terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

"Do Inventor de Aldoar à Busca de Vida no Universo" de Manuel Paiva


Extracto de pré-publicação do livro de memórias do físico Manuel Paiva (na foto), Grande Prémio Ciência Viva, que está a sair em português depois de ter saído em edição de autor em francês. O  livro será apresentado a 14 de Março às 18,30h Sede da União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde Rua da Vilarinha, 1090 4100-513 Porto.  A  apresentação será de Pedro Guedes de Oliveira Professor Emérito da U.Porto. É  um livro concebido para a família e alguns amigos, e que estes, dado o seu evidente interesse, empurraram para a publicação. Entre o relato íntimo da juventude, avivado com memórias da Vilarinha (Aldoar), e a conquista espacial, de que o autor foi e é também actor, colorido com o céu dos Estorninhos, um relato apaixonante que se lê dum fôlego.  (Edição portuguesa de "Des Châteaux en Espagne de mon Père à mon Pays des Rêves Bleus" traduzida por Joaquim Pinto da Silva).


A casa da noiva 


 A mais antiga recordação que retenho do meu pai foi quando o vi montar o cavalo da carroça da Cooperativa de Aldoar, era eu mais novo que Basile. O cavalo atrelado cumpria a mesma função das camionetas de hoje. Essa Cooperativa foi fundada pelo irmão da minha avó materna, Germano Lopes Martins, nascido na casa de meus bisavós, a 7 de janeiro de 1871, na Rua da Vilarinha, em frente daquela onde passei a minha infância. Participou no advento da República, da qual foi Ministro, era progressista, anticlerical, franco-mação… participou na elaboração das leis de separação da Igreja do Estado, um enorme passo para a democracia. É extraordinário que apenas tenha sabido disto ao percorrer uma enciclopédia, em Celorico da Beira, quando terminava, com a coautora, a redação de “Diálogos sobre Portugal”[1]. O meu tio-avô não tem descendência direta (das duas filhas, uma teve um filho que também já morreu) e conservou uma certa nomeada. Aqueles que queiram saber um pouco mais sobre este membro da família, pelo qual tenho uma grande admiração, bastará escreverem o seu nome no Google!

 O meu pai, tema central deste livro, provinha de uma família de comerciantes muito católicos que não podia ser senão conservadora. O meu avô materno, também ele mação, e a minha avó materna já tinham falecido quando os meus pais se casaram, a 21 de julho de 1930. A Bélgica festejava o seu centenário. Nesse dia, tornei-me uma possibilidade, mas com uma probabilidade inferior a 1 a dividir por 1 seguido de, pelo menos, trinta zeros e, se não posso dizer que foi da minha vontade, pelo menos, agarrei a oportunidade! As condições estavam assim reunidas para que a minha educação beneficiasse das reuniões familiares onde as discussões políticas eram tudo menos harmoniosas... Como nasci durante a derrota nazi em Estalinegrado não pude seguir os debates familiares nesse ano. No entanto, sei que o meu pai, como aliás a maior parte da família, era anglófila, contrastando com o ditador Salazar que não escondia a sua admiração por Mussolini, o fascista italiano, cuja foto com dedicatória podia ver-se na sua secretária. De Hitler, Salazar tinha recebido uma viatura blindada que ficou célebre quando, em 1961, seis prisioneiros políticos a utilizaram para se evadir da prisão de “alta segurança” de Caxias. Esse é também o ano do início da guerra colonial, que durou treze anos e que marcou profundamente a sociedade portuguesa… mas tudo isso me desvia da intenção deste livro.

 Tive muita sorte na vida. Felizes ocorrências associaram-se a probabilidades bem maiores que aquela de que vos falei atrás. Uma dentre elas está ligada ao momento do meu nascimento, que coincidiu com o curto período da vida de meu pai em que os negócios lhe correram de feição. Para se compreender o que se segue, preciso de vos falar um pouco da sua personalidade e do pouco que conheço da sua infância. O meu pai tinha três irmãs e uma meia-irmã. A esta chamávamos-lhe Dindinha. Foi fruto de um primeiro e curto casamento da minha avó, conhecida como Dona Constança. No dia em que quis saber um pouco mais da nossa família, soube que Dindinha tinha incendiado todas as fotografias que possuía.

 As três irmãs eram mais novas que ele, todas muito boas pessoas e que eu conheci bem. O pai dele, de quem me falava sem particular afecto, era gordo e um inveterado fumador que tinha o mau hábito de acender os cigarros na pirisca do cigarro que tinha acabado de fumar. Logo que o meu pai chegou à idade de experimentar os prazeres do fumador, Dona Constança, que ele adorava, obrigava-o a abrir a boca onde ela introduzia o seu nariz, transformado em detector de fumo. Aos 94 anos, o meu pai orgulhava-se ainda de nunca ter fumado. A sua família paterna era oriunda de Braga. Não sei onde nasceu o seu pai, dono de uma casa de ferragens, no Porto, na Rua do Almada. Conheci o seu irmão, o meu tio-avô paterno, o Tio Paiva, que era proprietário da Casa da Noiva, na Rua dos Clérigos, no centro do Porto, que creio ainda existe. Essa Casa da Noiva teve um papel importante na formação de meu pai. Como o Tio Paiva não tinha filhos e ainda por cima era o padrinho do meu pai, pareceu a Dona Constança que seria um bom investimento a prazo se o seu filho único começasse a preparar a sua herança indo trabalhar com o Tio Paiva. Foi uma muito má aposta.

Tinha já contado no meu outro livro, de tiragem muito limitada, “Voyages dans l’Espace-temps d’Estorninhos”[2] (“Viagens no Espaço-Tempo dos Estorninhos”) que, aos 14 anos, eu não ligava nada à escola. Recordo-me de ter visto o boletim escolar do meu pai quando ele tinha a mesma idade que eu e reparei que não era melhor que o meu! Tive então a boa ideia de confidenciar isto à minha mãe que me desaconselhou de o repetir a quem quer que seja. Felizmente isso agora prescreveu… não sei se um melhor boletim teria mudado a vida de meu pai, mas o que é um facto é que Dona Constança decidiu retirá-lo da escola e mandá-lo trabalhar na loja do seu padrinho. Pelas descrições do meu pai, morava num sótão húmido e sem aquecimento, e, muito cedo de manhã, começava a jornada a varrer o passeio à frente da Casa da Noiva. Enquanto varria e tossia, era motivo de risota dos seus camaradas a caminho do liceu ali perto. Foi por essa altura que Dona Constança disse ao seu filho: “o teu padrinho vai certamente perguntar-te o que queres receber como prenda de Páscoa. Vais responder que gostarias que fosse umas calças”. Dona Constança tinha acertado na previsão da pergunta do Tio Paiva mas não na possibilidade de meu pai, audaciosamente, a modificar, visto que ele disse ao seu padrinho: “gostava de ter uma raqueta de ténis”. E a sua vontade foi respeitada, chegando a casa com uma bela raqueta de ténis. Imaginam a indignação de Dona Constança, pois, para além de ter levado uns fortes raspanetes, o meu pai teve de explicar ao seu padrinho que tinha mudado de ideias e que preferia umas calças, tendo sido efectuada a troca. Termino este triste parêntese referindo que, pouco tempo depois, o Tio Paiva vendeu a sua loja e passou a viver dos seus rendimentos. Conheci bem a sua mulher, a quem chamávamos Tia Maricas, que pesava mais de 100 kg e que morreu aos 99 anos, tendo assim tempo suficiente para gastar toda a herança.

 Os 400 pintainhos holandeses 

 Tendo falhado o cálculo de Dona Constança, desconheço o percurso escolar do meu pai até ao seu primeiro emprego. Deveria ter seguido o da Escola de Comércio do Porto, visto que ele aprendeu inglês e francês, que, aliás, escrevia particularmente bem. Além disso, pagou do seu bolso aulas de alemão. Da sua vida de jovem adulto antes de casar, não conheço quase nada, a não ser que gostava muito de cinema, na altura, mudo, e que sonhava vir a ser ator. O seu ídolo era Harold Lloyd, considerado, com Charlie Chaplin, a quintessência do cinema cómico. Harold Lloyd foi o homem dos óculos de tartaruga e das lentes redondas e uma das suas cenas mais conhecidas é a do relógio em cujos ponteiros ele ficou pendurado. Lembro-me de uma foto do meu pai pendurado nos ramos da grande nespereira a imitar o grande ator, com o qual fisicamente se assemelhava.

 Quando nasci, o meu pai era o chefe-contabilista da casa Ferreirinha, onde a sua probidade era apreciada (Ferreirinha é ainda uma das grandes casas produtoras de Vinho do Porto). O meu pai poderia ali ter ficado até à reforma, mas quis antes montar a sua própria empresa. Quando a Irina veio pela primeira vez a Portugal, tivemos o privilégio extraordinário de beber um Porto centenário que o meu pai tinha recebido aquando da sua despedida. Pelo que sei, foi a partir desse momento que iniciou uma série de tentativas de enriquecimento através da criação de empresas, que altura não chamávamos ainda de “start-up’s”. Foram alguns destes episódios que fizeram sorrir Jorge e Eeva e que aqui vos vou contar, enquanto que a ExoMars 2016 se aproxima do seu destino.

 Não conheço a data exata da sua saída da Ferreirinha, mas sei que foi durante a guerra. As garrafas de Porto, individualmente protegidas por uma embalagem de palha, partiam de barco para os EUA. O meu pai decidiu deixar a Ferreirinha e criar uma sociedade para produzir essas embalagens. Suponho que, depois de Dona Constança ter morrido de pneumonia, em 1942, uma boa parte da herança tenha sido transformada em embalagens de palha. A versão do meu pai é que, devido a um defeito de fabrico das garrafas, algumas chegaram partidas aos EUA, as importações foram suspensas e a sua empresa à falência. Entretanto, o dinheiro ganho foi utilizado nalgumas transformações na casa onde nasci, que pertencia à minha mãe e às suas duas irmãs, que moraram sempre connosco. Elas tinham também um irmão mais novo, casado, mas sem filhos, que teve um papel importante na família. Ao mesmo tempo que o meu pai estava desempregado, o meu tio tornava-se uma pessoa conhecida na cidade. Possuía, por exemplo, um dos carros mais caros da época, um Jaguar. Foi graças a ele que o meu pai encontrou emprego, como contabilista numa empresa onde ele trabalharia até à sua reforma. O meu tio sempre foi uma pessoa encantadora, muito complacente, nem sempre sério, mas de uma grande generosidade para com os seus sobrinhos. Beneficiei muitas vezes dessa generosidade. Sem ele, nunca teria obtido o passaporte que me permitiu, como turista, sair de Portugal.

 A primeira vez que ouvi falar de um negócio do meu pai, devia ter cinco anos. Foi na Praia da Circunvalação, uma praia muito conhecida junto ao Castelo do Queijo, no Porto, onde muitas famílias alugavam barracas por todo o mês de agosto. Estendiam-se umas ao lado das outras, pelo que nós tínhamos duas pegadas. Tinham-me prevenido que não podia falar com a família da barraca do lado esquerdo. Foi muito mais tarde que soube que era a família de um sócio de meu pai num negócio de produtos de tinturaria; o sócio em questão estava preso pois tinha roubado o meu pai. Não resisto a fazer uma divagação sobre a barraca da direita: essa era ocupada pela família de um cirurgião, cujas relações com a nossa eram, para uma criança, das mais confusas. Os acasos da vida fizeram com que a minha mãe e a mulher do cirurgião tenham estado grávidas ao mesmo tempo, de mim e daquele que haveria de ser o meu único amigo de infância. Foi aí também que vi, numa das barracas vizinhas, uma rapariga da nossa idade toda nua, tendo ficado espantado por ela não ter pilinha. O meu amigo disse-me: “as raparigas são assim”. Ainda mantivemos o contacto durante a nossa adolescência e não fiquei muito surpreendido quando ele foi morar para uma casa da Opus Dei. A última vez que o vi foi durante as férias grandes, no Verão de 1974. Os meus pais convidaram-no lá para casa e meu pai foi direito ao assunto: “não será mais fácil respeitar os votos de pobreza e obediência que o de castidade?”. Por todos passou um sorriso amarelo, nuns mais que noutros. Ao escrever estas linhas não resisti a fazer uma procura com o seu nome no Google. Logo à primeira entrada encontrei o seu nome, podendo mesmo ler a sua data de nascimento, a da sua ordenação (suponho que padre), o seu número de telemóvel e a sua morada na Rua da Vilarinha. O número da porta leva-me a pensar que ele deve morar perto da casa onde morou Manoel de Oliveira[3], o maior cineasta português de sempre, falecido há pouco, com mais de 100 anos de idade. Pequeno mundo este da paróquia de Aldoar!

O primeiro negócio de meu pai, do qual posso esboçar verdadeiramente as grandes linhas foi aquele conhecido por Aviário da Vilarinha. Para percebermos a atmosfera torna-se necessário descrever o cenário. Vilarinha é ainda o nome da rua onde se encontra a casa da minha infância assim como duas outras belas mansões que o meu bisavô materno contruiu em meados do século XIX. A nossa casa tinha todas as características de casa agrícola, com animais, uma horta, um pomar e um grande terreno à volta. Isabelle et Nathalie conheceram-no bem tal como ao seu enorme galinheiro que, durante as férias grandes, os sete primos transformavam em sala de espetáculos para as peças de teatro, fruto da sua imaginação. Era também no galinheiro que estava o grande baú com as roupas velhas que inspiravam os prometedores cenaristas, servindo ao mesmo tempo de disfarces para os jovens atores. O público, composto por todos os moradores, incluindo a cozinheira, demonstrava sempre admiração e entusiasmo. Agora é a minha irmã que ali mora, uma pequena maravilha de quadro luxuriante de verdura e flores.

 Nos anos 50 não havia senão campos entre a nossa casa e o mar, onde agora se encontra o Parque da Cidade. Para ir ao centro da cidade, era necessário chegar à paragem do eléctrico que passava na Avenida da Boavista, no fim da Rua de António Aroso (nome também da paragem). Entre a casa da família Aroso (que era quem cultivava as terras ali à volta) e a nossa, não havia rigorosamente mais nada. Aos oito anos, quando fui pela primeira vez à escola, percorria sozinho o caminho, em terra batida, lamacento no Inverno e poeirento no Verão, onde raramente nos cruzávamos com alguém. O meu pai percorria-o também duas vezes por dia, nos dois sentidos, e contavam-se pelos dedos os outros passantes. Curiosamente, não me recordo de alguma vez ter sentido medo, mesmo tendo por ali passado pouco tempo depois de um marido ciumento ter ali assassinado a mulher à facada. Durante os dias seguintes, ainda se viam traços de sangue no chão e nos muros. A mulher assassinada era filha dos agricultores que viviam entre a igreja e a casa dos meus bisavós e onde todos os dias íamos comprar leite. O que me sossegou foi saber que o padre tinha ainda chegado a tempo de administrar a extrema-unção à moribunda. Antes de ir à escola, tinha já seguido a catequese para a minha primeira (e quase última) comunhão, e deduzi que, após passar um quarto de hora doloroso, a jovem assassinada se encontrava agora no Purgatório, a sala de espera do Paraíso. Voltemos ao Aviário da Vilarinha: não creio que o meu pai tenha feito um “business plan” para o seu negócio. Durante o Verão de 1950, seguiu de perto a construção do edifício, apoiado nas suas intuições de engenheiro e arquiteto. Tenho lembrança de ter ouvido que o galinheiro iria acolher 400 pintainhos da raça Leghorn que chegariam da Holanda, vindos de avião. Tornar-se-iam galinhas brancas excelentes poedeiras, de tipo galinhas dos ovos d’ouro. Aquilo que me impressionou mais foi elas chegarem de avião, e eu que tanto sonhava já em voar. Recentemente não resisti a ir verificar a pertinência da escolha da raça, consultando a Wikipédia. Ali pode ler-se que “as Leghorns são boas poedeiras, com uma média de 280 ovos por ano”. Ainda segundo a Wikipédia, o nome Leghorn provém da deformação, pelos americanos, do nome da cidade de Livorno, na Itália, de onde provinham as galinhas, em geral brancas, exportadas para os EUA.

As futuras galinhas do meu pai chegaram a Lisboa e, como o tio que tinha um Jaguar tinha também um pequeno Fiat, transformou este último em transporte avícola e foi, com meu pai, buscar os 400 pintainhos. Evidentemente que o meu pai pensou que à volta de metade dos pintainhos não poria ovos e apenas ao escrever estas linhas me dou conta que a razão pela qual ele frequentou um curso elementar de ciências veterinárias foi para aprender a castrar os frangos machos ou, pelo menos, a maioria deles. Sei também que ele pretendia enviar a minha irmã para a Dinamarca, para se formar em avicultura, o que teria comprometido a sua carreira de linguista. Apenas hoje, 67 anos mais tarde, é que compreendo o sentido de uma história que ele me contou e que ficou esquecida nos confins da minha memória: durante os trabalhos práticos do seu curso de castração aviária, o veterinário pediu um voluntário para pôr em prática os seus ensinamentos. Evidentemente que o meu pai se ofereceu e, quando orgulhosamente exibia o par de órgãos retirado, o veterinário felicitou-o pela sua participação, mas explicando à audiência que meu pai acabava de retirar os rins ao frango. Não se justificando um tratamento de diálise, o recentemente nomeado capão viu terminar prematuramente a sua curta vida numa panela em vez de gozar o estatuto de eunuco, bem alimentado e espectador tranquilo das aventuras dos seus confrades.


 Essas lições não se limitaram apenas à castração e os “dons” de cirurgião veterinário de meu pai poderiam ter tido uma influência na minha carreira. Com efeito, alguém notou que uma das galinhas tinha a moela inchada. O meu pai diagnosticou corretamente uma obstrução digestiva e decidiu que se impunha uma intervenção cirúrgica. Pediu à minha mãe o seu estojo de costura e, depois da refeição, a sala de jantar transformou-se em bloco operatório. Todas as potenciais enfermeiras abandonaram discretamente o local e eu fui designado assistente. Meu pai anestesiou a galinha, provavelmente com éter, pegou num par de tesouras de costura e abriu o que se assemelhava a um pequeno saco completamente cheio de milho, que cuidadosamente esvaziou, enquanto que eu segurava vigorosamente a galinha para o caso de ela acordar, e recoseu-a também cuidadosamente. Após alguns dias de quarentena, a galinha recuperada juntava-se aos seus consortes. A história ressoou pela família e eu era o mais surpreso pelo espanto familiar, pois isto tinha sido muito menos impressionante que a matança anual do porco, ou o também anual e pascal sacrifício do peru, que a minha frágil tia Rosinha embebedava com Vinho do Porto, antes de lhe cortar a garganta, em menos de um segundo. Lembro-me muito bem de ouvir o meu pai dizer que eu iria ser cirurgião e não advogado, como ele o imaginou antes, apoiando-se na minha reputação de grande mentiroso. Quase setenta anos depois, reconheço que as suas previsões sobre os meus futuros estudos universitários, antes mesmo de frequentar a escola, foram uma fonte de autoconfiança, mas também me fizeram subestimar o esforço necessário para obter esses diplomas!

Por uma razão que ignoro, mas que suponho ter sido uma má avaliação do mercado e a consequente dificuldade em escoar o produto, meu pai decidiu substituir a produção de galinhas pela de pintainhos, que seriam forçosamente fáceis de vender, pois tinha-os comprado na longínqua Holanda. Vendê-los em Portugal deveria necessariamente reduzir os custos. Adivinham desde já que o estudo do mercado dos pintainhos Leghorn era inconsistente e que provavelmente foi sozinho que concebeu o negócio. Entretanto, antes de falar das consequências da mudança de produto, está na hora de ir dar uma vista de olhos ao que se passa em Marte, ou melhor, à volta de Marte.




[1] “Diálogos sobre Portugal”, de Manuel Paiva e Mariana Pereira, edição de Livros &Leituras, 1998.

[2] “Voyages dans l’Espace-temps d’Estorninhos”, de Manuel Paiva; edição do autor, limitada a 10 exemplares, agosto de 2012.

[3] A Casa de Manoel de Oliveira corresponde aos números 431 a 475 daquela rua e foi classificada como Monumento de Interesse Público, em 2015.

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