
rotineiramente para fazer exames TAC (Tomografia Axial Computorizada) que
permitem reconstruções tridimensionais do interior do organismo.
Ver com raios gama
Em 1896, pouco depois da
descoberta dos raios X, o físico francês Antoine Henri-Becquerel (1852-1903),
que haveria der ser prémio Nobel da Física em 1903 juntamente com o casal Pierre
Curie (1859-1906) e Marie Curie (1867-1934), reparou, talvez por acaso como porventura
aconteceu com os raios X, que alguns minerais do Museu de História Natural em
Paris emitiam uma luz invisível, mais
uma vez revelada por uma placa fotográfica fechada, mesmo quando esses minerais
não tinham sido expostos antes a luz solar (Becquerel estava interessado no
fenómeno da fluorescência, que consiste na devolução da radiação recebida).
Hoje chamamos radioactivos a minerais desse tipo. Sabemos que a sua radiação é
ainda mais energética que a dos raios X e, portanto, mais penetrante: ela vem
do interior de núcleos atómicos instáveis, podendo ser acompanhada por outros
tipos de radiação, como os raios beta (electrões, semelhantes aos raios catódicos)
e raios alfa (núcleos de hélio). Madame Curie, de início com o seu marido e
depois sozinha, realizou um trabalho notável para isolar e analisar uma pequena
quantidade de novos elemento químicos, que foram chamados polónio e rádio, o
primeiro em homenagem à sua terra natal e o segundo à sua capacidade de emitir
raios. Haveria de juntar ao Nobel da Física o da Química, em 1911, e haveria de
auxiliar doentes, durante a Primeira Guerra Mundial, usando equipamentos de raios
X. Sofreu na própria pele as consequências da radiação. Os raios gama são mais perigosos
do que os raios X, mas podem ser aproveitados para terapêutica, sendo hoje
usados para o tratamento de certos tumores cancerígenos. Por outro lado, uma técnica
de diagnóstico que recorre também a raios gama baseia-se na ingestão, em pequenas
doses, de uma substância radioactiva, que, posta a circular pelo organismo,
proporciona, devido a emissões gama, imagens do funcionamento fisiológico
humano.
Os raios gama aparecem também
quando, em obediência à mais famosa das equações (E = mc2) do germano-suíço Albert Einstein (1879-1955), a
matéria colide com a antimatéria, desaparecendo as duas para dar lugar a
energia. A antimatéria é em tudo igual à matéria excepto pela sua carga contrária:
assim ao electrão presente nos átomos, que é negativo, corresponde o positrão, que é positivo. Foi o físico inglês
Paul Dirac (1902-1984) quem, em 1928, ao resolver uma equação que descrevia o
electrão de um modo simultaneamente quântico e relativista, quem revelou a existência,
de início apenas teórica, do positrão. Dirac recebeu pela proposta e resolução dessa
equação o Nobel da Física de 1933, ainda antes de o positrão ter passado de uma
mera possibilidade teórica a partícula comprovada, ao ser observado nos raios
cósmicos. Uma técnica engenhosa para ver o interior do corpo humano foi
desenvolvida nos anos 70, recorrendo aos positrões. Submetem-se os tecidos que
se querem estudar a um feixe positrónico (provenientes de núcleos emissores de
positrões em vez de electrões). Ao colidirem com os electrões presentes nos
átomos das moléculas biológicas surgem dois feixes gama, de energia
característica, na mesma direcção e em sentidos opostos. Detectores gama em
volta do paciente permite saber o ponto preciso de onde vieram os raios gamas,
isto é, onde desapareceram electrão e o positrão. Esta técnica, designada por
PET (de Positron Emission Tomography),
foi o primeiro método a fornecer informação funcional sobre o cérebro, uma vez que
proporciona imagens que, quando comparadas com imagens de um órgão normal,
permite o reconhecimento de anomalias no metabolismo. Com este procedimento
pode-se, por exemplo, identificar um cérebro com a doença de Alzheimer.
Ver com ondas de rádio
Fig. 3 Dependência dos dois estados energéticos de um protão (com spin para cima e spin para baixo) com a intensidade de um campo magnético.
A ressonância magnética (RM) usa ondas
de rádio como meio de visualização. As partículas que recebem e emitem os ondas
de rádio são os protões, ou núcleos do átomo de hidrogénio, que estão presentes
por todo o organismo humano (designadamente na água, H2O). Os
protões têm um momento magnético, isto é, comportam-se como pequenos ímanes,
que podem ser “mandados” alinhar pelo grande magnete exterior existente em
todos os equipamentos deste tipo. Dizemos que os protões, tal como os electrões,
têm spin, uma propriedade prevista
pela equação de Dirac para além da existência de antimatéria. O campo magnético faz com que alguns spins fiquem paralelos ao campo
enquanto os restantes ficam antiparalelos. As diferenças de energia entre os estados do spin alinhado e do spin desalinhado
aumentam com a intensidade do campo (Fig.3). Ondas de rádio permitem excitar
protões para o estado de energia mais alta (com os spins desalinhados), podendo eles depois decair para o estado de
energia mais baixa, emitindo ondas de rádio semelhantes às que foram usadas na
excitação, ondas essas que são recolhidas por antenas. Como o campo magnético não
é uniforme e como a diferença de energia
entre estados depende do valor do campo, pode-se saber onde estão localizados
os protões do corpo humano. A partir do conjunto das ondas de rádio recolhidas,
podemos produzir imagens de tecidos, semelhantes às de raios X, mas com a vantagem de
permitir a observação de tecidos moles. Uma vantagem ainda mais importante é
que, por são serem ionizantes, as ondas de radio são inócuas para o organismo.
Quer dizer, a energia das ondas de rádio não é suficiente para arrancar
electrões dos átomos.
As ondas de rádio ou hertzianas foram
descobertas em 1884 pelo físico alemão Heinrich Hertz (1857-1894), que não viveu
o suficiente para receber um prémio Nobel. A sua descoberta confirmou a
previsão feita em 1865 pelo físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879) de
que podiam existir ondas de luz ou electromagnéticas de quaisquer comprimento de
onda: as ondas de rádio são as de maior comprimento de onda, ao passo que os
raios gama são os de menor comprimento de onda, tendo os raios X comprimentos
de onda um pouco menores do que os dos raios gama. Tal como se verifica emissão
ou absorção de luz nos “saltos” de electrões nos átomos, que pode ser visível,
ultravioleta ou raios X, verifica-se
emissão ou aborção de raios gama nos “saltos” de protões ou neutrões nos
núcleos. As ondas de rádio referem-se a
transições entre níveis de energia muito próximos de um protão, que surgem
devido ao campo magnético. A técnica de RM já proporcionou vários Nobel: O germano-americano Otto-Stern (1888-1969),
Nobel da Física em 1942, foi o primeiro a descobrir o momento magnético do protão.
A seguir, o norte-americano Isidor Rabi (1898-1988) foi o primeiro a
desenvolver o método de ressonância para registar as propriedades magnéticas dos núcleos atómicos, tendo recebido
o Nobel da Física em 1943. Só muitos anos volvidos as aplicações na medicina se
tornaram viáveis: o primeiro fisico a receber o Nobel da Medicina foi, em 2003, o inglês Peter Mansfield
(1933-2017) que, com o químico norte-americano Paul Lauterbur (1912-1997),
permitiram, com os desenvolvimentos que realizaram da RM, a sua aplicação generalizada.
A Física e a Revolução genética
Fig. 4 Evolução do custo da sequenciação do genoma humano. Fonte: National Human Genome Research Institute.
No interior de cada uma das células
do nosso corpo reside o código da vida, o registo da nossa identidade biológica
escrita com quatro letras (A, T, G e C) que são grupos químicos chamadas bases (adenina,
timina, guanina e citosina) que se sucedem ao longo de uma molécula muito extensa,
o ADN. A descoberta da estrutura em dupla hélice dessa molécula foi realizada em
1953 pelo físico inglês Francis Crick (1916-2004) e pelo biólogo americano
James Watson (n. 1928). Os dois receberam o Nobel da Medicina em 1962. Os raios
X, tal como permitem ver o interior do corpo humano, permitem também ver o
interior de um cristal, como um formado por moléculas de ADN empacotadas. O
bioquímico inglês Frederick Sanger (1918-2013) foi o primeiro a sequenciar o
ADN de um organismo simples, o bacteriófago Phi X 174, que tem 5286 bases,
agrupadas em 11 genes (genes são agrupamentos de bases, que contêm a a
“receita” de produção de proteínas). Sanger foi até hoje o único laureado com
dois Nobel da Química: o segundo foi-lhe dado em 1980 pela sequenciação do
genoma e o primeiro tinha sido dado em 1958 pela revelação da estrutura de uma
proteína, a insulina.
O Projecto do Genoma Humano, um
dos maiores empreendimentos científicos dos nossos tempos, teve lugar entre
1990 e 2003: destinou-se a mapear todos os genes do ADN humano. Incluiu mais de
5000 cientistas, de 250 laboratórios. Concluiu que os 23 cromossomas humanos
tinham cerca de 3 mil milhões pares de bases, 20 000 genes, com o total de 800
megabytes de informação, o que corresponde a cerca de 1 CD (da qual menos de
0,1 por cento é verdadeiramente individual, sendo o resto um padrão da espécie
humana).
Desenvolvimentos bioquímicos e informáticos
permitiram uma enorme queda do preço da sequenciação genómica, o que permitiu
aumentar o número de genomas disponíveis para análise (Fig.4). De 1990-2007, na
chamada 1.ª geração de sequenciação, o custo de um genoma era de 10 milhões de dólares, de 2007-2011 passou-se para a 2.ª geração, na qual o custo
caiu para 5000 dólares. Finalmente desde 2014 vive-se a 3.ª geração com a
sequenciação do genoma a custar menos de 1000 dólares. Ela custa hoje cerca de
700 dólares. O objectivo actual é atingir o preço de cem dólares.
Começou a assim a estudar-se
relação entre genes e doenças ou, nalguns casos, a predisposição para doenças.
É a presença de algumas variações genéticas que proporciona, ou pelo menos favorece,
o desenvolvimento de algumas doenças. Por outro lado, a dose de alguns fármacos
deve ser adequada ao perfil genético de cada pessoa, pois cada indivíduo
metaboliza a um ritmo diferente do de outros. O projecto “1000 Genomas” recolheu
dados sobre a diversidade genética da humanidade. Novas tecnologias,
designadamente na área da nanotecnologia, prometem baixar ainda mais o preço da
sequenciação e assim permitir a acesso a este tipo de tecnologia por parte de
mais pessoas. Tais tecnologias somam-se a avanços na área do software, que
permitem tratar grandes quantidades de dados, recorrendo por exemplo à
inteligência artificial. A ideia consiste em aprender sobre a nossa biologia e
sobre a nossa saúde à medida que o tratamento de uma quantidade impressionante
de dados avança.
Ninguém sabe como vão ser os
hospitais do futuro, mas não é arriscada a previsão de que a genética e a
inteligência artificial desempenharão neles um papel. O médico tomará decisões cada
vez mais ajudadas por máquinas. Existem decerto questões éticas, legais,
económicas e políticas sobre a utilização de dados genómicos. Colocam-se já
hoje novas questões, que têm necessariamente de ser informadas pela ética,
relativas às possibilidades de edição genética. Recentemente um médico chinês
anunciou que tinha usado uma nova técnica, o CRISP, para fazer um certo tipo de
melhoramento genético de embriões humanos, sem existir uma base legal para o
procedimento. Este tipo de questões são
societais, não podendo ser deixadas a cientistas, engenheiros e gestores. São questões
que, nas sociedades democráticas, têm de ser decididas por todos.
Referências
-
BERNARDO, Luís Miguel, Histórias da luz e
das cores : lenda, superstição, magia, história, ciência, técnica Porto :
Universidade do Porto, 2005-2010. 3 vols.
- Centenário da descoberta dos Raios X e da 1.ª
radiografia em Portugal feita na Universidade de Coimbra [Coimbra] : Gráfica de Coimbra, 1996.
-
FIOLHAIS, Carlos, in Em torno da vida e
obra de Pierre e Marie Currie, Coimbra : Centro de Recursos da DREC,
1992.
- FIOLHAIS, Carlos ; MARTINS, Décio Ruivo ;
FERNANDES, João ; MIGUEL, Maria da Graça; MOTA, Paulo Gama ; FAUSTO, Rui – Segredos da luz e da matéria. In Mota, Paulo Gama
(coord.), Museu da ciência luz e matéria
[catálogo], Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.
- RIDLEY,
Matt, Genoma : autobiografia de uma
espécie em 23 capítulos, Lisboa: Gradiva, 2001
2 comentários:
A Ficha que comprova a matrícula de António Egas Moniz no 1.º ano médico na Universidade de Coimbra não é de 1984-1985, mas sim de 1894-1895
Obrigado, já emendei a gralha. CF
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