Um
artigo recente de Helena Damião despertou-me a
atenção para uma petição que corre, promovida pela Associação de Professores de
Matemática. Pretende pôr travão ao novo programa para o Secundário, de forma a
limitar possíveis estragos nos curricula:
do sucesso dos alunos depende — por décimas, como sabemos —, a entrada em
cursos superiores. Fala a Associação em extensão, grau de abstração e em
conteúdos só ensinados, atualmente, no ensino superior. A presidente da APM,
Lurdes Figueiral, considera a abordagem extremamente formalista e teórica, distante
da Matemática «do dia-a-dia», e faz o apelo público no sentido de ver o assunto
discutido em S. Bento.
Isto
ilustra na perfeição a confusão de narizes que grassa nestes assuntos.
Pensei
que este ministro viesse pôr alguma arrumação na casa, mas já não penso tal
coisa: Crato respondeu à necessidade de simplificação curricular e qualificação
de docentes com a charada da interposição de metas curriculares após os
programas, e com testes de QI para professores apanhados do lado de fora dos
quadros de nomeação definitiva. Medidas precipitadas, as metas (houve erros de
palmatória nalgumas), vergonhosas, os testes (a «classe docente» —o que quer
que isto ainda signifique — juntou a outros agravos este, que coloca um
chapelinho de papel de jornal numa imagem pública já debilitada).
A
casa está desarrumada pelo seguinte:
— É impensável
continuar a dar acesso a cursos, após a conclusão do 12.º ano, apenas por
ponderação das médias das disciplinas de exame. Isto aplica-se a todos os
cursos: licenciaturas, incluídas. Os exames do ensino secundário ainda vão
tendo utilidade porque as discrepâncias de formação, de escola para escola são,
por vezes, gritantes, chegando ao próprio incumprimento de programas; mas só
servem para certificar o termo de um ciclo de aprendizagem e não para
qualificar, per se, quaisquer
vocações profissionais.
— Se alguma coisa se
perdeu no ensino secundário português, nos últimos anos, foi a capacidade de
raciocínio lógico. Dou-me conta disso no dia-a-dia das minhas aulas de
Geometria Descritiva. Entretanto, este não é o dia-a-dia que refere Lurdes
Figueiral: é o da aquisição de perícia lógica por parte de jovens que queremos
preparar para a vida. A construção mental de um sistema de representação
abstrato vive, amiúde, da capacidade de «ver» na mente, muito mais do que da de
«ver no espaço»… e cada vez menos encontro raparigas e rapazes hábeis na
progressão lógica — não retêm as premissas, perdem-se no desenvolvimento, acham
as conclusões nebulosas — por simples falta de prática anterior, ou paralela.
— Confunde-se
equiparação de qualificações com igualitarismo formativo: provavelmente, a
Matemática de que precisa uma aluna de Ciências e Tecnologia não será a mesma
de que precisa um aluno de Sistemas de Informação Geográfica; mas, se este
deveria ter um curriculum de ensino
da disciplina embebido na sua formação técnica, aquela não pode ter qualquer
ajustamento ao «dia-a-dia», pela simples razão de que não sabemos que dia-a-dia
vai ser esse. A aproximação ao «dia-a-dia» não deve ser disponibilizada pelo
programa, a menos que estejamos a pensar em aplicações à Física, por exemplo;
deve, isso sim, ser uma ferramenta didática da exclusiva responsabilidade de
quem ensina, porque para isso mesmo serve o professor.
— O reflexo prático
das atividades da mente não é, por outro lado, previsível de forma determinista,
exceto na conversa de políticos mal preparados e, segundo parece, na Fundação
para a Ciência e Tecnologia. Há instituições de investigação e investigadores que
estão a ser alvo de cortes clínicos, nas recentes políticas de poupança,
racionalização, pragmatização da distribuição de verbas para a Ciência. Entende-se
a ideia da FCT quando se ouvem, do lado de quem nos governa, apelos às relações
preferenciais com o universo das empresas. Esse é bom, por definição, e há
necessidade de desenvolvimento de impulsos empreendedorísticos (a alma
retorce-se-me com a redação da palavra!), e quejandos. Afinal, «poupança», «racionalização»,
«pragmatização» significam, tão só, isto: tomem lá para 50% da investigação,
e produzam contratos com empresas alemãs.
— Não é, qualquer que
seja a ponta por onde se pegue, necessário assegurar num programa, não olhando
a meios, o sucesso de alunos em quaisquer disciplinas; é somente de assegurar
que os conteúdos fazem falta no curriculum,
para começar; e, cá fora, que são bem ministrados, para acabar. Evite-se a
ideia de lhes ver utilidade, por um lado, mas adoçando a pílula sempre que são
mais complexos, por outro lado: se se entende que são complexos, deverão ser
encontrados meios para transmitir essa complexidade, colocando as disciplinas
no sítio próprio. Nunca a simplificação de uma sinfonia de Mozart levou alguém
a tornar-se fã de «clássica».
— É uma inanidade a
tentativa de «democratizar» esta coisa da discussão sobre um programa de
Matemática A para o ensino secundário, transportando-a para o Parlamento, por
intermédio de uma petição: de todos os sítios neste mundo — porquê para o
Parlamento? Porque não para a Divisão de Trânsito da Câmara Municipal de
Lisboa? Aposto que há mais gente a perceber o interesse concreto da Matemática
A.
Tal
como na casa modernaça do «Mon oncle»,
tudo comunica na ligeireza com que se inspira l'air du temps. Há já quem fale de estudos de empreendedorismo
(aarrrgh!), entendendo eu que isso será uma das qualidades dos nossos
governantes atuais: deve ser, já que a maioria não parece ter outras, mais
tradicionais…
Diga-se
que, em meio estilo pessoal, o ministro acertou, desta vez, no cravo: é
necessário rever o curriculum
nacional, e os programas das disciplinas.
Acrescente-se
que, no outro meio estilo pessoal, o ministro mantêm a ferradura velha e
deformada, cheia de mossas — deu-lhe forte, nestes 3 anos! —, e deixa pairar a
confusão. Em abono da verdade, agora, parece ser tarde para fazer o que quer
que seja… Se Nuno Crato saísse para comprar fósforos e não regressasse, ninguém
daria pela falta até ao próximo governo.
Porque,
voltando à ferradura e ao cravo: já todos percebemos que o cavalo continua
coxo.
António Mouzinho
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