quinta-feira, 13 de novembro de 2014

LITERATURA E ENSINO DO PORTUGUÊS


“Hoje não se lê, folheia-se” (Eça de Queiroz).

A propósito do lançamento do livro “Programas e Metas Curriculares”, da autoria de José Cardoso Bernardes e Rui Afonso Mateus, no dia 22 do mês passado, organizada pela Fundação  Francisco Manuel dos Santos, realizou-se em Lisboa, nas instalações do Instituto Camões, uma Tertúlia, subordinada ao tema “Literatura e Ensino do Português.

A apresentação do livro foi feita por Helena Buescu, professora catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa e autora, de parceria com Luís C. Maia, Maria Graciete Silva e Maria Regina Rocha, de Novos Programas e Metas Curriculares da Língua Portuguesa para o Ensino Secundário (2014) em que se resgatam nomes maiores da nossa Literatura aprisionados em garras de “apagada e vil tristeza”. Bem a propósito, nesta sessão, vários intervenientes criticaram verdadeiros tratos de polé que a Literatura Portuguesa sofreu nos últimos 20 anos e que bem espelhados se encontram num cáustico artigo de Nuno Pacheco, com o sugestivo título “Antiensino”, de que se transcreve este pedaço de prosa:
“Nessa altura discutiam-se as muitos discutíveis reformas curriculares que ‘limparam’ do 10.º ano muitas referências literárias trocando-as por ‘textos informativos, ‘textos dos media’, textos de carácter autobiográfico’, textos expressivos e criativos do século XX’. Quem na altura pasmou com a troca foi apelidado de antiquado: quem tem televisão ou Internet em casa dificilmente será seduzido a amar os livros, para mais os fora de moda. Agora já podemos confirmar, com provas indesmentíveis e aterradoras, onde queriam chegar tal iluminados. Basta atentar no conteúdo, divulgado ontem no Público, de alguns manuais de Português B para o 10.º ano. Lá estão, como base de ‘aprendizagem’ o Big Brother, as programações da TV Guia ou as telenovelas envolvendo os alunos num passatempo onde são convidados a dizer ‘o que levou Tomé a expulsar Maria de casa’ ou quem é que ‘Rodrigo agride violentamente, deixando-o cego’. Imagina-se o esforço intelectual das pobres criaturas: explicar quem é Tomé porque embirrou com a pobre Maria, que por sua vez nem conhecia o tal Rodrigo que cegou um zé-ninguém infeliz…” (Público, 12/10/2003).
Grosso modo, sete anos volvidos (05/08/2011), na secção de “Cultura”, deste mesmo jornal, em título à largura de toda a página - “Os franceses estão a redescobrir Camilo” -  deparei-me com a seguinte notícia: “O filme ‘Mistérios de Lisboa’ já fez mais de 100 mil espectadores em França”. Facto este que, mesmo que mantidas as devidas proporções populacionais entre o país da “Cidade das Luzes” e a pátria de Camões, não me faria estranhar que a falta de hábitos de leitura dos nossos actuais escolares preferisse ver a adaptação cinematográfica de “Amor de Perdição”, de António Lopes Ribeiro (1943), a “perder tempo” em ler (ou sequer a folhear!) a respectiva obra literária que muito apreciada foi, em herança ancestral,  pela juventude do meu tempo.

Por estarmos em presença de um interculturalismo sem fronteiras geográficas, que o galo gaulês representa com panache, bem se compreende que o livro “Mistérios de Lisboa” (traduzido para francês por “Mystéres de Lisbonne”) esteja no (ainda segundo o jornal Público) “no top dos livros mais vendidos na Fnac Forum de Paris, a maior das lojas Fnac  do país”. Acresce que este interesse pelo escritor de São Miguel de Seide passa, outrossim, em citação da mesma fonte “pela edição francesa do livro “Amor de Perdição” (“Amour de perdition”), feita em França há uma dezena de anos e  difícil de encontrar nas livrarias”.

Desta  forma se cumpriu, uma vez mais, o aforisma português de que santos ao pé da porta não fazem milagres. Mas daí a cometer o pecado de expurgar a prosa camiliana, segundo Maria Amélia Vaz de Carvalho, “personificação do génio português”, da bibliografia dos programas escolares, representou um verdadeiro roubo feito à Literatura Portuguesa e à própria Cultura de um mundo sem fronteiras.

Camilo sofreu do pecado de se deixar enredar pelas teias da paixão escandalosa por Ana Plácido sem conseguir, por outro lado, libertar-se de uma sua outra paixão, esta de pendor literário: a polémica, por vezes, trauliteira. Polémica de que colho este exemplo em ataque dirigido ao jornalista Mariano Pina: “Cada vez mais charro. E perfeitamente um sapateiro de máscara a dizer pilhérias que tresandam ao cerol”.

Todavia, sempre que se fala de Camilo não podemos divorciá-lo do seu papel de grande vulto da Língua Pátria e, muito menos, do "ódio de perdição” que os responsáveis, ao tempo, da 5 de Outubro lhe dispensaram por omissão, ou mesmo assassinato, nos então vigentes programas da disciplina de Português do ensino secundário. 

A Língua Materna é, ou devia ser, obrigatoriamente, a argamassa da forma de nos expressarmos oralmente ou por escrito, de forma correcta, e que tanto útil, é, ou devia ser, aos cientistas, aos jornalistas ou mesmo ao simples homem comum. Um cientista incapaz de defender em português correcto as suas teses ou relatar as suas experiências científicas, um jornalista que tenha lapsus calami por sistema, um professor que num documento escreva “senhor presidente do ‘Concelho’ Directivo”, um aluno que, na ausência da muleta do corrector ortográfico dos computadores, em cada três palavras dê um erro, o homem comum que dê pontapés na gramática com o à-vontade de um Cristiano Ronaldo a chutar à baliza, tornam-se mais notados pela negativa,  no seu dia-a-dia, que um médico que não saiba distinguir o barlavento do sotavento, um professor de Português que não saiba somar fracções ou um aluno que “não entre” na Matemática prosseguindo, ipso facto, cursos das chamada Humanidades. Mas não se pense com isto, vade retro, Satanas!, que estou a descriminar qualquer destas formas de ignorância: todas elas merecem a minha reprovação por amputarem o homem de uma necessária cultura geral que acompanhe o conhecimento específico dos complexos saberes das diversas profissões.

Mas é bom que se retenha que a irresponsabilidade praticada, ao tempo, pelo Ministério da Educação sob a tutela do Partido Socialista se poderia ter tornado numa centelha do enredo do romance de ficção científica “Fahrenheit 451”, da autoria de Ray Bradbury, em que os livros eram incendiados por bombeiros de um regime totalitário para não distraírem as pessoas tornando-as menos produtivas.

Não, não estou, com isto, de forma alguma, a querer ver na proscrição da obra de Camilo, ou de outros autores portugueses que se notabilizaram no rico espólio da nossa literatura nacional, um sistema educativo tutelado por um regime totalitário. Apenas a pretender dizer que a ignorância oficial e oficializada é também ela uma forma de ditadura por roubar ao aluno o prazer cultural  da leitura escolar dos nossos melhores prosadores e poetas podendo, hoje, num tempo em que tanto  pânico causa o “´ébola”, a título de mero exemplo epidémico, vir a dificultar ao aluno espanhol a leitura de Cervantes, a complicar ao aluno francês o deleite da visitação do Museu de Louvre ou a empecer ao aluno alemão a audição da Orquestre Sinfónica de Berlim. Ou seja, uma Cultura de costas voltadas para as Belas-Letras, para as Belas-Artes e para a Música Clássica.

Em resumo, em reprovação do próprio Bill Gates, um mundo novo (admirável?) em que a matriz cultural poderá vir a ceder lugar às novas e miríficas tecnologias da invasão dos computadores nas escolas portuguesas em idades precoces: “Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história”.

5 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Professor Rui Baptista o processo de aprendizagem vai longe: ampara e renova, renovando-se de adaptar ao moderno.
Ler nada mais é do quê o resgate simbólico do conhecimento!
Digamos que vossa experiência de leitura graça em suporte vosso conhecimento; por que?
Porque sois inteligente, porque sois interessado em interagir na sociedade, porque é prazeroso desvendar, elucidar e concluir a resgatar opiniões mesmo que contrárias.

Isaltina Martins disse...

Na sequência do comentário anterior...
Não tem "graça", pois muito erro "grassa" por aí, pela falta de uma aprendizagem correcta da língua materna. É nos jornais, é na televisão, é na internet...
Daí a importância da leitura, de bons livros, em papel... sem menosprezo pelo digital...
Por isso é bom que se "resgatem" os grandes autores, aqueles que ensinam a construir frases com correcção, a reflectir sobre a língua, a construir um texto bem estruturado.

Anónimo disse...

É engraçado (ou engrassado?) que se arranjam sempre novos métodos para não se ensinar o que é essencial.
Os professores nunca têm tempo para dar a matéria toda no tempo disponível para as aulas.
Continua-se a confundir literatura com língua portuguesa e o que se deve dar nas aulas de língua portuguesa. Ora são matérias que apenas devem dizer respeito aos alunos de literatura nas faculdades e não cair nos programas de ensino de português, ora são obras dadas sem qualquer contexto histórico e muitas vezes cronológico,
Depois há as novas tecnologias, verdadeiras lentes de aumentar a ignorância, ensinam os facebooks, os twitters, mas não os Camilos e os Eças que estão ali à distância de umas palavras e cliks no google.
Foi o programa Magalhães, um autêntico fiasco e uma tendência pós modernista, apesar da ideia inicial ser boa e em termos de hardware o pc até ser mesmo muito bom. Pena que os professores, os alunos e as escolas não tivessem preparadas..
Depois têm sido umas modas esporádicas a ver se pegam, da introdução de tablets na sala de aula..
E temos ainda a ortografia, ultimamente achincalhada pelo "aborto" ortográfico! Uma pessoa não consegue ler sem tormento diversas obras ao longo do tempo, porque não fixaram o português logo em finais do século XIX como aconteceu com o francês e o inglês? Porque temos que andar constantemente a mudar as coisas? Ora se pharmacia se escrevia assim era por algum motivo concreto, tal como contracto se escrevia assim e não como se escreve agora, já ninguém vai sabendo o que escrever!

No meio desta questão uma transversal que nunca, mas nunca vi os autores do blog a discutirem, verdadeira aberração que passa incólume nas análises criticas ao ensino e que existe à décadas: a divisão demasiado precoce e profunda das ciências e do saber que no ensino secundário dá pelo nome de agrupamentos.
Mas será que nunca ninguém se debruçou sobre isto para perceber que é fatídico esta tendência de insistir em que têm matemática não pode ter história, em quem têm economia não vai ter filosofia, em que existe português A e B, História A e B e parece que já existe geografia A, B e C, mas o que é isto? Que justificações existem para estas idiotices? Quem fizer um ensino técnico vai ter português Y e Matemática Z?

O ensino deve estar fundamentado num conjunto de disciplinas base obrigatórias para todos os jovens em a possibilidade posterior de selecção de optativas para complementar a oferta, das primeiras obviamente que deve fazer parte tais como português, matemática, educação física, história e físico e química ou ambas.

Isaltina Martins disse...

Só uma informação para o comentário anterior: há muito tempo que não há Português A e Português B. A disciplina de Português é igual para todos os alunos, sejam eles da área científica, sejam das Humanidades. Há, isso sim, História A e História B, Geografia A e B e outras... Também concordo que o tronco comum devia ser mais alargado, mas tem de haver uma formação diferente, em algumas disciplinas, para os alunos que querem seguir um curso da área da Biologia ou da Matemática, por exemplo, ou um curso de Línguas.

Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista;

No caso dos cientistas talvez a questão seja ainda mais profunda, por exemplo observar-se na Obra do Professor Sebastião e Silva que, para este cientista, a linguagem correcta e o pensamento rigoroso são indissociáveis.

Por outro lado, em Portugal existe uma coisa esquisita, algo como uma espécie de provincialismo que não nos permite valorizar os nossos melhores, sejam eles escritores, cientistas ou outros intelectuais.
A este propósito, soube-se esta semana que morreu o matemático Alexander Grothendieck, todo o mundo matemático e não só fez “eco” dessa perda. O Presidente francês François Hollande saudou-o esta sexta-feira como “um dos nossos maiores matemáticos”.

http://www.publico.pt/ciencia/noticia/morreu-um-gigante-da-matematica-e-eremita-radical-1676308


Saberão os portugueses conhecedores deste episódio do Professor Sebastião e Silva, que retiro da sua biografia:

“Que o prestigio de Sebastião e Silva era de facto elevado nos meios internacionais mais categorizados, já nos primeiros anos da década de 50, documenta-o bem um episódio da sua carreira de “reviewer” da Mathematical Reviews. Quando chegou a vez de elaborar a recensão crítica da monumental tese de doutoramento de Alexander Grothendieck “Produits tensoriels topologiques et espaces nucléaires” (1955) – um dos mais importantes trabalhos matemáticos do século, foi a Sebastião e Silva que a revista americana confiou essa tarefa, rodeada de excepcionais melindres pelo raro quilate da obra a criticar, e pelas dificuldades da respectiva leitura. O matemático português concentrou-se nessa tarefa em dedicação exclusiva de todo um Verão, redigindo por fim o extenso parecer que ocupa páginas inteiras da Mathematical Reviews – facto extremamente raro, como bem se sabe.
Para quem saiba avaliar o que aquele encargo significa de superiormente honroso à mais alta escala no plano internacional, não deixará de constituir surpresa que o matemático português, protagonista do episódio, permanecesse àquele tempo relegado para o ensino propedêutico num Instituto Superior de Agronomia.”


Professor Rui Baptista, Alexander Grothendieck é considerado por muitos o maior matemático da segunda metade século XX. Vejamos que lugar “damos” ao nosso Sebastião e Silva em Portugal, e segundo o Professor Jorge Buescu:

“Tratando-se este livro de Matemática, façamos então a pergunta que se impõe: nunca houve então nenhum grande matemático português?
A resposta é: ao nível dos maiores do mundo, não. Nem um. Nem lá perto.” [Matemática em Portugal – FFMS]

Professor Rui Baptista, que a luta pelos nossos melhores valores não pode ser apenas confiada aos “especialistas” é um facto. Não podemos podemos confiar tudo isso a um Ministério ou a um individuo. Esse trabalho tem de ser também próprio da pessoa interessada, mas é trabalho e como tal, exige empenho e disponibilidade.

Cordialmente,

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossí...