Dizia eu em texto anterior que a mentalidade vigente é de avaliar tudo e todos, classificando pessoas, instituições, programas, iniciativas, sistemas, seja o que for. E isto para decretar o quê ou quem é superior e inferior, o quê ou quem é mais-qualquer-coisa ou menos-qualquer-coisa, o quê ou quem vale tudo ou nada vale, o quê ou quem é superior e inferior… Em suma, para decretar o quê ou quem deve ser glorificado e abatido.
O cenário em que essa mentalidade se instalou é um misto de positivismo exacerbado e de pós-modernismo laxista, o cenário perfeito para a emergência das mais diversas falácias. Explico.
1. A falácia do “para se saber”. Todos e tudo têm de estar, a todo o momento, e relativamente a todos os aspectos, sob escrutínio. Digamos que têm de estar sob um “olhar supra”, capaz de provar a sua localização inequívoca numa qualquer escala. Obtêm-se distribuições muito bem arrumadinhas em gráficos ou tabelas e… descansa-se: está tudo ali!
- “Mas, desculpe… porquê?” – pergunta um sujeito ligeiramente céptico.
- “Para se saber…” –
O sujeito insiste: - “Mas, para se saber o quê? E para quê?”.
O ping-pong continua e, a páginas tantas, só pode ser arrumado com um “porque sim”.
2. A falácia da igualdade e, já agora, da justiça. A igualdade é um argumento que o sujeito ligeiramente céptico pode ter ouvido nesse ping-pong de perguntas e respostas, e volta a ele, mas o que ouve é:
- “Nada nem ninguém é mais ou superior e, nessa medida, tem de se subordinar às mesmas regras”.
E ouve mais: - “É uma questão de justiça!”
O sujeito adivinha o argumento que sustenta as duas afirmações: “porque sim”, naturalmente…
3. A falácia da confiança. As declarações acima não impedem que o sujeito ligeiramente céptico fique com a desagradável impressão de ter detectado uma “admissível e permanente” suspeita que recai sobre tudo e todos. Mas, suspeita por parte de quem? E porque é que alguém suspeita de tal maneira? E, porque é que a suspeição desencadeia algo que se aproxima, muito perigosamente, do vigiar?
Bom… passa à frente… porque o seu interlocutor disserta agora sobre a perfeição.
4. A falácia da perfeição. “A avaliação permite chegar à perfeição”, é outra afirmação que o sujeito ligeiramente céptico ouve. Argumenta:
- “A perfeição é algo que, na verdade, nunca se pode conhecer, é um fim que se deve querer alcançar, sim; porém, bem vistas as coisas, a sua natureza dita que não se possa alcançar, é um problema em aberto, é aquilo que faz correr, mas que se situa sempre a uma distância…”
5. A falácia da infalibilidade de critérios. O sujeito é interrompido:
- “Por isso há critérios de avaliação que garantem que o processo seja imparcial e se obtenham resultados confiáveis”.
- “Sim, mas a fundamentação dos critérios, a sua origem, alguns parecem decorrer da aleatoriedade…”
O interlocutor continua: - “Tem de haver indicadores. Sabe o que são indicadores? Os indicadores indicam. Indicam objectivamente…"
O sujeito percebe no diálogo aquela perigosa atitude que se designa por “triunfo da vontade”: "Quer-se, faz-se! O querer é tudo”. Quem não quer, tem algo a temer ou a esconder, ou as ambas as coisas. Há-de haver alguma razão para se recusar a fazer... E disso teve a certeza quando ouviu a pergunta inevitável:
- “Não me diga que é daqueles que não quer se avaliado, nem quer avaliar!?”
Apanhado na sua própria teia, o sujeito ligeiramente céptico, retira-se apreensivo.
(Continua)
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3 comentários:
Cara Helena
E quem avalia os avaliadores? quem define os critérios? Quem define os indicadores?
É que o sistema avaliativo é externamente bonito e pomposo, cheio de palavras caras, de textos com tamanho 16, construções pós modernas e outras coisas assim ao jeito de quem fala de tudo e não diz nada.
Estas manias avaliativas servem para manterem os mesmos no cimo e remeter os outros lá para baixo, quem faz as avaliações em Portugal está feito com o poder e com a classe que o detêm, é mais uma arma de manter corruptos e incompetentes no comando da máquina burocrática a decidir para onde vão os dinheiros públicos..
(...)
Triste por ver que não lhe ligavam nenhuma, o alcatraz soltou um doloroso gemido. Olívia lembrou-se de repente porque é que tinha subido ao passadiço e virou-se para o pobre ferido.
– Posso apanhá-lo capitão? – perguntou ela.
– Com certeza, se não tens medo que ele te morda! - disse o capitão.
– Mas os pássaros não mordem – disse Olívia.
– Ah! Ah! Ah! é que esse pássaro não é um pássaro vulgar.
– Então o que é? – perguntou Didi.
– Não sei – disse o capitão – o que prova claramente que não é um pássaro vulgar, porque esses conheço-os eu: temos a pega, a bugigansa, o escorvém, o paneiro de xadrêz, a moedura, o gaviãozito, o cardume, a abetarda e o cantropo, o verdete das praias, o marcha-a-olho e o sempre-em-concha; além destes, podemos citar a gaivota e a galinha vulgar, que eles chamam em latim cocota deconans.
– Bolas!... o capitão sabe imenso! – murmurou Didi.
– Foi para isso que aprendi – disse o capitão.
(...)
Boris Vian, O Outono em Pequim. Tradução de Luísa Neto Jorge. Publicações D. Quixote (1989).
– Porque é que eu tenho de saber isso? – Foi uma pergunta que, como professor, ouvi centenas ou milhares de vezes. Sempre que isso acontecia lembrava-me desta passagem, que conhecia desde os meus 18 ou 19 anos, e apetecia invariavelmente responder: – Para saber!...
O conhecimento pode realmente ser um fim em si. Já a avaliação nunca o é. Mas torna-se obrigatória sempre que alguém pretende ou exige uma classificação ou a certificação de uma aptidão...
A questão dos critérios de avaliação, ou melhor, da sua objectividade, é mais complexa. Entre uma classificação nula (não sabe nada do assunto) e máxima (sabe tudo sobre o assunto), as gradações intermédias não podem ser aleatórios mas também não há forma de os tornar objectivos, pelo que seria preferível aceitar um determinado grau de subjectividade...
Concordo.
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