sábado, 25 de agosto de 2012

A normalização da maldade

Muitos leitores concordarão que as imagens de tortura praticada em Abu Ghraib por soldados americanos são repulsivas. E são-no de tal modo que, para se ver uma sequência é preciso, por várias vezes, desviar o olhar, respirar fundo e afastar qualquer pensamento. Exactamente o mesmo exercício que as fotografias dos corpos mortos ou vivos encontrados nos campos de concentração nazi requerem ou a leitura do Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, ou a apreciação dos quadros sobre os fuzilamentos de Maio, de Francisco de Goya

A lista podia continuar mas, como ponto de partida deste texto, queria concentrar-me em Abu Ghraib para dizer que mais impressionante do que as próprias imagens é um documentário que vi há algum tempo – Fantasmas de Abu Ghraib, da autoria de Rory Kennedy – centrado nos depoimentos de torturadores. E digo isto em virtude do conteúdo desses mesmos depoimentos.

Retenho de modo particular o discurso da soldado que aparece a segurar a trela posta num preso como se de um cão se tratasse, pose que a tornou conhecida no mundo inteiro. Passaram-se anos, engordou, foi mãe, tem um ar quase doce, é modesta a falar, o tom é hesitante, algo desorientado mas a culpa não está excluída, parece arrependida e desgastada, refere as repercussões que os seus actos têm na sua família. É, voltada à vida civil, uma pessoa absolutamente comum, uma pessoa que podia um “eu” qualquer.

No seu discurso dá a entender que o que de horrível aconteceu, foi o resultado do clima de pressão imposto por superiores para salvar o país, o ocidente, o mundo de forças maléficas; do estranho afecto que sentia por um oficial e da manipulação dele; da inebriante pressão do grupo para levar avente uma "ideia", incluindo a de fotografar tudo... Afinal, não sabe bem o que fez com que tivesse "participado naquilo tudo".

Levei-a a sério, acreditei nela. A noção de banalidade do mal de Hannah Arendt não podia conduzir-me a outro juízo. Mas, a noção no sentido original, avançado e usado pela filosofa que assistiu ao julgamento de Adolf Eichmann e, em virtude disso, escreveu o clássico Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal.

Stenphen Reicher e A. Alexander Haslam (professores das universidades de St. Andrews, Escócia e de Exeter, Inglaterra, respectivamente), num artigo intitulado A normalização da maldade: Uma perspectiva acerca das raízes psicológicas do ódio colectivo, publicado no livro A maldade humana: Fatalidade ou educação? (Almedina, 2008) retomam esse sentido, sistematizam-no e convocam dados de investigação para o corroborar. 

Vale a pena ler a seguinte passagem (páginas 33-35) que a capa, criada por Ana Boavida ilustra de modo exemplar: um monstro que vomita um monstro que, por sua vez, vomita outro monstro, e por aí adiante...:
“O termo banalidade do mal entrou no léxico popular popular e adquiriu uma vida autónoma em relação ao livro de onde provém. Com efeito, o uso da expressão tornou-se tão vulgar e simplista quanto o texto original é rico e repleto de nuances (cf. Newman, 2001). Como consequência, aquilo a que Arendt se referia como banalidade do mal é muito mal compreendido e representado. De facto, o termo é propenso tanto a erros por acção como a erros por omissão. É mais fácil lidar com os primeiros (cf. Waller, 2002). Com certeza que Arendt não quis dizer que Eichmann desempenhou um papel trivial no Holocausto, nem que ele não fez mais do que aquilo que uma hoste de funcionários menores também fizeram. De igual modo, não quis dizer que o Holocausto não foi diferente de muitos outros actos de maldade ou que os actos de maldade do Holocausto eram triviais ou prática comum (cf. Waller, 2002). Arendt não era apologista do Eichmann, não negava o Holocausto, nem o trivializava. A referência à banalidade não se dirigia à natureza dos actos nazis, mas à natureza dos actores. É em relação a este último aspecto que os problemas de omissão se tornaram relevantes, uma vez que a argumentação de Arendt envolvia três elementos centrais.
O primeiro, era que Eichmann e outros como ele não representavam um tipo psicológico fundamentalmente distinto dos restantes indivíduos. As circunstâncias podem ter levado estas pessoas a comportarem-se de modo diferente das pessoas que viveram em tempos mais calmos, mas não podemos ter a certeza absoluta de que mesmo nós não nos tornaríamos assassinos se estivéssemos no seu lugar. Este será, porventura, o aspecto mais inquietante do seu argumento. Retira-nos a confortável ilusão de que estes assassinos pertencem a uma espécie diferente de indivíduos. Assim sendo, não nos podemos limitar a colocar questões acerca deles. Temos que começar a colocar questões preocupantes acerca de nós mesmos.
Ligado a este aspecto e, em segundo lugar, Arendt sugeria que os seus actos surgiram de motivos normais que a maioria das pessoas partilha: o desejo de ser valorizado e aceite pelos outros, de fazer o seu trabalho bem feito e progredir na carreira. Na maior parte das vezes, estes motivos podem conduzir a actos inofensivos ou até mesmo nobres, tal como Newman (2001) ilustra. Mas querer ser aceite por racistas e fanáticos tem, decididamente, consequências perigosas. Dependendo dos grupos que temos ao nosso dispor para esse fim, o desejo de ser aceite e de obter aprovação pode levar-nos para direcções muito distintas. Pondo as coisas de outro modo, a variabilidade dos resultados comportamentais é menos uma questão de diferenças psicológicas do que de oportunidades sociais.
A combinação destes dois argumentos constitui aquilo que é, provavelmente, a principal forma como a banalidade do mal é entendida. Esta é a ideia de que qualquer um o pode fazer e o sentimento associado de que graças a Deus, não estou naquela situação. Esta perspectiva é apoiada por muitas investigações recentes acerca do Holocausto, que mostram que os indivíduos envolvidos nos assassínios poderiam ser descritos, correctamente, como homens comuns – o título da análise de Browning (1992) às actividades do Batalhão de Reservistas da Polícia (BRP) 101 (...) uma das unidades móveis de matança que operou na Polónia ocupada pela Alemanha e que, sozinha, matou, pelo menos, 38.000 judeus entre Julho de 1942 e Novembro de 1943.
Browning mostra como os membros deste batalhão não eram fanáticos - para além do mais, antes da guerra, eles eram mais anti-nazi do que a norma. Contudo, eles executaram as suas ordens assassinas, mesmo quando tinham a oportunidade de as rejeitar. Esta constatação leva Browning a concluir o seu livro com a seguinte questão: «se os homens do Batakhão de Reservistas da Polícia 101 se puderam tornar assassinos sob tais condições, que grupo de homens está imune a isto?» (1992, p. 189).
Existe, no entanto, um terceiro argumento na afirmação de Arendt, que deriva do seu trabalho anterior, publicado em 1951, acerca do totalitarismo. Este trabalho prende-se com os processos psicológicos que permitem que homens comuns (e eles, quase sempre, são homens) cometam massacres em massa. De uma forma clara, ela evoca um falhanço da imaginação e não um falhanço da consciência. Isto é, os assassinos tornam-se obcecados com o processo de fazer o seu trabalho. O seu sentido do bem e do mal restringe-se a quão bem e, até mesmo, quão criativamente eles cumprem o que lhes é pedido. Nunca erguem o seu olhar para verem além do seu emprego e considerarem as consequências do seu trabalho. Com certeza, nunca consideram a perspectiva das vítimas. Por vezes, este facto é usado para sugerir que os assassinos são irreflectidos ou não pensam. Talvez isto seja um pouco enganador. Em vez disso, o problema coloca-se no horizonte restrito ao qual aplicam o seu pensamento. Como diz Arendt, Eichmann “não tinha quaisquer motivos”. Dizendo isto de uma forma mais coloquial, “ele, simplesmente, nunca se apercebeu do que estava a fazer” (Arendt, 1992, pp. 287-8)."
Como acima referi, o subtítulo livro de onde esta citação foi tirada traduz uma interrogação preocupante: a maldade constitui uma fatalidade a que não podemos fugir ou a educação permite-nos superá-la?

O que podemos responder é que, com base na investigação 
de que dispomos, com destaque para a que se faz na área da pedagogia, é impossível emitirmos uma resposta segura.

Uma simples constatação não parece permitir-nos confiar demasiado na educação: no início do século XX os alemães eram o povo com mais educação formal e, em função disso, com mais desenvolvimento científico e tecnológico, mais produção e acolhimento das artes; a partir de meados do mesmo século os Estados Unidos da América tomaram a dianteira...

É claro que este raciocínio, muito global como todas as falhas que daí advêm, não pode nem deve, em circunstância alguma negar a importância da educação.


O que procuro dizer é que quem tem responsabilidades educativas deve saber conviver com essa interrogação.

5 comentários:

Anónimo disse...

Este post é dos mais profundos e problemáticos que aqui se têm colocado. O mal é uma fatalidade de certas naturezas ou caracteres,ou é fruto de certas circunstâncias? O livro referido coloca, no título, e sobretudo no subtítulo a questão: o mal é uma fatalidade inevitável, em certas circunstâncias e com certas pessoas, ou é o fruto das deformações que a má educação - nas múltiplas formas em que se pode provocar? Ninguém pode garantir ao certo se é uma coisa ou outra, e os estudos que o livro apresenta revelam precisamente essas possibilidades, em aberto.Uma coisa parece certa,como vemos ainda hoje um pouco por todo o mundo, as guerras e outras situações de limite criam condições favoráveis aos crimes mais terríveis e mais imprevisíveis. E se é certo que certas pessoas são (serão)tudo indica, incapazes de praticar certos crimes, ninguém pode estar descanso sobre isto e estar seguro de um dia, em certas situações não o poder fazer ou não ser conivente. Por outro lado, a civilização é um bem precário e melindroso. Perdidas certas condições e regras, descamba-se rapidamente nos piores horrores. Por isso é que os demagogos e os políticos mais populistas e irresponsáveis se tornam tão perigosos.O bem é uma conquista de todos os dias e não um estádio alcançado. Não é por acaso que as mitologias mais variadas apresentam a luta entre o bem e o mal como eterna e sem quartel. Ninguém pode ceder ao mal, pactuar com ele, pensar que lhe está imune e, sobretudo, que as sociedades podem construir-se sem normas e princípios que tenham uma ideia de bem que as oriente e defenda.

Xico disse...

Uma mulher iletrada e ignorante de Trás-os-montes agarra numa enxada e mata o vizinho ou o estrangeiro que lhe venha roubar as terras, mas reconhecerá o direito à vida e à sua terra a índios, judeus ou negros, porque com todos eles se identifica como ser humano. Pergunto se não foi a educação do povo alemão, com teorias mal assimiladas de Darwin e outras genéticas e rácicas tão na moda que fizeram dissociar uma determinada raça do grupo de seres humanos? Isto é. O extermínio em massa dos judeus seria possível em Trás-os-Montes sem ser numa acção violenta e desesperada? Lembremos que se procurava dar a morte aos judeus com o menor sofrimento possível, como se faz aos animais. Não é isso fruto de demasiado racionalismo. Não sei se me fiz entender... julgo que não.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professora Helena Damião;

Ao ler o seu post fiquei surpreendido com muito do que lá está escrito;

A Senhora Professora diz “Uma simples constatação não parece permitir-nos confiar demasiado na educação:” permita-me que discorde, e lhe diga, desde logo, que com essa afirmação serve muito bem os interesses daquelas 'Vozes' que, como dizia o Professor Bento de Jesus Caraça (conferencia a Cultura Integral do Individuo) “... Problema grave, e tanto, que não faltam as vozes que, para o resolver, advogam um abandono da cultura por verem nela, não um meio de elevar, mas sim de diminuir a condição humana.”

Quanto à citação “mas não podemos ter a certeza absoluta de que mesmo nós não nos tornaríamos assassinos se estivéssemos no seu lugar.” ela não é mais do que uma tentativa de diminuir a condição humana, de desvalorizar a cultura e a sua importância no homem; repare que esta frase é tão ofensiva quanto absurda, que nenhuma pessoa culta pode aceitá-la, está fora da esfera dos sentimentos humanos; não deve ser confundida com aquela outra que li, esta sim, é bem verdade e real “A gravidade de um crime nem sempre reflete traços mais graves da personalidade dos condenados. Há homicidas nem melhores nem piores que muitos outros que nunca o foram nem serão”[Manuel Tiago - A estrela de seis pontas] são afirmações distintas, a primeira é inaceitável, é um ataque aos sentimentos humanos, cuja finalidade é essa a de diminuir a condição humana.

E, devo dizer-lhe ainda que na Alemanha, verificava-se “a existência, lado a lado, de manifestações da mais alta civilização e da mais negra barbaridade”.

Mas leia por favor a nota II do fim da conferencia que lhe trará certamente algumas perspetivas e ideias diferentes daqueles que possui. É muito interessante a nota, inicia-se desta forma:

“NOTA II - O leitor poderá perguntar se o despertar da alma coletiva das massas tem algum significado real para a marcha da civilização tal como foi esquiçada atrás, ou se, pelo contrário, a experiência dos últimos anos mostrou ou não que esse despertar se deu (Alemanha e Itália) num sentido de expansão imperialista e, consequentemente, de regressão de liberdade.”

(...)

Cordialmente,

José Batista da Ascenção disse...

Caríssima Professora Helena Damião

O texto citado, em fundo rosa, está duplicado a partir do "meio", o que o torna excessivamente longo e pode desencorajar a sua leitura.

Já agora, os dois primeiros argumentos centrais de Arendt remetem-me para um dito da aldeia onde nasci, frequentemente dirigido aos jovens, quando ainda os havia lá, pelas pessoas mais velhas, especialmente pais e avós:

"Junta-te aos bons, serás um deles. Junta-te aos maus, serás pior do que eles"

Situações que, várias vezes, me trouxeram à memória este dito foram certas ações públicas de alguns jovens nos arremedos de "praxe" que proliferaram em universidades portuguesas, com maior incidência, talvez, nas que foram criadas no terço final do século passado. Não sei se por os mais velhos terem deixado de fazer advertências aos mais novos...

Helena Damião disse...

Agradeço ao leitor Joaquim Manuel Ildefonso Dias o seu pertinente comentário. A questão que levanta é muito pertinente, procurei dar-lhe resposta nos próximos dias escrever outro texto.
Agradeço também ao leitor José Batista da Ascenção a identificação da repetição de informação feita durante a cópia e o seu contributo para a discussão.
Cordialmente,
Helena Damião

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