segunda-feira, 13 de junho de 2016

VIEIRA E A CIÊNCIA


Meu artigo no n.º 3 da revista "Café com  Letras", que já está nas bancas:

O Padre António Vieira viveu numa época de ouro da ciência, a  época da revolução científica, na qual sobressaíram grandes nomes como René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton. Não sendo um cientista, tanto pela preparação que adquiriu no Colégio da Baía, no Brasil (um nó da rede global dos colégios jesuítas) como pelas suas numerosas leituras durante a sua longa vida, estava a par da ciência do seu tempo. Aos seus conhecimentos científicos ia amiúde buscar exemplos que serviam no seu discurso catequético e profético.  

No discurso de Padre António Vieira coexistem referências a autores antigos, como Aristóteles, que era a cartilha nas escolas jesuítas, e a autores modernos, como Descartes. Este filósofo e matemático apresentou em 1637, num apêndice ao famosíssimo Discours de la Méthode, uma descrição científica do arco-íris: este não era mais do que o resultado da refracção e da reflexão da luz solar em gotas de água na atmosfera. A luz solar batia na gota, desviava-se, reflectia-se no fundo da gota e voltava a desviar-se ao sair. Descartes foi, com o holandês Snell, o autor das leis da refracção, que descrevem matematicamente o desvio da luz quando passa de um meio para outro, no caso o ar e a água. Mais tarde, Newton, que realizou experiências com prismas de vidro em 1666, explicará que o desvio da luz de um meio para outro se devia à diferente velocidade de diferentes partículas de luz nos dois meios. A luz solar é branca, mas, como a luz branca é feita de partículas correspondentes às diferentes cores, as cores apareceriam diferenciadas dentro da gota e, ainda mais, à saída dela. No século XVII, o arco-íris era considerado “um dos principais ornamentos do trono de Deus” (Discours sur l'histoire universelle, 1681, do bispo e teólogo francês Jacques de Bossuet) e, conforme está escrito no Génesis, o sinal da aliança que Deus tinha celebrado com os homens após o Dilúvio universal (“o meu arco que coloquei nas nuvens. Será o sinal da minha aliança com a terra”, Gn. 9, 13). Ainda hoje o arco-íris se diz Arco da Velha: Velha significa Velha Aliança. Ora, num dos Sermões do Santíssimo Sacramento (in Obra Completa do Padre António VieiraParenética, tomo II, vol. VI, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013-2014, p. 84), proferido em Santa Engrácia, Lisboa, em 1645, escassos oito anos após ter saído o livro de Descartes, Vieira diz: “Na Íris ou Arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade de cores: e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele Arco não há cores, senão luz, e água”.  

A verdadeira Filosofia significa a ciência dos modernos, entre os quais estava Descartes. Mais tarde, no Sermão da Segunda Dominga da Quaresma (idem, tomo II, vol. III, p. 49), pregado na Capela Real em 1651, Vieira afirma: “Isto, que chamamos Céu, é uma mentira azul, e o que chamamos Íris ou Arco-celeste, é outra mentira de três cores”.

Com efeito, sabemos hoje que a cor azul do céu se deve à difusão da luz branca pelas moléculas que constituem o ar: o céu, de facto, é preto, como poderá confirmar hoje um astronauta da Estação Espacial Internacional. E sabemos também que as cores todas do arco-íris (convencionalmente sete, mas, na realidade, tantas quantas se quiserem pois existem todas as cambiantes entre o vermelho e o violeta) podem ser obtidas combinando as três cores primárias: vermelho, azul e verde. Numa linha científica coerente, Vieira, numa outra prédica, o Sermão da Quinta Quarta-feira da Quaresma (idem, tomo II, vol. IV, p. 215), dito na Misericórdia de Lisboa em 1669, explica o arco-íris com base na refracção da luz, como Descartes tinha aventado: “O rústico, porque é ignorante, vê muita variedade de cores no que ele chama Arco-da-Velha; mas o Filósofo, porque é sábio, e conhece que até a luz engana (quando se dobra), vê que ali não há cores, senão enganos corados, e ilusões da vista”.

Repare-se como é dada a primazia ao saber do “filósofo” (filósofo natural, entenda-se) em relação ao saber comum. Uma das marcas da ciência moderna é precisamente a ultrapassagem do senso comum: esta é ainda mais visível em Galileu e Newton do que em Descartes. O arco-íris é real, mas, para ele existir, têm de concorrer três coisas: a luz solar, as gotas de água e os olhos do observador. Cada observador terá sempre um arco-íris em torno de si, razão pela qual nunca poderá alcançar uma ponta.

Passando agora da terra para o céu, foi em 1609 que Galileu dirigiu pela primeira vez a sua luneta para o firmamento. A observação que fez das luas de Júpiter foi não uma prova do sistema heliocêntrico, mas uma indicação da sua plausibilidade, já que havia, além da Terra, um astro com luas em órbita. Vieira, embora conhecendo a  tese heliocêntrica de Nicolau Copérnico, publicada em 1543, e defendida muito mais tarde por Galileu, com a oposição da Igreja, não a sustentou, como aliás seria de esperar de um ministro da Igreja. Mas Vieira não menosprezou o poder explicativo do sistema heliocêntrico. Sobre ele afirmou no Sermão do Primeira Dominga do Advento (idem, tomo II, vol. I, pp. 181-182), pregado na Capela Real em 1652: “Copérnico, insigne Matemático do próximo século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar (posto que erradamente) que não era o Sol o que se movia, e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra, em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte, que quando a terra dá meia volta, então descobre o Sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta, então lhe desaparece o Sol, e dizemos que se põe. E a maravilha deste novo invento é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros, e medidas dos tempos com a mesma pontualidade, e certeza, com que até agora se tinham observado, e estabelecido na suposição contrária”.

Apesar de apontar o erro do esquema copernicano, atente-se na sua expressão admirativa: “a maravilha do novo invento”. No Sermão da Dominga Décima Sexta Post Pentecosten (idem, tomo II, vol. V, p. 287), dito na Capela Real em 1651, Vieira esclareceu que Copérnico estava errado por contrariar a Bíblia: “Opinião foi antiga de muitos Filósofos que não era o Sol o que se movia, e dava volta ao mundo, senão que permanecendo sempre fixo, e imóvel, esta terra em que estamos é que, sem nós o sentirmos, se move, e nos leva consigo (...). Mas esta opinião, ou imaginação matemática, assim como ressuscitou em nossos tempos, assim foi também condenada como errónea, por ser expressamente encontrada com as Escrituras divinas”.

O heliocentrismo era antigo (Aristarco de Samos tinha-o defendido no século III a.C.) mas eram Galileu e Kepler, Galileu com bastante mais estrondo, que agora o propalavam. Em Portugal, as ideias heliocêntricas, embora tivessem sido no século XVI do conhecimento do matemático Pedro Nunes, “cosmógrafo-mor do Reino”, demoraram muito tempo até encontrarem acolhimento generalizado. Ainda em finais do século XVIII eram vistas com muitas reservas entre nós.

Se Vieira não foi copernicano, de facto no seu tempo quase ninguém era. Mas foi moderno em muitos aspectos. Viajante por várias vezes ao Brasil e observador da realidade dos trópicos, chamou a atenção para o extraordinário valor das observações dos portugueses de novas terras, novas espécies e novas gentes. O conhecimento empírico passou a contrapor-se, nos séculos XV e XVI, ao saber das antigas autoridades, num prelúdio à Revolução Científica. No Sermão da Terceira Dominga do Advento (idem, tomo II, vol. I, p. 262), pregado na Capela Real em 1650:  “Nenhuma coisa houve mais assentada na antiguidade, que ser inabitável a Zona tórrida: e as razões, com que os Filósofos o provavam, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram finalmente os Pilotos, e marinheiros Portugueses as costas da África, e da América; e souberam mais, e filosofaram melhor sobre um só dia de vista, que todos os Sábios e Filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação. Os discursos de quem não viu são discursos: os ditames de quem viu são profecias”.

Um bom exemplo da contraposição entre os saberes antigo e moderno é a existência humana nos antípodas. Vale a pena ouvir a poderosa voz de Vieira (in Autos do Processo da Inquisição, idem, Obra Profética, tomo III, vol. IV, p.  439) afirmando que os Portugueses sabiam bem mais sobre o assunto do que os antigos: “Já disse que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem Santo Agostinho pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete das profecias, bem pode acontecer sem maravilha e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio possa atender, depois do discurso de largos anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, sapientíssimos e santíssimos, por falta de notícia não declararam nem alcançaram.”

O próprio Vieira foi um descobridor dos céus. Forneceu contribuições para a ciência ao deixar registos das suas observações de cometas, alguns delas inéditas, como o cometa que viu na Baía em 1695, quase no fim da sua vida. Para ele os cometas eram sinais de Deus. Por isso, com atentíssimo olhar, perscrutava as mudanças na abóbada celeste. No seu tempo, as esferas sólidas e fixas do céu do sistema geocêntrico de Aristóteles e Ptolomeu estavam a ser substituídas pelo conceito de céu fluido, um céu que os cometas conseguiam romper para chegarem perto da Terra. O céu deixava de estar longe e separado da Terra.

(publicado também como capítulo de livro in "Vieira, Esse povo de palavras", coord. José Eduardo Franco, Aida S. lemos e Paulo S. Ferreira, Esfera do Caos, 2016, pp. 111-114)

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