Entrevista que dei a Catarina Carvalho, do Diário de Notícias, a propósito do meu novo livro Cientistas Portugueses:
Este seu livro é sobre algo de que quase nunca se fala - a situação laboral dos cientistas portugueses. Porque teve a ideia de fazê-lo?
Precisamente por isso. Por achar que a realidade dos cientista é mal representada no espaço público. Aquilo a que as pessoas têm habitualmente acesso são histórias de cientistas em situações de grande reconhecimento social, quando ganham um prémio, um financiamento avultado ou publicam um artigo numa das revista científicas mais conhecidas. Isso é importante, mas não é a história toda. Mesmo esses que aparecem na televisão em momentos de luz, podem ter uma situação laboral muito distante daquilo que imaginamos.
Por exemplo?
Podem, por exemplo, estar a braços com contractos que findam e candidaturas para assegurar o seu rendimento mensal. Há também uma questão de oportunidade para fazer este livro. A ciência teve um crescimento muito grande em Portugal nas últimas duas décadas, com um grande aumento do número de doutoramentos e de investigadores em actividade. Com isso criou-se uma situação nova: doutorados que têm muito poucas perspectivas de integração nos quadros das instituições de ensino superior. Proliferam formas de contratação precárias, como as bolsas de investigação (que é a mais precária de todas) e os contratos de trabalho a prazo. Este livro procura fazer um retrato desta realidade relativamente recente dos investigadores em Portugal. Há hoje um acesso mais democratizado à investigação científica, mas o estatuto profissional e social da maioria dos investigadores diminuiu.
Neste livro descreve uma situação precária. Mais ou menos como a vida dos artistas. Ou dos futebolistas? E não serão os cientistas, de certa forma, do mesmo género dos artistas?
Num certo sentido sim, uma vez que ambas as profissões procuram produzir algo de novo. No caso dos artistas são as obras de arte, no dos cientistas novo conhecimento. Estão ligadas pela criatividade, embora haja diferenças. A liberdade criativa do artista é maior. Para o cientista a sua criatividade tem de se submeter ao teste da observação e da experiência. No caso dos futebolistas têm a ver com facto de poderem ter também uma carreira curta, precisarem de estar no clube certo em cada momento e de poucos atingirem um elevado nível de reconhecimento.
A ciência é uma profissão?
Sim. Não uma, mas várias profissões. É uma actividade muito especializada, que exige elevadíssima formação e que é cada vez mais realizada por equipas grandes e multi-disciplinares. Não é uma coisa que se faça nos tempos livres. E precisa de ser paga. O paradigma do investigador-aristocrata do século XIX, que assegura não só a sua subsistência como financia a sua própria investigação, já ficou para trás. Foi esse o caso de Charles Darwin (que faz este ano 210 anos), nessa altura nem era muito bem visto ganhar dinheiro com a ciência. Mas se hoje ainda dependêssemos dos afortunados que se auto-financiam certamente não teríamos nada que se parecesse com a produção científica actual. E a ciência é muito necessária para responder a quase todos os desafios que temos como sociedade.
Quais as principais consequências desta “vida em estado líquido” como lhe chama? Para os cientistas?
A ideia da vida em estado líquido é do filósofo Zygmunt Bauman, eu apenas a pedi emprestada. É a ideia de que as relações nas sociedades actuais tendem a ser menos duradouras. Isso acontece nas relações pessoais, mas também nas de trabalho. Não apenas na ciência, é claro. Mas as carreiras de investigação estão especialmente líquidas. Uma ilustração disso é um estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, no passado mês de Dezembro. Entre várias outras coisas, os autores desse estudo determinaram, a partir do registo de publicações científicas desde os anos de 1960, o tempo de meia vida dos investigadores ao longo do tempo. Ou seja: o tempo que demora para que metade dos investigadores que iniciam actividade num determinado ano abandonem a carreira de investigação. Foram precisos 35 anos para que metade dos investigadores que começaram a carreira nessa altura deixassem a investigação. Para os que começaram em 2010, foram precisos apenas cinco anos para que metade abandonasse a carreira. São dados globais, não apenas portugueses. Mas traduzem uma grande incerteza no futuro dos investigadores. E há outros factores, como a necessidade de mobilidade para progredir na carreira. É um meio muito competitivo. E há uma grande diferença nas oportunidades que se podem ter se considerarmos que o nosso mercado de emprego é uma cidade, um país, um continente ou o mundo. Claro que a mobilidade é uma característica da ciência e pode ser encarada de modo positivo. E é-o, muitas vezes. Mas noutras também é forçada por falta de oportunidades. Os contratos a prazo, a mobilidade, tudo isto tem implicações nos projectos pessoais e de família.
E para a ciência portuguesa, quais são as consequências?
O sistema científico português ser menos atractivo e perder bons investigadores para outros sistemas científicos ou para outras actividades profissionais. É verdade que nem uma coisa nem outra são totalmente indesejáveis. É natural que os investigadores portugueses se sintam atraídos por países com sistemas científicos mais desenvolvidos, podendo até eventualmente regressar a Portugal num ponto mais avançado da carreira. E também é positivo que as pessoas com experiência de investigação científica possam dar o seu contributo noutros sectores. Mas Portugal tem que ter um sistema científico suficientemente atractivo e motivador. Sob pena dos recursos investidos na ciência terem um retorno abaixo do seu potencial.
De todas as pessoas que fazem ciência em Portugal, quantas estão em situação precária?
É difícil de dizer. Esses dados, que eu saiba, não estão compilados. Há formas muito diversas de contração precária. Para fazer essa contabilização não bastam os números das bolsas e contratos de investigação celebrados directamente com a FCT. É necessário levar em conta dados das várias instituições de investigação, fazendo essa recolha caso a caso. Há casos de instituições privadas criadas ao lado das instituições públicas, que são usadas para contratar investigadores, em geral de forma precária, sem que estas pessoas adquiram qualquer ligação formal à instituição pública mãe (e que é a morada desses investigadores para efeitos de contabilização da produção científica). Há instituições em que o número de precários é múltiplo do de investigadores e docentes do quadro. Se fizermos o exercício de, em cada artigo científico, retirar o nome dos investigadores precários que para ele contribuíram, vemos que são em grande número e decisivos para a produção científica nacional.
De que modo é que isto não se repete, também, noutros países? Como é gerido o emprego científico, por exemplo, em Espanha ou em França? E nos Estados Unidos?
Há obviamente países com situações mais favoráveis do que outros. Mas os contratos a prazo e a precariedade na ciência são uma realidade generalizada. Nós temos, no entanto, algumas especificidades. Uma forma de contratação ainda mais precária, que são as bolsas de investigação científica (não dão sequer direito a subsídio de desemprego). E poucas alternativas para os doutorados fora das universidades. E também o facto de ser tudo mais recente para nós.
E de que modo é que o facto de não haver uma tradição de mecenato científico, ou de fundações em Portugal ajuda - ou acrescenta- a esta situação? Tem de ser sempre o estado a tratar de tudo….
A maior parte da investigação fundamental — aquela que é feita para obter conhecimento e não para desenvolver um produto— é geralmente financiada por fundos públicos, em qualquer lado do mundo. E sem essa investigação não há aplicações. O investimento privado na investigação fundamental pode ter algum papel, geralmente complementar ao público. Às empresas naturalmente interessa mais a investigação aplicada. Dito isto: é verdade que ainda há pouco investimento privado na investigação em Portugal, deveria haver mais. Especialmente por parte das empresas, e numa perspectiva mais aplicada, em colaboração com as universidades e centros de investigação. Isso acontece noutros países. Claro que há honrosas excepções entre nós. Mas ainda são poucas.
Este é um processo especialmente complexo para as mulheres - e há-as em maioria na ciência?
Não é uma situação generalizada, que ocorra em todo o lado. Portugal é um dos países do mundo com maior participação feminina na ciência. Há várias possíveis explicações para isso. Uma delas é o crescimento tardio da ciência em Portugal, numa altura em que as mulheres também já estavam em maioria no ensino superior. Mas não conheço nenhuma explicação cabal. Há quem ache que é porque a investigação científica em Portugal é um emprego demasiado mau para os homens o quererem. Mas isso é apenas uma especulação.
Em contrário, quais seriam as más consequências de um trabalho demasiado seguro? Não poderia levar a uma certa “preguiça intelectual”?
Poderia. E na verdade isso já pode acontecer, tendo em conta que os docentes e investigadores do quadro têm um trabalho absolutamente seguro. Deve haver avaliação com consequências e possibilidade de progressão na carreira. Há países com mais estabilidade laboral e que são mais cientificamente produtivos do que nós. Não penso, longe disso, que a todos os recém-doutorados deva ser oferecido um contrato vitalício imediato. Mas que ao fim de alguns ciclos de avaliação e de provas dadas, seja realista almejar alguma estabilidade.
Com a situação descrita, o estranho é que ainda haja quem queira fazer ciência em Portugal… Só cá ficam os que não têm lugar em mais lado nenhum?
Há obviamente um lado bom: fazer investigação científica pode ser altamente recompensador do ponto de vista intelectual. Ser o primeiro ser humano a saber pela primeira vez uma coisa pode ser empolgante. As pessoas gostam e querem fazer investigação científica. Muitas vezes o que acontece é que gostam do conteúdo do seu trabalho, aquilo que realmente fazem, mas estão insatisfeitas com as condições de trabalho, com o vínculo, a remuneração, a incerteza dos concursos. E a vida tem muitas dimensões. Pesam-se várias coisas, não apenas o desenvolvimento da carreira, mas também projectos pessoais e familiares. Há pessoas mais propensas a sair do que outras, ou que dão mais prioridade à carreira ou à família. Não penso que ficam cá só os que não têm lugar em mais lado nenhum. São importantes os que vão e que podem eventualmente voltar com a sua experiência internacional. Mas também são importantes os que ficam e que por anos a fio fazem omeletes com muito menos ovos.
E, no entanto, há outro fator, o do “bêbado conhecido”, ou seja, como sempre o factor C. É isso que prende as pessoas a Portugal? E o que podia ser feito para que não houvesse esta endogamia?
Penso que esse factor empurrará mais pessoas para fora de Portugal do que as que cá mantém. Para além de existir um efeito negativo na produtividade científica. Recompensa as características erradas. Um sistema científico menos endogâmico seria mais motivador e mais produtivo.
Quis são as característica erradas que a endogamia recompensa?
Uma certa propensão para a política de corredores, que em nada contribui para a qualidade e produtividade do trabalho científico. Recompensa a imobilidade profissional em detrimento de visões de fora, que até poderiam acrescentar algo à instituição. Não quero com isto dizer que 70% da academia portuguesa seja pura e simplesmente incompetente. Hoje em dia esses processos de selecção são competitivos (uns mais do que outros, dependendo das áreas) e quem acaba por entrar normalmente tem algumas provas dadas. Mas o mesmo se poderá provavelmente dizer do candidato que ficou em segundo ou em terceiro, e que ficou de fora. O que estamos a falar é daquilo que muitas vezes é decisivo entre dois ou três candidatos razoáveis. Acrescento que um candidato que já esteja na instituição há algum tempo, pode não se encaixar nas definições habituais de endogamia académica: ter feito lá o doutoramento ou publicado lá o primeiro artigo. O conceito de endogamia académica traduz situações de imobilidade prolongada. Pessoas que muitas vezes fizeram a licenciatura, o mestrado, o doutoramento e mais três contratos de investigação no mesmo sítio. Não plausível que em 70 por cento dos concursos o candidato que sempre que por lá andou seja o melhor. Poderá haver casos em que sim. Mas 70 por cento é demais. É um valor bem mais elevado do que o da generalidade dos países que têm sistemas científicos mais produtivos do que o nosso. E também não estou a defender que os precários não devam ser integrados. Porque precários são todos, os que ganham e os que perdem o concurso. A questão é que características devem valorizadas nas entradas para os quadros, de modo a termos um sistema científico mais justo, motivador e produtivo.
Mónica Bettecourt-Dias diz, às tantas, no livro, que era mais interessante que não fossem só as universidades e centros de investigação a “usar” o trabalho dos cientistas, dos doutorados, nomeadamente…
Isso é muito importante. Num sistema científico maduro, muitos doutorados terão de encontrar saídas noutras actividades onde possam ser úteis. Nas empresas, entidades reguladoras, etc. O conhecimento profundo do processo científico pode ser muito útil em vários contexto, assim como uma forma de pensar bastante racional, que pode ajudar a resolver problemas. Mas esse tipo de oportunidades por cá ainda são muito escassas. Certamente os doutorados poderão criar algumas dessas oportunidades eles próprios. Mas não chega.
Por outro lado, a entrada nas universidades e centros de investigação de pessoas que estavam a prazo, com a integração dos precários, foi mal vista. Porquê?
Por várias razões. Por um lado, porque a integração de investigadores ou docentes nos quadros, através de processos que não são da iniciativa das instituições, é mal vista pelas instituições. Os seus dirigentes preferiam que o Estado garantisse o financiamento para mais umas quantas posições de quadro e que as instituições pudessem escolher sem condicionamentos que concursos abrir para as preencher, de acordo com a sua visão e estratégia. Por outro, há receios de que o financiamento para essas novas contratações não seja devidamente acomodado nas transferências do Orçamento de Estado. Por outro ainda, há quem pense que uma grande vaga de admissões no curto prazo irá limitar severamente as contratações no futuro. Pode-se pensar ainda que é uma questão de poder, os precários uma vez integrados, passam a votar e a poder ser eleitos para órgãos das instituições. Apesar de todos os solavancos e receios, alguns legítimos, penso que é melhor ter-se dado um sinal de mudança do deixar tudo como dantes.
Sem comentários:
Enviar um comentário