domingo, 9 de novembro de 2014

C' est moderne, tout communique

Imagem do filme «Mon oncle», de Jacques Tati (1958)
Um artigo recente de Helena Damião despertou-me a atenção para uma petição que corre, promovida pela Associação de Professores de Matemática. Pretende pôr travão ao novo programa para o Secundário, de forma a limitar possíveis estragos nos curricula: do sucesso dos alunos depende — por décimas, como sabemos —, a entrada em cursos superiores. Fala a Associação em extensão, grau de abstração e em conteúdos só ensinados, atualmente, no ensino superior. A presidente da APM, Lurdes Figueiral, considera a abordagem extremamente formalista e teórica, distante da Matemática «do dia-a-dia», e faz o apelo público no sentido de ver o assunto discutido em S. Bento.
Isto ilustra na perfeição a confusão de narizes que grassa nestes assuntos.
Pensei que este ministro viesse pôr alguma arrumação na casa, mas já não penso tal coisa: Crato respondeu à necessidade de simplificação curricular e qualificação de docentes com a charada da interposição de metas curriculares após os programas, e com testes de QI para professores apanhados do lado de fora dos quadros de nomeação definitiva. Medidas precipitadas, as metas (houve erros de palmatória nalgumas), vergonhosas, os testes (a «classe docente» —o que quer que isto ainda signifique — juntou a outros agravos este, que coloca um chapelinho de papel de jornal numa imagem pública já debilitada).

A casa está desarrumada pelo seguinte:
— É impensável continuar a dar acesso a cursos, após a conclusão do 12.º ano, apenas por ponderação das médias das disciplinas de exame. Isto aplica-se a todos os cursos: licenciaturas, incluídas. Os exames do ensino secundário ainda vão tendo utilidade porque as discrepâncias de formação, de escola para escola são, por vezes, gritantes, chegando ao próprio incumprimento de programas; mas só servem para certificar o termo de um ciclo de aprendizagem e não para qualificar, per se, quaisquer vocações profissionais.
— Se alguma coisa se perdeu no ensino secundário português, nos últimos anos, foi a capacidade de raciocínio lógico. Dou-me conta disso no dia-a-dia das minhas aulas de Geometria Descritiva. Entretanto, este não é o dia-a-dia que refere Lurdes Figueiral: é o da aquisição de perícia lógica por parte de jovens que queremos preparar para a vida. A construção mental de um sistema de representação abstrato vive, amiúde, da capacidade de «ver» na mente, muito mais do que da de «ver no espaço»… e cada vez menos encontro raparigas e rapazes hábeis na progressão lógica — não retêm as premissas, perdem-se no desenvolvimento, acham as conclusões nebulosas — por simples falta de prática anterior, ou paralela.
— Confunde-se equiparação de qualificações com igualitarismo formativo: provavelmente, a Matemática de que precisa uma aluna de Ciências e Tecnologia não será a mesma de que precisa um aluno de Sistemas de Informação Geográfica; mas, se este deveria ter um curriculum de ensino da disciplina embebido na sua formação técnica, aquela não pode ter qualquer ajustamento ao «dia-a-dia», pela simples razão de que não sabemos que dia-a-dia vai ser esse. A aproximação ao «dia-a-dia» não deve ser disponibilizada pelo programa, a menos que estejamos a pensar em aplicações à Física, por exemplo; deve, isso sim, ser uma ferramenta didática da exclusiva responsabilidade de quem ensina, porque para isso mesmo serve o professor.
— O reflexo prático das atividades da mente não é, por outro lado, previsível de forma determinista, exceto na conversa de políticos mal preparados e, segundo parece, na Fundação para a Ciência e Tecnologia. Há instituições de investigação e investigadores que estão a ser alvo de cortes clínicos, nas recentes políticas de poupança, racionalização, pragmatização da distribuição de verbas para a Ciência. Entende-se a ideia da FCT quando se ouvem, do lado de quem nos governa, apelos às relações preferenciais com o universo das empresas. Esse é bom, por definição, e há necessidade de desenvolvimento de impulsos empreendedorísticos (a alma retorce-se-me com a redação da palavra!), e quejandos. Afinal, «poupança», «racionalização», «pragmatização» significam, tão só, isto: tomem lá para 50% da investigação, e produzam contratos com empresas alemãs.
— Não é, qualquer que seja a ponta por onde se pegue, necessário assegurar num programa, não olhando a meios, o sucesso de alunos em quaisquer disciplinas; é somente de assegurar que os conteúdos fazem falta no curriculum, para começar; e, cá fora, que são bem ministrados, para acabar. Evite-se a ideia de lhes ver utilidade, por um lado, mas adoçando a pílula sempre que são mais complexos, por outro lado: se se entende que são complexos, deverão ser encontrados meios para transmitir essa complexidade, colocando as disciplinas no sítio próprio. Nunca a simplificação de uma sinfonia de Mozart levou alguém a tornar-se fã de «clássica».

— É uma inanidade a tentativa de «democratizar» esta coisa da discussão sobre um programa de Matemática A para o ensino secundário, transportando-a para o Parlamento, por intermédio de uma petição: de todos os sítios neste mundo — porquê para o Parlamento? Porque não para a Divisão de Trânsito da Câmara Municipal de Lisboa? Aposto que há mais gente a perceber o interesse concreto da Matemática A.
Tal como na casa modernaça do «Mon oncle», tudo comunica na ligeireza com que se inspira l'air du temps. Há já quem fale de estudos de empreendedorismo (aarrrgh!), entendendo eu que isso será uma das qualidades dos nossos governantes atuais: deve ser, já que a maioria não parece ter outras, mais tradicionais…
Diga-se que, em meio estilo pessoal, o ministro acertou, desta vez, no cravo: é necessário rever o curriculum nacional, e os programas das disciplinas.
Acrescente-se que, no outro meio estilo pessoal, o ministro mantêm a ferradura velha e deformada, cheia de mossas — deu-lhe forte, nestes 3 anos! —, e deixa pairar a confusão. Em abono da verdade, agora, parece ser tarde para fazer o que quer que seja… Se Nuno Crato saísse para comprar fósforos e não regressasse, ninguém daria pela falta até ao próximo governo.
Porque, voltando à ferradura e ao cravo: já todos percebemos que o cavalo continua coxo.

António Mouzinho

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