Minha crónica no Público de hoje (na imagem;: cartoon de um jornal venezuelano alusivo à falta de papel naquele país):
O Estado português está quase
falido. Um bom indicador da proximidade da falência é a falta de papel nos serviços públicos. Neste
final do ano, já não há papel nas universidades e nas repartições de impostos, e
só restam algumas folhas nas esquadras de polícia.
Eu sabia que, nas instituições de
ensino superior, há já alguns meses que o papel estava em racionamento, em face
do drástico aperto orçamental. Agora acabou. Os cursos e projectos que eram de papel
e lápis passaram a ser só de lápis, aproveitando-se as costas do papel usado. O
pior é que a maior parte dos cursos e projectos exigem experiências laboratoriais.
O ministro da Educação e Ciência, um renomado matemático, não sentirá
porventura com suficiente acuidade as necessidades dos químicos, que além de
papel e lápis precisam de vidros e reagentes, pelo que foi bastante oportuna a
reacção dos reitores, em nome dos docentes e investigadores.
Recentemente, numa Repartição de
Finanças onde fui cumprir uma obrigação fiscal, fiquei a saber que lá também já
não há papel. Quiseram não só ver o meu cartão de cidadão, um costume muito
português, como também ficar com fotocópia dele, um outro costume muito nosso.
Não sei por que razão os serviços do Estado querem, repetidamente, cópia de
informação que, algures, lá têm e poderiam obter facilmente se acaso falassem
uns com os outros. Mas, habituado que estou a passar o cartão a funcionários do
Estado, autorizei o que estava à minha frente a fazer a respectiva cópia. Fiquei,
porém, surpreso quando ouvi que eu é que tinha de entregar a cópia. Como
contribuinte empenhado numa solução rápida, prontifiquei-me a ajudar do outro
lado do balcão. Mas não, ali ninguém, nem eles nem eu, podia fotocopiar. Porquê?
Porque, disseram-me, não havia papel. Ao faltar nos cofres o papel-moeda, estava
a faltar nos serviços a moeda para o papel. Só então me apercebi das verdadeiras
proporções da crise: As Finanças, que
sempre tinham tido montes de papel, agora nem uma resma têm. Eu, que não tinha comigo
nenhuma folha, ofereci-me, condoído, para ir buscar algum papel a minha casa
(estaria a casa de banho deles também carente e não seria melhor trazer um rolo?). Não, não queriam o meu papel. O meu papel seria ir ao quiosque da
esquina pedir uma fotocópia. Queriam de mim um contributo, ainda que modesto,
ao comércio local. Estava perante uma parceria público-privada.
Foi nessa altura que me surgiu, num
clique, uma saída para a falta de papel nas Finanças. Simples, muito simples. As
Finanças cobrariam as fotocópias aos
contribuintes que ousassem aparecer com os documentos mas sem as cópias na mão.
Como nas Finanças um cidadão deixa o couro e o cabelo, pagar uma mera folha A4
não seria para ele significativo. Todos juntos pagaríamos a resma. Mas não, assim
como não aceitaram o meu papel, também não quiseram saber do meu simplex. Uma vez que a negativa foi de
um funcionário, que não funciona por míngua de papel, pode ser que que a ministra
de Estado e das Finanças aceite o pagamento das fotocópias como uma ajuda ao Estado depauperado. O Ministério das Finanças poderia até lançar
um imposto do papel. Quer papel? Pague! As florestas agradeceriam.
Estou, claro, a partir do
princípio de que as Finanças, viciadas como estão em papel, não podem passar
sem ele. Mas o facto é que podem, se fizerem um conveniente desmame. Hoje em
dia há scanners e computadores baratos que podem fazer e guardar uma
cópia de qualquer documento, prescindindo por completo do papel. Na Repartição
podiam ter digitalizado o meu cartão e guardado os bits bem guardadinhos. Receio, contudo, que o nosso Estado continue
a andar aos papéis, sendo moderno só na aparência. É certo que a Direcção-Geral
dos Impostos envia cartas intimidativas pela Internet, mas não é menos certo
que elas seguem amiúde para o destino errado. Há dias recebi um email
oficial ameaçando-me por não ter feito a declaração do IRS, quando eu a tinha apresentado no prazo. Não
perderam o papel, porque a declaração tinha sido electrónica, mas devem ter
perdido os bits. Sugiro que, através
do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os peçam à NSA norte-americana, que
controla a circulação electrónica mundial.
Apesar do desgoverno, a falência
do Estado ainda não está consumada. Pouco depois do episódio das Finanças tive
que ir à polícia apresentar um documento que não encontrei no porta-luvas do
carro durante uma operação stop. O
meu cartão de cidadão foi novamente solicitado para a inevitável fotocópia (a milésima
cópia que o Estado fazia dele) e, aleluia, naquele lugar, havia fotocópias SCUT,
sem custos para o utilizador. Em Portugal, os polícias aindam podem fazer coisas
que os professores universitários e os trabalhadores fiscais não conseguem. O
Dr. Miguel Macedo ainda tem o papel que falta ao Doutor Crato e à Doutora
Albuquerque.
3 comentários:
"renomado matemático" ??? A ironia, a ironia.
Gostei muito desta sua crónica, como aliás, genericamente, costumo gostar. Esta pôs dedo numa ferida que urge tratar. Certos comportamentos, nomeadamente de organismos do estado, lembram-me o aforismo: poupar no farelo para esbanjar na farinha. É que nem no farelo...
O caso que cita do papel é paradigmático basta ver, por exemplo, o contributo do ME ao exigir relatórios e mais relatórios, fichas e mais fichas, etc. Mas há muito mais. Muitos dos aparelhos de ar condicionado de organismos público e não só, estão de tal modo mal regulados que ao entrar nos mesmos se treme de frio no verão e se transpira no inverno
( infelizmente não é um fenómeno apenas português).
Nas casas de banho, as torneiras “automáticas” estão também genericamente mal reguladas. Nalgumas já tenho feito a experiência de lavar as mãos dos meus quatro netos, as minhas, e após as cinco lavagens a água continuar ainda a correr.
Quanto não poderiam poupar estado e cidadãos se fizessem um uso racional de bens essenciais? Mas é mais fácil decretar reduções de salários(ALGUNS) e pensões(ALGUMAS), aumento de impostos, etc, etc
Regina Gouveia
Muito bom o que bem escreve. Muito mau ao que este nosso País, chegou.
Abraço
Augusto
Enviar um comentário