sexta-feira, 24 de junho de 2016

"Pensamento computacional"

"Escola do futuro já existe. Saiba onde é". O título é de mais uma notícia republicada há poucos dias em português. Mesmo sendo a repetição monocórdica de títulos que estão em todo o lado, e que, por isso mesmo, não me sugerem qualquer atenção, vi a palavra Singapura e passei à leitura do texto.

A tal escola fica em Singapura, o país muito pequeno que, em termos de educação escolar, é admirado pelos grandes porque tem obtido resultados excelentes no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA).

O que li a seguir é, para não usar palavras excessivas, preocupante. Preocupante porque:

1. quem escreve ou reproduz este tipo de artigos - jornalistas? - limita-se a veicular ideias ou práticas (que se pretendem impor) sem o necessário enquadramento filosófico, ético, científico... O tom que usa é laudatório em vez de factual e questionador. Pergunto: alguém que se pronuncia na comunicação social sobre educação escolar não deveria informar-se pelo menos a um nível básico e não deveria interrogar o que se apresenta como novo, bom, fantástico?

Por exemplo, esta frase não lhe sugerirá qualquer discussão?
Drones voando, pianos tecnológicos no chão, circuitos com 40 ratos de computador que se movem sozinhos e tudo criado e controlado por crianças de 10 e 12 anos.
Na ausência de discussão, a pseudo-neutralidade de pseudo-notícias contribui para a consolidação de um pensamento social propício ao acolhimento dessas mesmas ideias ou práticas.

2. as crianças e os jovens são reduzidos, desde os seus primeiros passos na escola, ao potencial económico-financeiro que possam ter. Tenho visto serem designados por "recursos", mas nunca tinha visto serem designados por "matéria-prima".
"Cedo perceberam que a matéria-prima mais poderosa que tem são os cidadãos". 
Não ocorre a quem usa a expressão que quem é "matéria-prima" não pode ser "cidadão"? Que esta expressão deita por terra a condição humana e destrói a essência de cada pessoa?

3. o pensamento que se quer que as pessoas venham a ter nesse tal futuro em que tanto se insiste não será propriamente pensamento mas competência funcional para operar...
"o objetivo é que as crianças começam a desenvolver desde pequenas um pensamento computacional"
Sei bem que o pensamento se desenvolve e, por isso, receio que este tipo de objectivo seja muito bem sucedido.

Seja em Singapura seja em Portugal, seja onde for,
por via da educação
nas escolas públicas
com suporte de universidades e
com a determinação dos Estados
estamos, no presente, a conduzir a humanidade para um futuro de via única,
que, como todos os futuros, não será tão idílico como nos querem fazer crer que será.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Este texto levanta inúmeras preocupações, que são de sempre, e há que trabalhar para resgatar o homem e a humanidade da situação humilhante em que, hoje mais do que nunca, nos encontramos.
Conduzir a humanidade é uma expressão com sentido, mas não passa disso. A humanidade não se conduz, porque não é condutível e porque não há quem fosse capaz de o fazer. Se alguém tentou fazê-lo, o mais que fez foi agregar um grupo em torno de um objectivo concreto e, mais ou menos definido, no tempo e no espaço.
Os poderes, as instituições, as religiões, as culturas...e o estilo de vida, com seus hábitos de consumo e suas expectativas, as promessas propagandísticas, os aliciamentos, acenos publicitários e modelos de sucesso sócio-profissional, ditam grande parte do que devemos pensar e do que devemos viver e, até, do que devemos sentir. A subjugação é de tal ordem que, ela própria, nos é apresentada como o jogo da vida, o único jogo que vale a pena. Recursos, matéria-prima, otimização, mais-valia, competitividade, empreendedorismo, lucro, são as virtudes deste tempo apressado, que vieram substituir (e matar) as virtudes de outros tempos com mais tempo.
Quem for capaz, ou tiver a oportunidade de trocar tempo por dinheiro, ou dinheiro por tempo, se optar por ter mais tempo para pensar, pode refletir não só sobre o que devemos pensar, mas também sobre como devemos pensar; não só sobre o que devemos viver, mas também sobre como devemos viver; não só sobre o que devemos sentir, mas também sobre como exprimir o que sentimos.
Temos de conseguir pôr fim à balbúrdia e ao estapafúrdio dos pifos mirabolantes que logram fazer girar tudo na roleta do dinheiro que eles dominam.
Os valores de troca são algo de abstrato e complexo que depende de fatores especulativos, que têm vindo a transformar-se no jogo da vida.
Espero que os valores de uso (e não os valores de troca) tenham a palavra mais importante a dizer sobre a condução da humanidade.

Helena Damião disse...

Prezado leitor Carlos Soares
Agradeço o seu comentário. Percebo nas suas palavras que as preocupações que apresentei, que não são todas as que o texto em causa sugere, ainda fazem sentido para algumas pessoas. Na verdade é o próprio sentido de humanidade que está em causa e logo na instituição onde isso não podia acontecer: a escola.
Cordialmente,
MHD

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