Enviada, a meu pedido, pelo cronista e crítico literário Eugénio Lisboa,
transcrevo mais uma bela peça literária da sua autoria saída, anteriormente, no Jornal de Letras:
Navigare necesse;
vivere non est necesse.
Pompeu, o Grande
A frase em epígrafe é atribuída ao famoso general romano,
Pompeu, o qual, com ela, teria estimulado os seus soldados, se amedrontados, à acção
necessária: “Navegar é preciso; viver não é preciso.” Fernando Pessoa
apoderou-se dela, como se apoderou de muita coisa. É próprio dos grandes
criadores apropriarem-se, sem escrúpulos, daquilo que lhes convém. O que roubam
torna-se, de direito, seu. Não sendo, nisto, muito diferentes dos fazedores de
impérios. Roubar assim não é imoral ou, se é, não tem grande importância: faz
parte do processo criador. Como dizia Eliot, os poetas imaturos imitam, os
poetas maduros roubam. Eça fartou-se de roubar; Racine também. Camões, sempre
que lhe dava jeito. Só não rouba quem não sabe o que fazer com o produto do
roubo. Eliot sabia do que falava: era um saber de experiências feito.
Navegar amacia as dificuldades do viver; navega-se como quem se alivia, criando alguma coisa: uma obra de arte ou um império. Viver é, por vezes, intoleravelmente doloroso. Na sua última viagem, a bordo de uma pífia barcaça, em direcção a uma praia egípcia, Pompeu navegava, sabendo que a vida lhe ia ser tirada, dentro de minutos. Esse derradeiro navegar foi também o seu derradeiro conforto, antes de lhe ser outorgado esse outro lado da vida, que é a morte. Mais uma vez, o navegar sobrepôs-se ao viver.
Fernando Pessoa, como se sabe, cedo desistiu de viver, para poder continuar a navegar, isto é, a escrever. Criar é sempre uma radical renúncia a viver. Cria-se como quem não vive. Muito escritor moderno agita-se, sofregamente, em viagens, em festivais, em “eventos”, numa espécie de “vida”, que não passa de agitação sem grande sustento. Como diria Valéry, a sua agitação é muito intensa, mas a sua substância é pouca coisa. “Vivem" muito, mas “navegam” pouco. O Gustav Aschenbach, de A Morte em Veneza, frágil e doentio, levantava-se cedo, chapinhava o corpo com água fria, para despertar, e punha-se, freneticamente, a não viver, isto é, a escrever, denodadamente, a sua obra monumental. Quando, lá para o fim, quis ter um gostinho de vida, traindo a navegação, numa sedutora praia, em Veneza, os deuses, implacáveis, condenaram-no à morte, enviando-lhe um siroco empestado. O criador que tenta começar a viver comete um pecado capital: a sentença que o visita só pode ser terminal.
Quis, com estas palavras alevantadas, fazer um prefaciozinho
à minha própria experiência: insignificante, como eu, mas significativa, como
experiência.
Tenho vivido, nestes últimos cinco anos, uma vida de grandes
dificuldades emotivas que me obrigam a um retiro, que é uma espécie de
não-vida. Tenho, em compensação (gloriosa), navegado, quanto posso e sei. Sobretudo,
percorrendo o passado que me ficou na memória. Apesar da não-vida que tem, em
grande parte, sido a minha vida de agora, tenho sabido viver de outra maneira,
que é escrever – navegar – intensa e extensamente, sobre a minha vida e
não-vida passadas.
A alegria de escrever é o antídoto eficaz contra a nossa
impossibilidade (e angústia) de viver. Cada um compensa-se, como pode, daquilo
que a vida lhe não dá (ou da vida que não tem). Uma grande obra (a minha não o
é, de certo, mas é, não duvidem, o que pode ser: uma obra extensa e obstinada),
uma grande obra, repito, obriga sempre a um recuo perante a vida, a um retiro: Camilo exila-se em S. Miguel de
Seide, Eça fecha-se nos seus escritórios (em Newcastle, Bristol e Paris),
Montherlant barrica-se, como um selvagem, no n.º 25 do Quai Voltaire, em Paris,
mandando bugiar os confrades da literatura e os mundanos da sociedade: navegar é preciso (nos intervalos, às
vezes, trai a navegação, com um viver perverso, que pagará com língua de
palmo). Martin du Gard aluga uma baiuca, em Clermont, fugindo de Paris e dos
colegas e amigos (e também da mulher!), para pôr de pé, num tremendo
isolamento, a monstruosa arquitectura dos seus Thibault. Thomas Mann, acossado pelos nazis, fixa-se em Zurique,
abandonando casa, livros e papéis, na pestiferada Alemanha, para se entregar,
furiosamente, a um horário de não-viver, isto é, de trabalho forçado e
rigoroso, fechado num quarto de hotel, inacessível a jornalistas e outros
intrusos: vivere non est necesse.
Pessoa, como verdadeiro escritor, não glosou Pompeu, apenas
na escrita: glosou-o na vida. Não comentou Pompeu: viveu Pompeu. Uma coisa é
comentar um texto; outra, muito diferente, é
viver esse texto: apropriarmo-nos dele, tornando-o nossa substância.
Régio recusou viver em Lisboa e foi não-viver em Portalegre.
Portalegre foi tanto a sua província, como o Quai Voltaire foi a província de
Montherlant. Todo o verdadeiro criador tem de ser um “provinciano”. Se não está
na província, terá de a inventar, para seu uso e proveito. Almada, tontamente,
falava nos “palermas de Coimbra”. Alguns intelectuais lisboetas vivem obcecados
com a “província”, como se esta fizesse mal à alma. Lembrem-se de Kant, que não
escreveu A Crítica da Razão Pura, em
Berlim, mas, sim, numa ruazinha modesta da cidadezinha de Königsberg. Se
tivesse vivido em Berlim, ou não tinha escrito a sua obra monumental, ou teria
tido que inventar Königsberg em Berlim. Em suma, teria tido que se provincianizar, para, em boa paz, se
entregar a um pujante não-viver. O não-viver é a doença necessária ao criar –
ao navegar. Só tem medo da província quem tem medo das grandes aventuras: que
são as do espírito e as da alma – as da verdadeira criação. Régio acusava
Branquinho da Fonseca de se ter tornado “preguiçoso”, ao ir, da provinciana
Coimbra, para a “cosmopolita” Lisboa. Branquinho teria escolhido a dispersão do
viver, prejudicando o navegar: não deu, por isso, a obra que,
dele, se esperara.
Tenho, nas minhas horas de solidão, a companhia esbelta de uma gatinha chamada Ísis. Passa o melhor da sua vida a chamar-me para a vida, com ela, no terraço da casa onde habito. Às vezes, não resisto e vou brincar com ela. São momentos deliciosos de vida. Mas, enquanto vivo, não escrevo. A vida, em suma, paga-se. Mas é a escrita que dura.
Tenho, nas minhas horas de solidão, a companhia esbelta de uma gatinha chamada Ísis. Passa o melhor da sua vida a chamar-me para a vida, com ela, no terraço da casa onde habito. Às vezes, não resisto e vou brincar com ela. São momentos deliciosos de vida. Mas, enquanto vivo, não escrevo. A vida, em suma, paga-se. Mas é a escrita que dura.
4 comentários:
Gostaria de agradecer a Eugénio Lisboa este maravilhoso texto. A erudição e a beleza da escrita numa combinação perfeita.
Cordialmente,
MHD
Caro Eugénio Lisboa:
Desejo-lhe boas navegações.
Para podermos ter o prazer de conhecer os mares que (nos) desbrava.
E tudo sem enjoo.
Acabo de receber esta mensagem do Prof. Eugénio Lisboa que publico com o maior prazer:
"Caríssimo Rui, peço-te que digas à Prof. Helena Damião que muito me tocaram as palavras dela. A vida de quem escreve é uma longa solidão. Quando esta é visitada por boas e carinhosas palavras, o seu estatuto de solidão amacia um pouco.
Bem hajam!"
Abraço do
E.
Querido Professor, como pode sentir solidão uma pessoa com a sua riqueza interior?
Um enorme beijo.
Isabel
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