terça-feira, 28 de junho de 2016

RECREAÇÃO FILOSÓFICA DE TEODORO DE ALMEIDA, EXTRACTOS DO PRÓLOGO AO VOL: I

 Ontem, no colóquio sobre "Ciência e Literatura",  fiz uma intervenção na  Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa sobre a "Recreação Filosófica" do padre oratoriano Teodoro de Almeida. Ficam aqui alguns extractos do prólogo do vol. I (1.ª edição, 1751), o primeiro texto didáctico de Física em língua portuguesa:

"Não há criatura tão vil nos olhos da ignorância, que não seja bastante a transportar o maior engenho, se guiado pela luz da razão souber nela descobrir os vestígios das perfeições de Deus. Sem o estudo da Filosofia olhamos para as criaturas, e não vemos o melhor que nelas há; porque os olhos nos representam somente a casca, e a razão é a que penetra o interior, onde se encobre o mais admirável, o mais belo, e o mais agradável, que há que ver em todas elas.

(...) Nesta obra servirei de guia a quem quiser ver a melhor beleza das criaturas, e quem delas quiser fazer como degrau para subir ao conhecimento de seu Autor. Discorrerei por todo o mundo porque não tem outros limites a curiosidade do Filósofo natural, senão os do Universo. Como pretendo dar luz, é preciso evitar a confusão e seguir boa ordem e método natural: parece-me justo tratar em primeiro lugar de todas as coisas naturais em comum, das partes que constam e das propriedades, que convêm a todas, ou quase todas, como são a Figura, Peso, Movimento, etc. Serei mais difuso, tratando do Movimento, e das suas leis, e propriedades admiráveis, porque são o fio que nos deve conduzir neste labirintho escuro; mas explicarei somente o que puder ser útil para o conhecimento das coisas mais dignas de atenção.

(...) No que pertence ao estilo, não seguirei o das escolas, por ser menos agradável, e mais difuso: nem também me valerei das razões metafísicas, de que se usa nas aulas; porque, escrevendo eu para todos, não é em que somente alguns me entendam: porei de parte inumeráveis questões escuras, que nas escolas se tratam; porque sendo o meu intento instruir, e juntamente recrear os meus Leitores, não é razão que os mortifique. Estribarei os meus discursos igualmente na razão, e na experiência: não seguirei aqueles que só atendem ao que lhes dita o seu juízo, sem fazer caso da experiência; nem também aqueles que só põem os olhos na experiência, sem consultar a razão. Os primeiros não explicam os efeitos, que sucedem na realidade, mas os que lhes finge o seu discurso, que deviam suceder: os segundos contentam-se com recrear os olhos, não procuram satisfazer o entendimento; observam os efeitos, não se cansam em descobrir as causas.

Das experiências escolherei as que tiverem sido repetidas, e averiguadas, ou por mim mesmo, ou pelos autores, que cito; e das razões só apontarei as perceptíveis e claras. Se algumas demonstrações, que jogarem com a Geometria, parecerem ao Leitor escuras, poderá deixá-la, supondo o ponto como coisa certa; porque ainda que sou inimigo de tudo o que não é muito claro, levando do exemplo dos melhores, julguei que não devia defraudar da utilidade, que delas pode resultar aos leitores mais agudos, ou mais sofredores do trabalho. Farei o que puder para que os meus discursos sejam bem fundados; mas não me persuado que sempre acertarei com a verdade: seria isso ignorar que sou homem. Muitas vezes me hei-de enganar; e todo aquele que conhecer o engano rogo-lhe que o não siga, porque sempre abominei esta perniciosa lisonja: eu mesmo me retractarei, se o chegar a conhecer, assim como tenho retractado muitos que seguia. Os erros são enfermidades da alma; e quem será tão pertinaz, que conhecendo a sua enfermidade, a não queira lançar fora, só porque é sua?

(...)Sei que a muitos faz tão grande peso a autoridade, que julgam ser melhor errar com muitos, que acertar com poucos: nunca segui esta opinião; sempre tive por melhor acertar, ainda só, do que errar, ainda que fosse com o mundo todo; porque é muito melhor escapar só da tormenta, do que perecer em comum naufrágio. A verdade, ainda que esteja só, e desacompanhada, é estimável; e o erro, ainda que seja seguido, e acompanhado de todos os sábios do mundo, nunca merece estimação. Se desterrarmos do mundo a liberdade de julgar nas matérias, que a Fé não ensina, e nos sujeitarmos a este pesado jugo da autoridade, ficará o mundo todo obrigado a não saber mais, do que um só homem, aquele a quem primeiro se der o titulo de Mestre.

Não devemos ter o espirito tão inquieto que sempre amemos a novidade, nem tão timidos que só estimemos o antigo; porque a verdade não cresce com os anos, nem a fazem decrépita muitos séculos: a sentença mais seguida, que corre pelo mundo, foi algum dia tão nova, que nunca se tinha ouvido; e será tão velha algum dia, que conte milhões de anos; e não é hoje mais verdadeira do que foi, e será nesses tempos. Não deve a verdade envergonhar-se de aparecer no mundo por ser nova, nem o erro é razão que apareça confiado na autoridade das suas cãs. Nas matérias teológicas, verdades novas não as há, porque a luz da Fé, que as dá a conhecer, é bem antiga; mas nas matérias filosóficas há muitas verdades novas: nestas matérias para nosso governo deu-nos Deus a luz da razão, e da experiência, que pode numa hora desmentir o discurso de todos os sábios do mundo, como se tem visto muitas vezes.

Escolhi antes tecer esta obra por modo de diálogo, por me parecer mais acomodado para a inteligência daqueles, para quem escrevo, além de ser em si menos fastidioso. Não quis introduzir só dois interlocutores, que fizessem as vezes de Mestre, o Discípulo; porque, havendo de fazer (como o tempo pedia) comparação entre os dois sistemas, não era bem que a causa de algum deles corresse à revelia; e assim era preciso dar a cada uma Patrono que a defendesse. Não escolhi para Patrono da causa dos Peripatéticos algum Autor determinado, porque não era o meu ânimo contender com algum particular (...).

Não me pareceu justo desprezar a linguagem portuguesa, porque não é menos própria para explicar estas matérias do que a latina, a francesa, inglesa, alemã e outras, em que se vem tratadas frequentemente: além de que me pareceu crueldade bárbara obrigar a ser ignorantes aos que, por descuido de seus Pais e Mestres, não sabem outra língua mais que a sua vulgar; se Deus não os privou da luz da razão, porque os não ajudaremos a abrir os olhos, e conhecer os segredos da natureza? Nunca me agradou a opinião daqueles, que fazem as ciências anexas a algum idioma. Não falta quem diga que a Filosofia só se deve tratar na língua latina; mas eu não vejo razão, que o persuada. Um delicado engenho dos nossos tempos fez imprimir um sonho, que tivera, em que a Filosofia ordenara que se não tratassem as suas questões senão na língua latina; e que os meus Diálogos por esta razão só eram úteis para aprenderem a ler os meninos na escola: eu nunca fiz caso de sonhos; porém se a minha doutrina se deve dar aos meninos nas primeiras escolas, julgá-la-ão doutrina sã, sólida, clara e importante, pois só esta se deve dar nesta idade.

A Filosofia não tem idioma próprio; mas, se houvesse de aproveitar o da Pátria, onde nasceu, certamente não seria o latino. A verdade é natural de todo o mundo: os povos, ainda os mais rudes e bárbaros a entendem; e não são outra cousa as ciências mais que o descobrimento da verdade (...)"



1 comentário:

Anónimo disse...

Sendo, de facto, um bom livro de divulgação da física (filosofia natural), penso que a Recreação Filosófica é inferior ao livro de Jacob de Castro Sarmento, "Theorica Verdadeira das Mares, conforme à philosophia do incomparavel cavalhero Isaac Newton", 1737, em que o autor, um médico estrangeirado a residir em Londres, escreve um texto de divulgação da obra de Newton, cujo objetivo prático é a explicação das marés. Em termos da divulgação das ideias newtonianas, o texto situa-se ao nível dos "Elementos da Filosofia de Newton", de Voltaire e do "Newtonianismo para as Damas", de Algarotti. Ainda hoje é pouco conhecido, pelos estudiosos estrangeiros do newtonianismo, porque foi escrito na nossa língua,

Ver em http://purl.pt/14453

António Malveiro.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...