domingo, 16 de novembro de 2014

DOMÍNIOS MORFOSSEDIMENTARES DE TRANSIÇÃO NA INTERFACE TERRA–MAR (3)

Estuários 
Estuário do Sena, de Claude Monet.
OS ESTUÁRIOS [1] são corpos de água localizados em reentrâncias da costa, coincidentes com as desembocaduras dos rios, nas quais a água do mar penetra e circula segundo um esquema que, em cada caso, se estabelece entre o regime do rio e as marés. É antiga e longa a discussão sobre o que é, exactamente, um estuário, sendo vários os critérios salientados pelos diferentes autores na sua definição. Todavia, uma característica comum a todos eles é a ocorrência de diluição da água do mar em água doce, de jusante para montante, o que não acontece nem nas lagunas nem nas fozes fluviais não estuarinas.

A existência de estuários pressupõe que, previamente, tenha havido escavamento do troço inferior (vestibular) dos vales, relacionado com um nível do mar mais baixo do que o actual, o que aconteceu devido ao glacio-eustatismo quaternário. O “diálogo” entre as acções marinhas e fluviais traduz-se não só pelas mudanças de sentido da corrente (fluxo e refluxo), mas também pelas diferenças de densidade, salinidade e temperatura, de montante para jusante e do eixo central para as margens.

Nos estuários, a água doce e a água salgada correm ora em sentidos opostos, ora no mesmo sentido. Os rios perdem aí competência e sedimentam uma parte da sua carga sólida, de granulometria variável, consoante a energia disponível nos diversos locais. A entrada de água salgada no estuário gera gradientes de densidade neste corpo aquoso com implicações na dinâmica sedimentar. Esta contaminação é responsável por fenómenos de floculação das partículas argilosas, igualmente com efeitos no processo sedimentar.

Dada a sua natureza e muito pequenas dimensões, as partículas de minerais argilosos e as mais finas do silte (ou limo), sujeitas a coesão entre si, floculam, isto é, formam pequenos agregados, ou flocos. Este processo reduz o tempo de suspensão desses sedimentos (ditos coesivos) e, por conseguinte, acelera a sedimentação.

Uma parte dos sedimentos finos fica, assim, no estuário e outra parte perde-se no mar, onde acaba por decantar, logo que as condições aí reinantes o permitam. Em certas situações, o fluxo de maré introduz no estuário sedimentos oriundos do litoral. A componente detrítica de natureza biogénica é importante na sedimentogénese estuarina e, entre os restos associados a este processo destacam-se as conchas dos bivalves e gastrópodes comuns neste tipo de ambiente salobro. Via de regra, os estuários correspondem a vales fluviais escavados durante a glaciação Würm, a que correspondeu uma importante regressão, tendo sido posteriormente invadidos pelo mar durante a transgressão induzida pelo subsequente melhoramento climático [2] .

Praticamente todos os rios portugueses, do Minho ao Guadiana, terminam em estuários mais ou menos amplos e de profundidades variáveis. Debitando caudais maiores ou menores, todos eles permitem a formação de restingas e cabedelos [3] . Estes correspondem a construções sedimentares, em geral de areia e mais raramente de cascalho, resultantes da interferência das ondas com a corrente fluvial. Estreitam as embocaduras dos respectivos rios e regulam-lhes a secção hidráulica. Todos eles, também, em épocas episódicas de maior caudal, em especial o do Douro, lançam no mar plumas túrbidas, isto é, injecções de águas turvas (barrentas) que penetram no mar como penachos e aí ficam até se dissiparem por decantação das finas partículas (especialmente argilas) em suspensão. Estas plumas, nas fozes dos rios, são visíveis de avião ou nas imagens de satélite como manchas nebulosas a turvar as águas
Plumas túrbidas
Em períodos de abaixamento do nível do mar, os estuários comportam-se como fornecedores de sedimentos para o litoral e para o largo. Em períodos de subida relativa desse mesmo nível, como está a acontecer no presente, os estuários funcionam como receptores e retentores dos sedimentos fluviais que lhes chegam vindos de montante, podendo, mesmo, atrair e capturar a deriva litoral ou corredoira [4] 


Estuário do Tejo


Um dos maiores da Europa, o estuário do Tejo penetra para o interior até Vila Franca de Xira, troço onde ainda se faz sentir a contaminação salina da água do mar. Este amplo acidente morfossedimentar do litoral português não é o resultado das dinâmicas marinha e fluvial, cujo confronto, em geral, lhes determina as características morfológicas e sedimentares. Resultou, sim, de um conjunto de acções, com particular relevância para as de natureza tectónica, decorrentes de um quadro estrutural bem definido por importantes sistemas de falhas.

Neste estuário distingue-se um canal de embocadura, estreito e profundo, com orientação sensivelmente E-W, a que se segue, para montante de Cacilhas, um alargamento dissimétrico alongado para NNE, de que faz parte o Mar da Palha. O canal de embocadura, mais conhecido por gargalo do Tejo, representa a actual abertura do rio ao mar, facilitada por um sistema de falhas subparalelas à referida orientação [5] .

A parte interior do estuário, a mais alargada e pouco profunda, situa-se no prolongamento do vale inferior do Tejo, a jusante de Vila Nova da Barquinha, também ele coincidente com uma directriz de ruptura da crosta, bem conhecida entre os geólogos por “falha do vale inferior do Tejo”, que se cruza obliquamente, na região de Cacilhas, com o já referido sistema de falhas do gargalo do Tejo. Este enquadramento tectónico e a presença, em profundidade, de uma estrutura diapírica [6] conduziram ao afundamento de uma área centrada a NE do Barreiro.

Esta subsidência, iniciada há cerca de 1,6 Ma, e ainda activa, explica o citado alargamento dissimétrico do estuário (o Mar da Palha) e as terras baixas e aplanadas do seu bordo SE onde nasceram e cresceram Alcochete, Montijo, Moita e Barreiro. As oscilações glácio-eustáticas, ao longo do Quaternário ou, por outras palavras, as variações do nível das águas oceânicas, resultantes da alternância de períodos de arrefecimento global (glaciários) e de aquecimento (interglaciários), adicionaram-se às acções que deram ao estuário do Tejo a morfologia que o distingue entre os demais e, consequentemente, também as suas características como ambiente de sedimentação.

Mouchões do Tejo.


Com os recuos do mar está relacionado o aprofundamento do gargalo, hoje em parte assoreado, mas que atinge o substrato rochoso (a base das aluviões) à cota -40m. Com a fase transgressiva que se seguiu ao máximo da glaciação Würm, relacionam-se as vastas lezírias [7] e também os mouchões que podemos equiparar, no seu conjunto, a um delta dominado pela maré, no interior do estuário, acumulado no troço do rio onde as suas águas, por perda de competência, depositam grande parte da sua carga sólida [8] .

Notas
[1] Do latim æstuariu. Do mesmo étimo dispomos do termo esteiro pelo qual se designam os canais no interior dos deltas e dos corpos intertidais como os rasos de maré e os sapais. Com ou sem divagação lateral, estes distributários pouco profundos, ou calas (do árabe kalla, margem de rio), asseguram quer o escoamento fluvial, quer o fluxo e refluxo das marés.
[2] A correspondente subida glacio-eustática do nível geral das águas teve lugar nos últimos 18 000 anos, coincidente com a deglaciação (degelo) que se seguiu ao Würm e que, nos últimos 10 000 anos (Holocénico), é conhecida por transgressão flandriana.
[3] Do latim, capitellum, pequeno cabeço ou cabo arenoso que se forma na foz de um rio.
[4] Migração do sedimentos ao longo da linha de costa, em resultado do vai vem da vaga em rebentação, quando esta incide obliquamente ao litoral. O mesmo que migração costeira e que deriva longilitoral ou longitudinal. 
[5] Em relação com este sistema de falhas, o compartimento a sul soergueu-se (à medida que se acentuava o sinclinal de Albufeira, na península de Setúbal), sendo disso testemunho a arriba entre Cacilhas e a Trafaria, de morfologia muito jovem, com vales suspensos.
[6] Estrutura relacionada com a existência, em profundidade, de camadas sedimentares evaporíticas (gesso e/ou sal-gema do início do Jurássico), materiais que, pelas suas fraca densidade e grande plasticidade, induzem deformações nas sequências sedimentares que se lhes sobrepõem, num estilo dinâmico, muito particular, referido por haloquinese ou halocinese, do grego halos, sal, e kineo, movimento. 
[7] Terreno plano, aluvial, muito recente, situado nas margens do rio, alagado nos episódios de enchente (em condições naturais). A construção de barragens altera esta última característica. Lezíria, do árabe al jazīrâ, pode ser também sinónimo de mouchão. Todavia, este implica a condição de ser rodeado por canais que podem estar ausentes na lezíria.
[8] Neste caso, a carga sólida é essencialmente formada por areias. As partículas mais finas ou sedimentam em vaseiras intertidais nas margens do estuário interior, ou percorrem o estuário em suspensão, saindo para o mar sob a forma de plumas túrbidas e aí se dispersam e decantam.

A. Galopim de Carvalho

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