Com a devida vénia, transcrevemos o texto do ensaísta João Pedro George na última Sábado na sua sempre pertinente coluna "Coração, Cabeça e Estômago":
É um fenómeno bastante disseminado, que todos conhecem, mas que
poucos admitem. Aquilo a que poderíamos chamar um segredo de polichinelo. A endogamia universitária —
recrutamento de doutorados para cargos permanentes de docência pela
mesma instituição que lhes atribuiu o
diploma de doutoramento — não é um
sintoma conjuntural. Trata-se, antes,
de uma prática corrente. A preferência
pelos candidatos locais em detrimento
dos candidatos exteriores à instituição
tem sido sistemática em Portugal e
atinge, em alguns casos, níveis escandalosos. Eu próprio, se não tivesse saído da universidade para me dedicar
em exclusivo à escrita (decisão das
mais importantes de quantas tive de
tomar, que mudou a minha vida, mas
que não aconselho a ninguém que o
faça), seria hoje um exemplo acabado
desse tipo de endogamia.
De acordo com um apuramento estatístico da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência sobre a
endogamia académica nas instituições
públicas de ensino superior, em 2015-
-2016, há uma imensa maioria de docentes que ocupam posições de carreira nas universidades em que se
doutoraram. Dentro deste cenário global, que aponta para uma situação de
nepotismo estrutural, rara é a universidade que sai limpa e airosamente deste retrato: na Universidade de Coimbra, a instituição com taxas mais elevadas de endogamia, 80% dos seus
professores de carreira concluíram o
doutoramento na própria instituição, e
nas Universidades dos Açores e de Lisboa esse valor atinge os 74%, seguidas
de perto pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (73%) e pela
Universidade do Porto (72%).
Embora este clima de imobilismo
académico seja transversal a quase todos os cursos, há certas licenciaturas
em Direito que excedem as mais funestas estimativas: praticamente
100% dos seus docentes de carreira fizeram o doutoramento na universidade onde trabalham, donde é legítimo
inferir que o princípio da equidade entre candidaturas "internos" e "externos" nunca foi respeitado.
O panorama geral é igualmente monótono e deprimente quanto à presença de mulheres nos cargos de gestão universitária. Muito embora haja
cada vez mais mulheres a seguir a
carreira académica, como professoras ou como investigadoras, os homens continuam a preponderar no
topo da hierarquia. Só para dar um
exemplo, entre 1898 e 2011 não encontramos uma única mulher no quadro de reitores — 32 homens — que
passaram pela Universidade de Coimbra, o mesmo ocorrendo na Universidade de Lisboa, onde a ausência de
mulheres é total na lista de 30 reitores
eleitos entre 1911 e 2013, e na Universidade do Porto, cuja reitoria foi dirigida,
entre 1911 e 2018, apenas por homens.
Estes e outros dados são analisados
num novo livro da colecção de retratos da Fundação Francisco Manuel
dos Santos, Cientistas Portugueses, do
bioquímico David Marçal.
Há fundadas razões, segundo o autor, para considerar altamente prejudicial a existência de níveis tão elevados de endogamia ou paroquialismo,
começando pela própria produtividade científica: quanto mais endogâmica
é uma universidade, mais esmorece
ou definha o ímpeto dos seus docentes
para se dedicarem à investigação e à
produção de conhecimento científico
original. De facto, o rendimento académico dos docentes e investigadores
endogâmicos tende a diminuir significativamente a médio prazo — menos
artigos científicos, menos obra publicada, etc. —, enquanto os menos endogâmicos e com maior mobilidade académica tendem a ser mais produtivos
e a participar em mais projectos internacionais de investigação. Além disso,
a qualidade das suas aulas e das suas
investigações costuma ser melhor e
mais constante.
É fácil de perceber porquê: circular
entre culturas científicas diferentes e
possuir experiências de trabalho em
instituições diversas expõem-nos a diferentes modos de pensar, alarga os
horizontes intelectuais, evita ou minimiza o conformismo e a submissão à
ortodoxia do discurso institucional,
duas características que não promovem a criatividade científica, o espírito
crítico e a liberdade de pensamento.
Pelo contrário, o ambiente mental nas
universidades que favorecem, por sistema, os candidatos internos, recorrendo tantas vezes a manigâncias de
secretaria ou a concursos feitos à medida dos currículos das pessoas da
casa, propende para o imobilismo, o
isolamento e o sedentarismo. Comunidades mais fechadas sobre si, que
integram um número elevado de indivíduos com propriedades comuns de
formação, ou mesmo de condição social, são comunidades menos abertas
ao exterior e menos preparadas para
se integrarem em redes de investigação nacionais e internacionais.
O livro de David Marçal, que assinala
uma degradação das condições do
trabalho científico e que, por isso, deveria ser longamente meditado pelos
decisores políticos, levanta vários
problemas de fundo. Em primeiro lugar, demonstra que as operações de
recrutamento académico são, antes
de tudo, operações de selecção social,
algo que os concursos oficiais escondem atrás da falsa aparência de neutralidade e objectividade dos seus requisitos de admissão. Em segundo lugar, esqueçam o ideal de uma ciência
pura e autónoma, submetida inteiramente a lógicas de cientificidade
(para aqueles que ainda duvidam da
natureza social da ciência e de como
os seus resultados são, demasiadas
vezes, o produto de práticas influenciadas por forças sociais exteriores às
regras científicas, recomendo a leitura
deste livro). Em terceiro lugar, vem
comprovar que a educação superior,
mais do que uma força positiva de
mudança social, desempenha, mais
do que parece, um papel decisivo na
reprodução e legitimação social de alguns grupos sociais.
Com efeito, as universidades mais
endogâmicas servem fins tradicionais
e não tanto racionais, respondem a
formas anacrónicas de organização e
funcionamento, mais do que a exigências de modernização e inovação.
Na realidade, a endogamia académica não se traduz apenas na reprodução de pessoal académico com as
mesmas referências, os mesmos horizontes e expectativas, os mesmos interesses ou as mesmas coordenadas
mentais, indica também a reprodução
de divisões antigas de classe, de género e de etnia (já agora, seria útil saber
quantos professores universitários
não brancos existem nas universidades portuguesas).
Se está provado que a diminuição
da endogamia académica melhora a
produtividade científica, não estaria
na altura de o Governo proibir as universidades de recrutarem, durante
quatro ou cinco anos, os candidatos
que nelas obtiveram o doutoramento? Não seria de começar a incluir,
nos júris dos concursos oficiais, cientistas estrangeiros ou mesmo elementos exteriores ao mundo universitário? Por higiene intelectual, mas
também como medida da seriedade
dos governos na luta contra o arranjismo, o compadrio e o nepotismo, as
universidades não podem continuar
a deter um poder absoluto na contratação dos seus docentes. Porque, no
fim de contas, uma boa medida política pode ser tão ou mais importante
do que uma verdade científica.
João Pedro George
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019
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5 comentários:
«Se está provado que a diminuição da endogamia académica melhora a produtividade científica, não estaria na altura de o Governo proibir as universidades de recrutarem, durante quatro ou cinco anos, os candidatos que nelas obtiveram o doutoramento?» Uma ideia potencialmente injusta. Os recrutamentos devem ser feitos de acordo com o mérito individual do candidato e não com a sua origem. Se o melhor candidato tiver sido formado localmente deverá ser o escolhido. Ponto. Até porque, nível nacional, o argumento de que uma maior endogamia equivale a uma menor produção científica não é completamente sustentado pelos dados: comparem-se as produções científicas da UC, UL ou UP com as da UBI ou da U da Madeira... Por outro lado, é muito bonito comparar a endogamia da UC ou da UP com Yale e Cambridge esquecendo convenientemente os orçamentos à disposição de uns e outros... O problema basilar da academia portuguesa é o subfinanciamento crónico, e não a endogamia. Esta é apenas um sintoma do atraso do sistema científico português, não a sua causa.
Embora tenha valido a pena, porque alma não era pequena, da gloriosa época dos Descobrimentos, os portugueses ficaram com a fama e milhares de heróis mortos, mas o proveito, em termos de dinheiro sonante, ficou quase todo nas praças do norte da Europa, nos bolsos dos vendedores finais da "pimenta" a retalho.
As causas do atraso do sistema científico português devem ser procuradas na História, mas se estivermos à espera que o país se desenvolva com base nas nossas riquezas endógenas, como a cortiça ou o vinho e a sardinha assada, e sem investimentos de origem exógena, podemos esperar sentados!
Cada vez mais, doutores há muitos!
E no entanto, Portugal tem vindo a dar pequenos passos, sim, mas bem assentes na terra, em direção a um futuro muito bonito nos campos da Educação e Ciência.
"O Rosmaninhal se queixa,
o Rosmaninhal se queixa,
De não ter moças formosas,
de não ter moças formosas.
Subam lá acima a Idanha,
subam lá acima a Idanha,
Que até as silvas dão rosas,
que até as silvas dão rosas."
Em Portugal, até os enfermeiros são doutores!
Partilho a opinião do autor.
Mesmo assim,com a enorme quantidade de dados disponibilizados pelo ministério da educação que atestam a verdade deste articulado,ainda há *Xico-espertos" a comentar neste forum, idiotices ou posições de conveniência egoísta. Sim, é urgente que o poder central determine legislação que puna esta corrupção que prejudica a docência e investigação no ensino superior.
Os orçamentos decorrem precisamente de serem melhores ou piores universidades, o que decorre de terem melhores ou piores cientistas. Ou seja, se as universidades portuguesas tivessem adotado as melhores práticas ao longo dos anos, nomeadamente na contratação dos seus recursos humanos, teriam certamente orçamentos mais elevados.
Se o Sr. Pedro vier com a desculpa de que "isso dependeria sempre do orçamento de estado", então pense no fosso que existe entre uma (qualquer) Universidade Privada portuguesa e uma Universidade Privada americana, e.g. MIT, Harvard.
Se não tiver conhecimento de como funciona o recrutamento de cientistas nas universidades privadas portuguesas, terei todo gosto em lhe explicar. Posso adiantar que "endogamia" passa a ser uma "brincadeira de meninos"...
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