Ontem, no colóquio sobre "Ciência e Literatura", fiz uma intervenção na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa sobre a "Recreação Filosófica" do padre oratoriano Teodoro de Almeida. Ficam aqui alguns extractos do prólogo do vol. I (1.ª edição, 1751), o primeiro texto didáctico de Física em língua portuguesa:
"Não há criatura tão vil nos
olhos da ignorância, que não seja bastante a transportar o maior engenho, se
guiado pela luz da razão souber nela descobrir os vestígios das perfeições de
Deus. Sem o estudo da Filosofia olhamos para as criaturas, e não vemos o melhor
que nelas há; porque os olhos nos representam somente a casca, e a razão é a
que penetra o interior, onde se encobre o mais admirável, o mais belo, e o mais
agradável, que há que ver em todas elas.
(...) Nesta obra servirei de
guia a quem quiser ver a melhor beleza das criaturas, e quem delas quiser fazer
como degrau para subir ao conhecimento de seu Autor. Discorrerei por todo o
mundo porque não tem outros limites a curiosidade do Filósofo natural, senão os
do Universo. Como pretendo dar luz, é preciso evitar a confusão e seguir boa
ordem e método natural: parece-me justo tratar em primeiro lugar de todas as
coisas naturais em comum, das partes que constam e das propriedades, que convêm
a todas, ou quase todas, como são a Figura, Peso, Movimento, etc. Serei mais
difuso, tratando do Movimento, e das suas leis, e propriedades admiráveis,
porque são o fio que nos deve conduzir neste labirintho escuro; mas explicarei
somente o que puder ser útil para o conhecimento das coisas mais dignas de atenção.
(...) No que pertence ao estilo, não
seguirei o das escolas, por ser menos agradável, e mais difuso: nem também me
valerei das razões metafísicas, de que se usa nas aulas; porque, escrevendo eu
para todos, não é em que somente alguns me entendam: porei de parte inumeráveis
questões escuras, que nas escolas se tratam; porque sendo o meu intento
instruir, e juntamente recrear os meus Leitores, não é razão que os mortifique.
Estribarei os meus discursos igualmente na razão, e na experiência: não
seguirei aqueles que só atendem ao que lhes dita o seu juízo, sem fazer caso da
experiência; nem também aqueles que só põem os olhos na experiência, sem
consultar a razão. Os primeiros não explicam os efeitos, que sucedem na
realidade, mas os que lhes finge o seu discurso, que deviam suceder: os segundos
contentam-se com recrear os olhos, não procuram satisfazer o entendimento;
observam os efeitos, não se cansam em descobrir as causas.
Das experiências escolherei as
que tiverem sido repetidas, e averiguadas, ou por mim mesmo, ou pelos autores,
que cito; e das razões só apontarei as perceptíveis e claras. Se algumas
demonstrações, que jogarem com a Geometria, parecerem ao Leitor escuras, poderá
deixá-la, supondo o ponto como coisa certa; porque ainda que sou inimigo de
tudo o que não é muito claro, levando do exemplo dos melhores, julguei que não
devia defraudar da utilidade, que delas pode resultar aos leitores mais agudos,
ou mais sofredores do trabalho. Farei o que puder para que os meus discursos
sejam bem fundados; mas não me persuado que sempre acertarei com a verdade:
seria isso ignorar que sou homem. Muitas vezes me hei-de enganar; e todo aquele
que conhecer o engano rogo-lhe que o não siga, porque sempre abominei esta
perniciosa lisonja: eu mesmo me retractarei, se o chegar a conhecer, assim como
tenho retractado muitos que seguia. Os erros são enfermidades da alma; e quem
será tão pertinaz, que conhecendo a sua enfermidade, a não queira lançar fora,
só porque é sua?
(...)Sei que a muitos faz tão grande
peso a autoridade, que julgam ser melhor errar com muitos, que acertar com
poucos: nunca segui esta opinião; sempre tive por melhor acertar, ainda só, do
que errar, ainda que fosse com o mundo todo; porque é muito melhor escapar só
da tormenta, do que perecer em comum naufrágio. A verdade, ainda que esteja só,
e desacompanhada, é estimável; e o erro, ainda que seja seguido, e acompanhado
de todos os sábios do mundo, nunca merece estimação. Se desterrarmos do mundo a
liberdade de julgar nas matérias, que a Fé não ensina, e nos sujeitarmos a este
pesado jugo da autoridade, ficará o mundo todo obrigado a não saber mais, do
que um só homem, aquele a quem primeiro se der o titulo de Mestre.
Não devemos ter o espirito tão
inquieto que sempre amemos a novidade, nem tão timidos que só estimemos o
antigo; porque a verdade não cresce com os anos, nem a fazem decrépita muitos
séculos: a sentença mais seguida, que corre pelo mundo, foi algum dia tão nova,
que nunca se tinha ouvido; e será tão velha algum dia, que conte milhões de
anos; e não é hoje mais verdadeira do que foi, e será nesses tempos. Não deve
a verdade envergonhar-se de aparecer no mundo por ser nova, nem o erro é razão
que apareça confiado na autoridade das suas cãs. Nas matérias teológicas,
verdades novas não as há, porque a luz da Fé, que as dá a conhecer, é bem
antiga; mas nas matérias filosóficas há muitas verdades novas: nestas matérias
para nosso governo deu-nos Deus a luz da razão, e da experiência, que pode numa
hora desmentir o discurso de todos os sábios do mundo, como se tem visto muitas
vezes.
Escolhi antes tecer esta obra
por modo de diálogo, por me parecer mais acomodado para a inteligência daqueles,
para quem escrevo, além de ser em si menos fastidioso. Não quis introduzir só
dois interlocutores, que fizessem as vezes de Mestre, o Discípulo; porque,
havendo de fazer (como o tempo pedia) comparação entre os dois sistemas, não era
bem que a causa de algum deles corresse à revelia; e assim era preciso dar a
cada uma Patrono que a defendesse. Não escolhi para Patrono da causa dos
Peripatéticos algum Autor determinado, porque não era o meu ânimo contender com
algum particular (...).
Não me pareceu justo desprezar
a linguagem portuguesa, porque não é menos própria para explicar estas matérias
do que a latina, a francesa, inglesa, alemã e outras, em que se vem tratadas
frequentemente: além de que me pareceu crueldade bárbara obrigar a ser
ignorantes aos que, por descuido de seus Pais e Mestres, não sabem outra língua
mais que a sua vulgar; se Deus não os privou da luz da razão, porque os não
ajudaremos a abrir os olhos, e conhecer os segredos da natureza? Nunca me
agradou a opinião daqueles, que fazem as ciências anexas a algum idioma. Não
falta quem diga que a Filosofia só se deve tratar na língua latina; mas eu não
vejo razão, que o persuada. Um delicado engenho dos nossos tempos fez imprimir um
sonho, que tivera, em que a Filosofia ordenara que se não tratassem as suas
questões senão na língua latina; e que os meus Diálogos por esta razão só eram
úteis para aprenderem a ler os meninos na escola: eu nunca fiz caso de sonhos;
porém se a minha doutrina se deve dar aos meninos nas primeiras escolas,
julgá-la-ão doutrina sã, sólida, clara e importante, pois só esta se deve dar
nesta idade.
A Filosofia não tem idioma próprio;
mas, se houvesse de aproveitar o da Pátria, onde nasceu, certamente não seria o
latino. A verdade é natural de todo o mundo: os povos, ainda os mais rudes e
bárbaros a entendem; e não são outra cousa as ciências mais que o descobrimento
da verdade (...)"
1 comentário:
Sendo, de facto, um bom livro de divulgação da física (filosofia natural), penso que a Recreação Filosófica é inferior ao livro de Jacob de Castro Sarmento, "Theorica Verdadeira das Mares, conforme à philosophia do incomparavel cavalhero Isaac Newton", 1737, em que o autor, um médico estrangeirado a residir em Londres, escreve um texto de divulgação da obra de Newton, cujo objetivo prático é a explicação das marés. Em termos da divulgação das ideias newtonianas, o texto situa-se ao nível dos "Elementos da Filosofia de Newton", de Voltaire e do "Newtonianismo para as Damas", de Algarotti. Ainda hoje é pouco conhecido, pelos estudiosos estrangeiros do newtonianismo, porque foi escrito na nossa língua,
Ver em http://purl.pt/14453
António Malveiro.
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