sexta-feira, 31 de agosto de 2012
Porque só o conhecimento traz liberdade...
No passado mês de Junho uma escola secundária com 3.º ciclo apresentou um projecto que intitulou “Secundário Superior”. Tal projecto, que começa a funcionar já no próximo ano lectivo, parte do princípio que a escola, cada escola, deve empenhar-se no desenvolvimento cognitivo de todos os seus alunos, incluindo aqueles que demonstram rendimento académico satisfatório.
Atentos que temos estado - investigadores, sistemas de ensino e sociedade em geral - aos alunos com mais dificuldades de aprendizagem, motivacionais e/ou sociais para que eles cheguem a patamares mínimos, fomos negligenciando aqueles que se envolvem em certas matérias e as aprendem com maior rapidez e facilidade.
Afastando determinismos relacionados com capacidades (ou incapacidades) inerentes aos próprios alunos, só deles dependentes e incapazes de se alterarem; considerando, pelo contrário, que o ensino é fundamental para todos chegarem mais longe, o projecto em questão procura operacionalizar de modo amplo a noção de «escola inclusiva». Pelo interesse da iniciativa, achámos pertinente falar com Henrique Coelho, director da Escola Secundária Adolfo Portela (ESAP).
P: O projecto «Secundário Superior» surgiu e tomou forma quando e como?
R: O projeto foi surgindo, mas só no final do passado ano letivo nasceu verdadeiramente, depois de reunir com alguns professores que me ajudaram a explicitar e formalizar aquilo que se vinha desenhando. Se, numa primeira fase, a escola se preocupou essencialmente com a eficiência e eficácia, trabalhando no sentido de garantir a aquisição e desenvolvimento de competências fundamentais por todos os alunos, com o seu sucesso escolar e educativo, era agora altura de se afirmar como verdadeiramente inclusiva, isto é, preocupar-se também com um ensino de qualidade e mesmo de excelência (a realização de Cursos Avançados, na ESAP, no ano letivo anterior, ao abrigo do protocolo estabelecido com o Instituto de Educação e Cidadania, dirigido pelo Doutor Arsélio Pato Carvalho mostrava-nos que isto era possível). Na verdade, há muito que nos preocupava a possibilidade de os melhores alunos – os mais ambiciosos, aqueles que manifestavam vontade e potencialidades para a excelência – serem, de alguma forma, esquecidos, preteridos em função daqueles que revelavam mais e maiores dificuldades. Impunha-se, pois, compatibilizar a equidade com a excelência, trabalhando para o sucesso de qualidade e não apenas para o combate ao insucesso.
A batalha contra o insucesso estava ganha e consolidada pela ESAP – as elevadas taxas de aproveitamento e as taxas residuais de abandono escolar dos últimos anos revelam-no. Tal terá resultado, também, da reflexão crítica e consequente aperfeiçoamento de algumas práticas pedagógicas, nomeadamente no âmbito do Projeto TurmaMais, a que a escola se candidatou e em torno do qual se foram desenvolvendo sinergias que têm conduzido, inequivocamente, a um ensino básico de (maior) qualidade. O percurso efetuado pela ESAP e (re)conhecido pela comunidade educativa tornava evidente a possibilidade (e, nessa medida, a necessidade) de um segundo passo: a aposta na qualidade superior e mesmo na excelência, na maximização das potencialidades cognitivas dos nossos alunos. Foi desta ambição que surgiu o atual Secundário Superior e o desafio era concretizar um ensino secundário que fosse para além dos cânones estabelecidos. Já não pedia apenas que «cumpríssemos» a nossa função enquanto profissionais da educação – propunha que o fizéssemos subordinando todo o trabalho de planificação, execução e avaliação a critérios de excelência.
Propunha que não nos conformássemos com as batalhas ganhas, mas partíssemos delas para propor outras, mais exigentes e mais difíceis, mas também mais motivadoras; que ousássemos ser ambiciosos, recusando a mediania, a mediocridade, o relativismo, o paternalismo e o conforto permitido pelo status quo. Propunha que respondêssemos à atual conjuntura de crise «arregaçando as mangas» em vez de «cruzar os braços», sendo pró-ativos e não apenas reativos, sendo ambiciosos exigentes e não satisfeitos conformados. Propunha que nos distinguíssemos pelo serviço educativo prestado, continuando a afirmar a escola como instituição de referência. (Não deixa de ser motivador que, num contexto de diminuição generalizada de alunos, a ESAP, a única escola não intervencionada de Águeda, conte já para o próximo ano letivo com mais 50 alunos relativamente ao ano passado.)Foram estas ideias que apresentei numa reunião com as coordenadoras de três departamentos curriculares, incumbindo-as de pensarem nelas, as amadurecerem e apresentarem propostas para a sua concretização.
Foi isso que aconteceu, oito dias depois, com a apresentação de um esboço do atual projeto, realizado graças ao contributo de outros professores cujas práticas revelavam já esta linha de pensamento e esta ambição. Depois de apresentado e discutido esse esboço, o projeto ganhou finalmente forma e pode ser publicamente apresentado no dia 13 de junho sob o nome, que cremos ser elucidativo, de Secundário Superior.
P: Sabemos que o projecto é destinado a alunos com desempenho académico acima da média, mas aqui duas perguntas se impõem: Como são seleccionados esses alunos? E alunos com desempenho académico abaixo da média são incentivados a melhorar de modo a poderem ser seleccionados?
R: Se me permite, começo pela segunda questão. Gostaria de vincar sem qualquer margem para dúvidas que, na ESAP, queremos que todos os alunos sejam cada vez mais melhores alunos. Queremos que todos os alunos da ESAP e os seus encarregados de educação saibam que o «fator ESAP» foi/é decisivo no seu percurso escolar, pessoal e social. Deste ponto de vista, na ESAP ninguém é excluído.
Todos são incluídos. Todos são incentivados a melhorar os seus desempenhos porque todos têm potencial. Ainda que o Secundário Superior seja elitista no sentido em que se dirige aos alunos com os melhores resultados, é intrinsecamente democrático porque está aberto a todos os alunos que estão na escola para aprender, para maximizar o seu potencial, no fundo, que estão na escola para que a escola os desafie a ir mais além.Quanto à questão da selecção, decidimos não complicar. Em primeiro lugar, não há alunos seleccionáveis. Há, isso sim, um universo de alunos visados pelo Secundário Superior e o limite mínimo desse universo é possuir uma média equivalente ou superior a catorze valores porque, como há muito se convencionou, é aí que começa o bom. Em segundo lugar, não basta ter uma média equivalente ou superior a catorze. É absolutamente necessário que os alunos e os encarregados de educação conheçam o Secundário Superior, conheçam os seus objetivos e as suas atividades.
Ora, é esse trabalho que estamos a fazer neste momento. Depois de identificar o universo dos alunos bons e as suas áreas de estudos, seguir-se-á o contacto formal para que eles e as suas famílias saibam de facto o que a ESAP tem para lhes oferecer. Finalmente, haverá um trabalho hercúleo a desenvolver com vista a motivar os alunos para a participação nas atividades do Secundário Superior. Como se sabe, estes alunos são muito exigentes e zelosos do seu tempo, por isso, temos de lhes mostrar de forma inequívoca que o Secundário Superior constitui uma mais-valia para o seu processo de formação.No fundo, o que gostaria de reafirmar é que o Secundário Superior está aberto a todos os alunos porque, mais do que um projeto, é a materialização de um valor estruturante da nossa escola.
P: Um projecto destes não pode ter viabilidade sem o envolvimento dos professores. Que professores foram agregados ou que professores fizeram questão de se agregar?
R: O projeto Secundário Superior traduz o rumo definido para a ESAP, revelando a assumpção de uma verdadeira política educativa para e da escola. Evidentemente que a efetivação de tal rumo exige a mobilização de todos os professores, orientando a sua competência, profissionalismo e criatividade para uma nova e mais ambiciosa forma de estar na e construir a escola. É também evidente que tal mobilização e motivação exigem, antes de mais, um conhecimento profundo do projeto – da sua oportunidade e relevância, dos seus pressupostos e finalidades, bem como de formas possíveis de o concretizar.
Na realidade, algumas das atividades integradas no atual Secundário Superior já se realizaram no passado ano letivo, embora de forma não articulada nem integrada. Servem, contudo, de exemplo de práticas que podem ser integradas no projeto na medida em que são consequentes com os seus pressupostos e permitem a consecução das finalidades definidas. Esta foi uma das preocupações da equipa que elaborou o projeto para apresentação pública: fornecer exemplos de atividades que permitiriam a concretização do pretendido, lembrando que embora ambicioso o que se propunha não era irrealizável ou apenas utópico – algumas dessas atividades já tinham sido realizadas e com êxito.Para além da apresentação pública em que estiveram presentes todos os professores da ESAP e a quem foi fornecida documentação essencial, foram posteriormente realizadas várias reuniões com os grupos/áreas disciplinares que constituem os vários departamentos curriculares.
Com tais reuniões pretendia-se não só prestar os esclarecimentos necessários, mas também motivar os professores, mobilizá-los para a concretização do projeto, solicitando a apresentação de novas atividades. Todos os grupos/áreas disciplinares apresentaram propostas consequentes com o projeto que está agora francamente enriquecido, podendo a ESAP oferecer, a partir de setembro, um conjunto de atividades de aprofundamento de conhecimentos e de treino de competências de todas as áreas do saber, bem como um conjunto de atividades co-curriculares que contribuirão para a melhoria dos processos cognitivos dos alunos.
Ora, a quantidade e qualidade de tais propostas parece indicar, senão a mobilização de todos os professores, pelo menos a sua disponibilidade e vontade de aderir a um projeto tão ambicioso como este.Houve, contudo, alguns professores que, desde a primeira hora, manifestaram uma firme vontade de concretizar este projeto, dedicando-lhe muitas horas de trabalho mas sobretudo muita da sua energia criadora. Creio que estes professores serão capazes, pelo exemplo, de motivar outros, «contaminando-os» com essa vontade de fazer mais e melhor, funcionando como pólos dinamizadores de sinergias que já existem e que, estou certo, se aprofundarão.
P: Na apresentação do vosso projecto declararam pretender «uma escola de excelência», «uma escola feliz». No imaginário colectivo, talvez se tenha delineado uma contradição: uma escola que trabalha para a excelência, que aposta no rigor e no esforço, na dificuldade não pode preocupar-se com a felicidade...
R: Sim, até pode ser, mas, na realidade, se pensarmos bem, não há qualquer contradição porque só pode haver felicidade se houver esforço. Acho até que basta olhar à nossa volta para perceber que vivemos tempos difíceis porque temos optado sempre ou quase sempre pela via mais fácil. E a via mais fácil não conduz à felicidade, só à ilusão de felicidade. A felicidade, a verdadeira felicidade dá trabalho, exige coragem, esforço e sacrifício. E a escola portuguesa, a sociedade portuguesa, têm de recuperar esta ideia para combater a crença errada de que há atalhos. Tem de mostrar que a vida não nos acontece, mas decorre das nossas escolhas. Ora, o Secundário Superior pretende trazer para a luz do dia um conjunto de heróis (os bons alunos) que cedo entendeu que a felicidade não é instantânea, não é algo que nos acontece. Que entendeu que felicidade não é um meio, mas um fim. E que o trabalho, a abnegação, a escolha do caminho aparentemente mais longo são, na realidade, as únicas vias para a realização pessoal. Num certo sentido, o que quero dizer é que mais felizes são aqueles que há muito descobriram a técnica da felicidade, quer dizer, a receita ideal para a procura da felicidade – a sabedoria. Mas que significado tem esta receita? Que felicidade nos garante o esforço e o sacrifício? Garante-nos que nunca teremos tudo o que precisamos, que o caminho para a felicidade não é simples nem dourado e que o essencial não é desejar ser feliz, mas poder ser feliz. Claro que este poder exige preparação, exige que disponhamos das ferramentas e dos meios necessários para conceber e executar um plano racional de vida. Exige que se construa o direito a ser feliz, o qual, por sua vez, implica o dever de procurar ser feliz para além de lógicas individualistas e consumistas. A escola deve, por isso, ser o lugar do elogio do trabalho e todos os que a constroem devem ser arquitectos deste princípio fundamental. Porque só o conhecimento traz liberdade, só a liberdade traz realização e só a realização traz felicidade.
GEOLOGIA ANTES DA ESCRITA
Presenciaram a chuva e os seus efeitos como poderoso agente de erosão, desde a simples e inofensiva escorrência às grandes enxurradas, e aluimentos de terras. Assistiram a catastróficas cheias próprias das planícies aluviais dos grandes rios e suportaram secas intermináveis. Andaram sobre as dunas e relacionaram-nas com o vento. Enfrentaram frios imensos e subiram e desceram montanhas, num acumular de experiências que lhes permitiram sobreviver. Procuraram grutas e abrigos para se protegerem das intempéries e das feras e conheceram os pigmentos minerais com que pintaram algumas delas, numa demonstração de criatividade artística da sua condição humana.
Viram a lava incandescente a fluir e transformar-se em rocha e deixaram as suas pegadas sobre as cinzas vulcânicas. Sentiram a terra tremer debaixo dos pés e ouviram o som cavo e assustador dos sismos. Conheceram o sílex e a sua característica fractura conchoidal, aprenderam a encontrá-lo nas suas jazidas e tiraram partido desses conhecimentos para produzir utensílios e armas. Verificaram idênticas características no quartzo macrocristalino (em especial, o hialino e o defumado) e nos vidros vulcânicos (obsidiana, taquilito e outros) e deram-lhes a mesma utilização.
Conheceram a argila, a sua plasticidade quando misturada com a água e o seu endurecimento pelo fogo. Usaram o betume (asfalto) como combustível e, talvez, como fonte de iluminação, e prospectaram o ouro, a prata, os minerais de cobre e os de estanho, milhares de anos antes de a ciência lhes ter prestado atenção e lhes ter dado nomes. Aprenderam a explorá-los e ensaiaram as metalurgias, primeiro, a do bronze, há mais de 5000 anos e, cerca de mil anos depois, a do ferro.
Fizeram tudo isto e muito mais antes dos sumérios, chineses e egípcios terem iniciado a arte de escrever.
Galopim de Carvalho
A educação para todos
Ainda não se podiam cantar vitórias à plena concretização desta aspiração - por exemplo, as mulheres andaram em desvantagem, bem como os mais desfavorecidos e aqueles que manifestavam qualquer deficiência -, uma outra foi tomando forma: que todos acompanhassem, ao mesmo ritmo, o ensino elementar, primário, ou básico, o qual se foi expandindo à medida que a noção de infância se ia alargando. E, ainda, que todos transitassem para o patamar de escolaridade seguinte e, se possível, para o seguinte…
Este duplo movimento, resultante da acção de pensadores consagrados e difundida às populações teve que se confrontar com um problema de monta, além daqueles óbvios como o da construção de escolas, da angariação de verbas para pagar a professores, de organização do que hoje designamos por sistema educativo, etc. Esse problema era o seguinte: muitos alunos não aprendiam ou não queriam aprender, ou, melhor, não aprendiam ou não queriam aprender o que a escola se propunha ensinar-lhes ou, melhor, não aprendiam ou não queriam aprender o que a escola se propunha ensinar-lhes nas condições e nos tempos estabelecidos.
O que fazer com esses alunos? Mantê-los no mesmo nível e obrigá-los a repetir tudo tal e qual? Usar outros métodos? Proporcionar-lhes mais tempo e/ou atenção especial? Castigá-los? Reforçar-lhe o estudo? Transitá-los para um outro tipo de ensino?
Tudo isto e muito mais foi tentado sem que o problema diminuísse: em vez de tender para uma atenuação, agudizou-se quando a escolaridade se tornou obrigatória e por cada vez mais tempo. Começou então a aparecer uma outra resposta: "desdobrar" a função da escola "oficial" em duas vias principais: uma, de continuidade, dita académica, clássica, virada para a expressão intelectual, permitiria aprendizagens que assegurassem o prosseguimento de estudos para patamares seguintes; e outra, repescando escolas e oficinas que preparavam para o exercício de certos trabalhos, virada para a expressão manual, permitiria aprendizagens que assegurassem uma boa destreza profissional.
Mas como separar os alunos de modo que a primeira via não prevalecesse sobre a segunda, de modo que esta não fosse encarada como menos prestigiante do que aquela? E, sobretudo, de modo a que o processo de separação não fosse inquinado por desigualdades sociais, étnicas ou outras?
Estudos realizados a partir dos anos 60 mostraram que essas desigualdades não são fáceis de superar, intrometendo-se, por vezes de modo evidente e outras vezes de modo subtil, na escolha que os alunos, as famílias, as escolas ou o sistema educativo fazem dessas vias.
Um ensaio tentado nos anos 80 e 90 consistiu na possibilidade de, uma vez atingido um patamar julgado essencial para todos, proporcionar uma transição fácil e facultativa de uma via para outra, dando as duas acesso ao patamar seguinte. Passerelles, assim eram designadas essas possibilidades de transição.
Em Portugal, após tentativas de convivência das duas vias (das quais, pelo facto de não terem sido submetidas a avaliação consistente, apenas poderemos dizer que terão sido umas mais conseguidas que outras), os resultados não foram os melhores.
A observação indica que, com excepções (que as há sempre!), a via profissional, não conseguiu o prestígio repetidamente anunciado, constituindo em mais casos do que seria desejável um recurso e não uma escolha. E que a "passagem" dos alunos de uma via para outra aconteceu sobretudo num sentido: da profissional para a académica.
Aqui entra um pormenor que, no meu entender, faz toda a diferença: a garantia da tutela de que existiria uma equivalência na qualidade de preparação dos alunos provenientes das duas vias e, coerentemente, uma equivalência das habilitações conseguidas. Essa garantia cedo se tornou demagógica dado que, para a concretizar, não foram asseguradas as necessárias condições curriculares. Assim, os alunos aperceberam-se que primeira via oferecia maior facilidade para prosseguir estudos. Ressentiram-se as instituições de ensino superior, mesmo as melhores e mais prestigiadas, ao receber alunos que não dominavam competências básicas para os cursos a que se candidatavam.
Sei que países do norte da Europa, ao contrário dos do Sul, por terem conseguido atenuar diferenças económicas, conseguiram equilibrar as opções pelas duas vias, opções essas que tendem a decorrer mais das aptidões e dos interesses dos candidatos.
Porém em nenhum país da Europa ou mesmo fora dela se conseguiu até ao presente que todos os alunos escolarizados acompanhassem com contínuo sucesso o percurso educativo determinado.
Esta verificação porá em causa o princípio de que a educação escolar deve ser para todos? Não, de maneira alguma. Porá em causa o alargamento dessa educação? Também não. Ela alerta-nos, porém, para o facto de que tal princípio talvez possa ser concretizado, mas ainda não sabemos como: não sabemos como ter todos os alunos na escola (numa ou noutra via, ainda que se permitam transições entre vias) e proporcionar-lhes os melhores padrões educativos.
Vem isto a propósito da recente medida governamental, tornada pública nesta semana, de distribuir equitativamente os alunos a partir do 7.º ano de escolaridade pelas duas vias - regular e vocacional: mais ou menos 50% para cada uma delas.
A notícia aqui disponível resume o que foi anunciado:
"Os cursos vocacionais destinam-se a alunos do sétimo ao nono ano. O momento da decisão começa no final do segundo ciclo. Terminado o sexto ano, os jovens terão de escolher um de dois caminhos: ou seguem a via do ensino regular ou optam pela via profissional. A escolha é livre. É o aluno ou encarregado de educação que decidem. Mas a história muda de figura, se no curriculo escolar existirem chumbos. Estudantes que tenham reprovado duas vezes num ano ou que tenham chumbado três vezes intercaladas, entre o primeiro e sexto anos, poderão ser obrigados a frequentar o ensino profissional".O uso do insucesso escolar como critério de encaminhamento dos alunos no seu percurso educativo não caiu bem a muitos portugueses e, apesar de o tempo ser de férias, a polémica atingiu uma dimensão nacional. Veio ontem o Ministério da Educação e Ciência esclarecer que tal critério não poderia ser usado sem mais e que, a seu tempo, se dariam esclarecimentos. De facto, por todas as razões (individuais, sociais, profissionais...), julgo que esse critério não deve ser usado.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
VIDAS PARALELAS
Pela sua similitude, porque portas de Bancos, como os de Mia Couto, ou portas de Tribunais, como os de Kafka, estão permanentemente em sintonia no levantamento de dificuldades, sob a batuta da burocracia, transformando a Porta de Madeira numa Porta de Ferro, intransponível em todos os tempos, afigurou-se pertinente a transposição dos dois textos, até, quanto mais não seja, pela actualidade temática, aqui, em Moçambique, e algures.
A Porta
Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:Mia Couto (Circula na net)
- Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!
E a porta não foi aberta. Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:
- Não deixa entrar, esses não são a maioria.
Apareceu um moçambicano branco e o porteiro foi assaltado por protestos:
- Não abre! Esses não são originais!
E a porta não se abriu. Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:
- Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências…
E o porteiro negou passagem. Apareceu outro moçambicano de raça negra, reclamando passagem:
- Se você deixar passar esse aí, nós vamos-te acusar de tribalismo!
O porteiro voltou a guardar a chave, negando aceder o pedido. Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.
A Porta
E frente da Lei está um porteiro e junto deste chega um homem vindo do campo que lhe pede que o deixe entrar. O porteiro, todavia, diz que, de momento, não Ihe pode permitir a entrada. O homem, em seguida, pergunta se poderá entrar mais tarde. 'É possível’, responde o porteiro, 'mas neste momento não' Como a porta que conduz à Lei está aberta, como de costume, e o porteiro se afasta para o lado, o homem inclina-se para espreitar através da entrada. Quando o porteiro se apercebe desta tentativa, ri-se e diz: 'Se está tão tentado, experimente entrar sem a minha autorização. Mas repare que sou muito forte e, no entanto, sou apenas o porteiro mais baixo. De sala para sala encontrará um porteiro em cada porta, sendo cada um deles mais possante que o anterior. E o aspecto do terceiro homem é já, mesmo para mim, uma presença insuportável’ Estas são dificuldades que o homem vindo do campo não esperava encontrar, devendo a Lei, segundo ele, ser acessível a todos em qualquer altura; contudo, ao olhar mais de perto para o porteiro, envolto na sua capa de peles, com o seu enorme nariz pontiagudo e uma barba comprida e fina à tártaro, decide que é melhor esperar até ter autorização para entrar. O porteiro dá-lhe um banco e deixa-o ficar sentado ao lado da porta. Ali se conserva à espera durante dias e anos. Faz muitas tentativas para que o deixem entrar e fatiga o porteiro de tanto o importunar. Este inicia frequentemente breves conversas com ele, fazendo-lhe perguntas acerca da sua casa e de outros assuntos, mas essas perguntas são postas num tom bastante impessoal, tal como fazem os grandes senhores, e acabam sempre com a afirmação de que a entrada ainda lhe não é permitida. O homem, que se fornecera de muitas coisas para a sua viagem, desfaz-se de tudo o que possui, ainda que valioso, na esperança de subornar o porteiro. Este aceita as ofertas, dizendo, no entanto, quando as guarda: 'Aceito isto apenas para evitar que pense que deixou alguma coisa por acabar.' Durante todos estes longos anos, o homem observa o porteiro quase incessantemente. Esquece-se dos outros porteiros e este parece-lhe a única barreira entre ele próprio e a Lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta a sua ma sina; mais tarde, à medida que vai envelhecendo, apenas resmunga para consigo. Alcança a segunda meninice e, desde que no demorado estudo que fez do porteiro aprendeu a conhecer mesmo as pulgas que pousavam na sua gola de pele, pede as pulgas que o ajudem a persuadir o porteiro a mudar de ideias. Finalmente, os seus olhos já vêem mal e não sabe se o mundo que o rodela é realmente escuro ou se são os seus olhos que o enganam. Todavia, mesmo no meio da escuridão, consegue distinguir um fulgor que jorra indistintamente da porta da Lei. Mas a sua vida agora aproxima-se do fim. Antes de morrer, tudo o que suportou durante todo o tempo em que permaneceu à espera se condensou no seu espírito numa pergunta que jamais pusera ao porteiro. Chama este com um gesto, visto que já não pode erguer o seu corpo entorpecido. O porteiro tem de se curvar bastante para o ouvir, dado que a diferença de estatura entre eles se tinha acentuado muito em desfavor do homem. 'Que é que deseja saber agora?', pergunta o porteiro. 'Você é insaciável.' 'Todos procuram alcançar a Lei', responde o homem; como se explica, portanto, que, durante todos estes anos, ninguém a não ser eu tenha procurado o acesso a ela?' O porteiro sente que o homem está próximo do fim e que tem dificuldade em ouvir, pelo que lhe segreda ao ouvido: 'Ninguém excepto você pode entrar por esta porta, pois esta porta foi-lhe destinada. Vou agora fechá-la.'»Franz Kafka. O Processo, Cap. IX. Na Catedral
Da maldade de cada dia nos livrai hoje: A propósito de uma ilustração
É uma gravura muito forte, mesmo impressionante. A Helena vê lá um monstro que vomita outro monstro que vomita outro monstro e por aí fora até ao infinito das vomitações. As situações monstruosas têm tendência a reproduzir-se criando um número infinito de monstruosidades. As guerras e suas imensas crueldades e ignomínias em cadeia são um terrível e vulgar exemplo.
Mas a minha impressão - lembro-me bem que a impressão que formei quando pela primeira vez a vi, há já alguns anos - é, pelo contrário, a de um monstro que devora outro monstro, que devora outro monstro, seguindo a ideia de que aparecerá sempre um monstro maior a devorar o anterior e aumentando a sua monstruosidade. Ou seja, uma das interpretações capta uma ação com sentido de movimento, vendo na imagem uma série das vomitações, a outra vai no sentido inverso e vê nela uma sucessão de devorações.
Uma, é mais sensível à exteriorização e divulgação do mal, à sua generalização e banalização, e a outra à sua incessante capacidade de interiorização, ou seja, ao seu potencial de requinte na malvadez, na intensidade e na perversidade. Uma, mostra como o mal se pode espalhar cada vez mais, se as condições forem favoráveis, criando vomitados uns após outros e enchendo tudo de podridão, acabando por não haver um sítio limpo onde pôr os pés. A outra indica-nos que a maldade se alimenta a si mesma com doses sucessivas e cada vez maiores, que o seu veneno é cada vez mais forte e mortífero. Uma, mostra como as maldades se podem transformar em correntes, em “normais” e, no limite, praticáveis por todos. É uma questão de as aceitar e repetir, que elas se multiplicarão por sua vez até serem vulgares e ninguém reparar no mal que contêm. A outra, diz-nos que as monstruosidades menores, se alimentam de si mesmas, que essa devoração as vai acrescentando, adensando num ponto cada vez mais profundo, mais impenetrável e negro até ser de todo invisível e se transformar numa “natureza”avassaladora.
A grande força da imagem está não só no que imediatamente revela mas também no que logo instantaneamente sugere: uma sequência ininterrupta e multiplicadora. E o mais interessante é que o efeito difusor, que é aflitivo, mesmo sufocante, tanto se sente num sentido como no outro.
A imagem, que não é, em si mesma, ambígua nem reversível, transforma-se em reversível em termos psicoafetivos e morais. Ou seja, a reversibilidade surge não propriamente pela imagem mas pelas sugestões que provoca. De facto, dois processos inversos – comer/vomitar; vomitar/comer) têm, no limite, efeitos psicológicos e morais idênticos: a invisibilidade do mal à medida que o mal se acrescente, ou por generalização e banalização ou por interiorização e convicção.
Leiam-se, a propósito, para lá do livro acima referido, dois outros igualmente excelentes.
Um de Susan Neiman, O mal no pensamento moderno – uma história alternativa da filosofia (Lisboa, Gradiva, 2005) sobre o modo como se foi o mal libertando da tutela teológica até aos nossos dias, e tudo o que isso implicou, continua a implicar, e que desafios imensos nos coloca a todos.
O outro, de ficção, de Saltykov Chtchedrine, A Família Golovlev (Porto, Livraria Civilização, 1975) ou, numa versão mais moderna, Saltikov Shchedrin, A Família Golovliov (Lisboa, Relógio D’Água, 2010), para se saber, de facto, o que é a hipocrisia, de que tanto se fala por tudo e por nada. E como os interesses e a ganância se podem interiorizar de tal modo transformando-se em maldade pura e imoralidade repelente, sempre mediante palavras e rostos de bondade e de altruísmo.
João Boavida
NUNO PACHECO E O ANTIENSINO
De um cáustico editorial do Público (12/10/2003), intitulado “Antiensino", da autoria de Nuno Pacheco, transcrevo esta contundente peça jornalística que ajudará o leitor a ampliar a razão da minha desconsolada crítica traduzida no meu post aqui publicado: “O Ódio de Perdição” (22/08/2012). Escreveu Nuno Pacheco:
«A pretexto da televisão e da internet (como é bom soletrar modernidade, na mais completa ignorância do que isso significa!), a escola está a baixar as suas obrigações e exigências nos limites do suportável. Por este andar, os alunos ainda vão responder, se lhes perguntarem, que "A Peregrinação" é uma ida a Fátima, que Colombo e Vasco da Gama são centros comerciais e que Camões é um largo. É uma geração assim, ágil em bites e nula em conhecimento, que queremos ter neste século XXI?» A interrogação foi feita no PÚBLICO, em Agosto de 2001, neste mesmo espaço de Editorial. Se quisermos responder-lhe, dois anos passados, bastará uma simples e inconformada letra: é.
Nessa altura discutiam-se as muito discutíveis reformas curriculares que "lmparam" do 10.º ano muitas referências literárias trocando-as por «textos informativos», «textos dos "media"», «textos de carácter autobiográfico», «textos expressivos e criativos do séc. XX.» Quem na altura pasmou com a troca foi apelidado de antiquado: quem tem televisão ou Internet em casa dificilmente será seduzido a amar os livros, para mais os fora de moda. Agora já podemos confirmar, com provas indesmentíveis e aterradoras, onde queriam chegar tais iluminados. Basta atentar no conteúdo, divulgado ontem no PÚBLICO, de alguns manuais de Português B para o 10.º ano. Lá estão, como base de "aprendizagem", o Big Brother, as programações da TV Guia ou as telenovelas, envolvendo os alunos num passatempo onde são convidados a dizer «o que levou Tomé a expulsar Maria de casa» ou quem é que «Rodrigo agride violentamente, deixando-o cego.» Imagina-se o esforço intelectual das pobres criaturas: explicar quem é Tomé, porque embirrou com a pobre da Maria, que por sua vez nem conhecia o tal Rodrigo que cegou um zé-ninguém infeliz...
Sabendo, como se sabe, que tão audaciosa e inovadora matéria vem substituir Gil Vicente ou Vergílio Ferreira (dispensáveis aos olhos de "estrelas" como Tomé ou Rodrigo), é caso, já não para pasmar, mas para perguntar apenas: que género de débeis mentais nos propomos "moldar" nas escolas? Que tipo de portugueses vemos nós nos nossos filhos? Aqueles que, até há bem pouco tempo, liam por obrigação Gil Vicente, Eça de Queiroz ou Camões, acabando, muitas vezes, por ceder ao encanto do seu génio criativo? Ou um bando de imbecis que só consegue filtrar o mundo através da medíocre imagem que dele fazem, continuamente, os "big brothers" da nossa pálida realidade? Porque teimamos nós em ensinar aos jovens o que eles já conhecem em demasia em lugar de lhes abrir mundos que amanhã farão deles algo mais do que simples vegetais com B.I. e cartão de crédito? Porque nos habituámos, em nome de uma educação sempre tão maltratada e ainda pior ministrada, a ceder no essencial para salvar o lado mais vil e efémero do conhecimento? Devíamos ter encontrado resposta a tempo. Agora, como se vê, talvez seja tarde de mais”.
CURIOSITY: THE ADVENTURES OF A VIRTUAL ASTRONAUT.
"O lançamento do Mars Science Laboratory Rover numa viagem de 150 milhões à cratera Gale em Marte era muito mais fácil do que pousar com segurança uma vez lá chegada, mas a NASA conseguiu que a incrível manobra de pouso corresse perfeitamente bem. Afinal, esta era a NASA da ciência, a parte da NASA que explora as luas de Saturno com nave espacial não tripuladas, e usa telescópios espaciais para descobrir exoplanetas orbitando estrelas distantes. O novo Rover novo, que dá pelo nome de "Curiosidade", irá explorar a cratera Gale durante um ano marciano (687 dias) à procura de provas de vida extraterrestre. Isso pode levar a uma missão de retorno de amostras, mas já é uma das maiores missões da ciência. Há, contudo, dois NASAs. A Curiosidade também deve avaliar a "habitabilidade" de Marte. Isso é uma concessão à- NASA dos astronautas, que gasta a maior "metade" do orçamento da NASA. A NASA dos astronautas dominou o programa espacial da Apollo ao Space Shuttle e à Estação Espacial Internacional, que prendeu os astronautas da NASA numa órbita baixa da Terra. Mas, como eu apontei no meu artigo na revista Slate, não devia ser permitido ao programa astronáutico controlar a NASA enquanto houver busca de vida extraterrestre."
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1763-1838)
Nascido em Santos, de família paulista de ascendência nobre, oriunda do Minho, de entre Homem e Cávado e Cabeceiras de Basto, este «bandeirante da mineralogia e da arte das minas», como lhe chamou Portugal Ferreira (1986), veio para Portugal a fim de cursar a Universidade de Coimbra onde obteve, em 1788, as cartas de bacharel e de formatura em Leis e a de bacharel em Filosofia Natural (nome que então se dava às Ciências Naturais).
Como «pensionário» (bolseiro) da Coroa, reinava então D. Maria I, e por proposta da Academia das Ciências, Andrada e Silva iniciou, em 1790, um vasto e proveitoso périplo pela Europa, quer para frequentar alguns dos mais prestigiados centros de ensino superior, quer para realizar estágios e visitas a importantes explorações mineiras, numa peregrinação de dez anos, visando aprofundar a sua preparação nos domínios da Filosofia Natural e da Metalurgia. Na Escola de Minas de Paris, e durante o período mais quente da Revolução Francesa, estudou com René-Just Haüy, o fundador da cristalografia, e, em 1792, apresentou à Société d’Histoire Naturelle de Paris um interessante estudo, Mémoire sur les diamants du Brésil. Em seguida frequentou, na Alemanha, a célebre Academia de Minas de Freiberga, onde estudou Mineralogia e Geognósia com o prestigiado professor Abraham Gottlob Werner e onde teve, como condiscípulos, outro luso-brasileiro ilustre, Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt, e dois grandes nomes da comunidade científica de então, Alexander von Humbolt e Friedrich Mohs. A seguir a esta fase, estagiou em fundições da Saxónia, do Tirol e outras, assistiu às lições de Alessandro Volta, em Pádua, e estudou em Pavia.
O Museu Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade de Coimbra, tem hoje o nome de José Bonifácio de Andrada e Silva, antigo lente que elegeu como patrono, estando o seu busto em local de destaque na galeria de mineralogia. Um outro busto seu existe na Academia das Ciências de Lisboa, evocando o ilustre membro que foi desta instituição.
terça-feira, 28 de agosto de 2012
Regresso ao "regresso às aulas"
É a televisão, a rádio, são os prospectos na caixa de correio, os outdoors de tamanho gigante nas estradas, os placards pelas ruas... tudo isto a mandar ir rapidamente comprar... num tom estridente, de necessidade absoluta, urgente, como se não houvesse amanhã.
Quem vai aos super e hipermercados sente-se, de certeza, a entrar numa feira popular ruidosa e desorientadora onde abundam canetas e lápis de cores nem imaginadas, borrachas, afias e colas dos mais diversos tipos, computadores com ligações a não-sei-o-quê, mochilas e cadernos com os bonecos impostos-aos-miúdos-para-eles-gostarem, sapatilhas, camisolas e fatos-de-treino das marcas que se tornaram símbolos de identidade...
Nas estantes, estrategicamente distribuídas por onde as pessoas têm mesmo de passar, é tudo bonito, colorido, brilhante, maravilhoso. Apetece levar de tudo, comprar, comprar, comprar... antes que seja tarde, antes que se acabe o que é parece não ter fim. Que importa o desemprego, a falta de dinheiro para a comida, a água e a luz, as árvores abatidas para tanto papel, a escassez de recursos do planeta!?
Face este cenário de ausência de fronteiras materiais, o que pode a escola fazer, passadas duas ou três semanas, para educar as mesmas crianças e jovens no sentido da poupança, da ecologia, da desocultação das técnicas publicitárias...
A história repete-se todos os anos: por um lado, a sociedade faz e/ou tolera certas opções de marketing e consuno, mas, por outro lado, exige à escola que as "trabalhe", que mude as atitudes dos mais jovens. Alguém acredita que isso é possível? Alguém acredita que é desejável?
Acho que ninguém acredita verdadeiramente nem numa coisa nem noutra, mas a consciência colectiva ficar em sossego com a mistificação consentida.
Leitura: do cinzentismo à cor.
Publicado originalmente no http://www.re-visto.com
"Destruir livros é sempre muito mau sinal"
Em geral, aceito a opinião de quem sabe mais do que eu, mas em relação a este assunto não deixo de pensar que os elementos que ficam de fora do meu raciocínio não pesam mais do que aqueles que o integram. Assim, ficando atenta ao assunto foi com alegria que percebi a intenção de, em Portugal, se protegerem esses livros (ver aqui e aqui).
Não sei se devido a medidas tomadas por quem deve ou se à necessidade de se encontrar um negócio, descobri que muitos desses livros são vendidos ao desbarato, voltando ao mercado a preços acessíveis em feiras, alfarrabistas, recantos...
Porém, consolidando-se a tendência de declarar o fim do livro cada vez mais próximo da sua edição (dizem-me que a "primeira vida" do livro é entre um a dois anos), não pára de crescer nas estantes dos armazéns o volume de exemplares que se desactualizam precocemente. E a tendência de destruição ressurge... A propósito, no passado mês de Julho, José Jorge Letria publicou um artigo - Destruir livros é sempre muito mau sinal - do qual cito o seguinte:
"A crise que também afecta severamente o sector editorial leva um número crescente de editoras a optarem pela destruição de livros do seu fundo de catálogo, alegando que não têm condições para continuar a garantir o respectivo armazenamento e que terminou o seu ciclo de vida comercial.In Público de 17 de Julho de 2012, página 47.
Se a via da destruição deve ser dolorosa para os editoras, sê-lo-á muito mais para os autores, porque assim vêem extinguirse materialmente uma parte da sua obra, sem disporem de solução alternativa. A lei confere às editoras esta possibilidade, após terem sido avisados os autores, os quais poderão adquirir exemplares a preço reduzido, desde que tenham essa disponibilidade financeira e que possuam espaço para armazenarem os exemplares que desejam salvar destes “autos-de-fé” comerciais.
Entretanto, as editoras acabam mesmo por concretizar o que anunciaram, ficando excluída uma outra hipótese que é da doação de exemplares condenados ao desaparecimento a instituições sem fins lucrativos e de utilidade social. Mas também esta solução deixa de ser exequível porque os editores estão obrigados ao pagamento do IVA correspondente ao valor do mercadoria doada, e recusam-se a pagá-la, mesmo que as instituições interessadas assegurem que todos os encargos de envio ou de transporte (...)
Sejam quais forem as atenuantes, configuram um acto lesivo para a cultura (...)
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
A televisão de Relvas
Ontem, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, geralmente bem informado em questões do PSD, esclareceu-nos que Miguel Relvas, cujo curso universitário está a ser investigado na Lusófona (era bom que os resultados aparecessem depressa), mandou o seu correligionário político António Borges anunciar, numa televisão privada (a TVI), o fim da RTP2 e a entrega da RTP1, com um chorudo bónus e portanto com lucro grantido, a um operador privado. Não lembraria ao diabo, mas ter-se-ia lembrado ele.
Como muita gente estou indignado com mais este parceria público-privado (PPP). Não chega de PPP ruinosas? Eu tinha percebido que privatizar a televisão do Estado era vender a bom preço o que não era serviço público (RTP1 com o "Preço Certo" e quejandos) e manter a RTP2, fortalecendo um verdadeiro serviço público a que a nossa Constituição obriga e que os outros países europeus desenvolvidos também têm. Relvas quer, porém, inovar, como já procurou inovar na obtenção do seu curso. É bom que alguém o impeça. O que é que ele ainda está a fazer no governo? Cada dia que está é mais uma dor de cabeça para Passos Coelho.
A memória da Lua
Declarações que prestei ontem a uma jornalista do "Correio da Manhã":
- O que recorda da chegada do homem à Lua?
- Já passaram 43 anos... Esqueci-me de muita coisa desse ano de 69, mas não dessa memorável emissão televisiva. Era um rapazinho de 13 anos a morar Coimbra e, embora estivesse no liceu, lembro-me também do ambiente da crise académica de 69 com a polícia contra os estudantes. A televisão era pequena e a preto e branco. As imagens, que hoje podem ser vistas na Net, tinham pouca definição. Havia uns vultos humanos que saltavam com a ligeireza de cangurus. Eu estava no início dos estudos de ciência e apercebi-me que eram os conhecimentos de física que permitiam a viagem à Lua. Não sei, a esta distância, se fui para física por causa disso, talvez não, mas alguma coisa terá ficado no inconsciente nessa época gloriosa em que se vivia a descoberta do espaço.Tenho a idade da televisão em Portugal, mas a memória mais antiga que tenho da televisão é a da vitória do Benfica na Taça dos Campeões em 1961 e, em 1966, do 3.º lugar de Portugal no Mundial de Inglaterra, as duas antes da viagem à Lua. Futebol e Lua, eis o que retenho dos ecrãs desses anos 60. Hoje digo aos meus alunos que a física explicam os movimentos nos dois casos e pelas mesmas leis, as leis de Newton. E, já agora, foi também a física que permitiu a invenção da televisão. Acho que foi boa ideia ter estudado Física. E continua a ser boa ideia para os jovens de hoje, que ainda há pouco puderam ver a Curiosity pousar em Marte.
- E havia controvérsia em torno do tema? Havia quem duvidasse?
- As pessoas minimamente cultas acreditavam, seguiam as emissões na televisão e na rádio (com comentários de Eurico da Fonseca, um auto-didacta fabuloso). Mas o país era largamente inculto e pobre. Quase não havia ciência em Portugal. Um comerciante de carnes declarou na época a um jornal nacional: "Que me interessa a mim a Lua se não posso vender carne fora do meu concelho!" Progredimos muito desde esse tempo. Progredimos? A teoria absurda de que o homem nunca foi à Lua e que tudo não passa de um filme é recente, estando espalhada pela Internet. Se "googlarmos" viagem a Lua encontramos em vários sítios a afirmação falsa de que o homem nunca foi à Lua. A Internet está, de facto, inundada de lixo. A teoria segundo a qual os astronautas nunca foram a Lua é completamente absurda. Está ao nível de teorias similares segundo as quais Elvis Presley ainda está vivo ou foi a CIA que fez os ataques às torres gémeas. Há gente para acreditar tudo, por lhes faltar cultura científica. Einstein disse: "Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana, e quanto à primeira não tenho a certeza". Einstein já sabia, mas a Internet dá-nos a certeza da segunda. As provas da ida à Lua são avassaladoras. Por exemplo, há espelhos lá colocados que reflectem luz laser enviada da Terra. E há fotografias tiradas por sondas de instrumentos deixados pelo homem na Lua, que serão lá encontradas quando se voltar lá. Eu já estive no Cabo Canaveral, na Florida, e, ao ver o gigantesco foguetão o Saturno V, senti a realidade e a grandeza do projecto. O mesmo ao ver o módulo lunar num museu de Washington. Neil Armstrong foi um grande homem que não vai ser esquecido. Tinha tanto de corajoso como modesto. Declarou simplesmente sobre a Lua: "Um lugar interessante. Recomendo." Tem razão. É um lugar tão interessante que temos de lá voltar.
domingo, 26 de agosto de 2012
Semana de LOUCOS
Tudo isto aconteceu na mesma semana.
Cratera na execução orçamental: Ouvi (li) bem? O buraco na receita fiscal acumulada líquida em Julho de 2012 é de 3 mil milhões euros (-3.5% do que em igual período de 2011)??? 3 000 000 000 de euros??? E o saldo global da execução orçamental do subsector estado em Julho de 2010 é de 3 979 900 000 euros???
Está tudo aqui na Síntese de Execução Orçamental do Ministério das Finanças.
Victor Gaspar tem muito que explicar.
Faltam 6 mil milhões de euros: Há dias fui fazer um almoço rápido a Viseu. A menina que me atendeu enganou-se no troco, mesmo depois de várias tentativas com uma máquina de calcular. Fiquei triste, a pensar para onde vamos como país, e almocei a pensar em álgebra e em como prestamos tanta atenção ao acessório esquecendo o fundamental. O mesmo se passa com a (não) discussão sobre o OE2013, o orçamento mais importante das últimas décadas.
Nuno Crato tem muito que explicar/fazer.
Assessor Borges inventa uma muita gira: Portugal é o país das rendas. A ideia simples de fazer algo sem uma renda do Estado aterroriza qualquer “empreendedor”. Os contribuintes pagam para TUDO. O plano para a RTP, iniciado com um governo do PSD (Morais Sarmento), tinha já efeitos em 2013. Ou seja, a RTP não precisaria mais de indemnizações compensatórias e teria de viver com os 140 milhões da renda pública que todos pagamos na fatura da eletricidade e com os cerca de 50 milhões de publicidade.
Pedro Passos Coelho tem muito que explicar.
A TROIKA visita-nos na semana que vem, a partir de 3.ª feira.
Neil Armstrong, emissário de todos nós
Minhas declarações prestadas ontem à jornalista Cláudia Sobral, do "Público", e publicadas ontem mesmo on-line, sobre Neils Armstrong, o primeiro homem a pisar a Lua e uma pessoa que, caso raro, tinha tanto de corajoso como de modéstia.
"Foi de madrugada, numa televisão a preto e branco. Em Julho de 1969 Carlos Fiolhais tinha 13 anos, não sabia que um dia seria físico. Dessa noite de Verão, lembra-se de ter ficado acordado, à espera de ver o primeiro homem pisar a Lua. “Lembro-me de ter sentido que era uma coisa extraordinária”, contou esta noite o cientista português, depois de ter sabido da morte de Neil Armstrong. “Muitas pessoas não acreditaram, eu tenho a dizer que acreditei.”
Não sabe se aquela noite terá ajudado a decidir o seu futuro. Nunca teve a vontade de ser astronauta que todas as crianças têm. “Fui para Física por causa do espaço pequeno – mas também grande – que está dentro da matéria.” Também nunca teve a coragem, diz. “Neil Armstrong foi um homem corajoso, não é fácil ser-se o primeiro. E depois, Armstrong foi um homem muito discreto. Isso também foi um exemplo para todos nós. Ele calou-se, não foi um homem de espectáculo.”
No final dos anos 1960 “já havia ciência suficiente para pôr um homem na Lua”, diz. Fez-se porque houve vontade política, como Fiolhais deseja que haja outra vez. “Estou convencido de que se irá à Lua de novo e de que se irá a Marte também.”
Naquela noite de 1969, Armstrong não esteve sozinho na Lua. Além de Buzz Aldrin (e de Michael Collins, em órbita), estava toda a humanidade. “Ele era apenas um emissário de todos nós”, diz Carlos Fiolhais. “Não foi só ele que foi à Lua, fomos todos nós.”
sábado, 25 de agosto de 2012
A normalização da maldade
A lista podia continuar mas, como ponto de partida deste texto, queria concentrar-me em Abu Ghraib para dizer que mais impressionante do que as próprias imagens é um documentário que vi há algum tempo – Fantasmas de Abu Ghraib, da autoria de Rory Kennedy – centrado nos depoimentos de torturadores. E digo isto em virtude do conteúdo desses mesmos depoimentos.
Retenho de modo particular o discurso da soldado que aparece a segurar a trela posta num preso como se de um cão se tratasse, pose que a tornou conhecida no mundo inteiro. Passaram-se anos, engordou, foi mãe, tem um ar quase doce, é modesta a falar, o tom é hesitante, algo desorientado mas a culpa não está excluída, parece arrependida e desgastada, refere as repercussões que os seus actos têm na sua família. É, voltada à vida civil, uma pessoa absolutamente comum, uma pessoa que podia um “eu” qualquer.
No seu discurso dá a entender que o que de horrível aconteceu, foi o resultado do clima de pressão imposto por superiores para salvar o país, o ocidente, o mundo de forças maléficas; do estranho afecto que sentia por um oficial e da manipulação dele; da inebriante pressão do grupo para levar avente uma "ideia", incluindo a de fotografar tudo... Afinal, não sabe bem o que fez com que tivesse "participado naquilo tudo".
Levei-a a sério, acreditei nela. A noção de banalidade do mal de Hannah Arendt não podia conduzir-me a outro juízo. Mas, a noção no sentido original, avançado e usado pela filosofa que assistiu ao julgamento de Adolf Eichmann e, em virtude disso, escreveu o clássico Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal.
Stenphen Reicher e A. Alexander Haslam (professores das universidades de St. Andrews, Escócia e de Exeter, Inglaterra, respectivamente), num artigo intitulado A normalização da maldade: Uma perspectiva acerca das raízes psicológicas do ódio colectivo, publicado no livro A maldade humana: Fatalidade ou educação? (Almedina, 2008) retomam esse sentido, sistematizam-no e convocam dados de investigação para o corroborar.
Vale a pena ler a seguinte passagem (páginas 33-35) que a capa, criada por Ana Boavida ilustra de modo exemplar: um monstro que vomita um monstro que, por sua vez, vomita outro monstro, e por aí adiante...:
“O termo banalidade do mal entrou no léxico popular popular e adquiriu uma vida autónoma em relação ao livro de onde provém. Com efeito, o uso da expressão tornou-se tão vulgar e simplista quanto o texto original é rico e repleto de nuances (cf. Newman, 2001). Como consequência, aquilo a que Arendt se referia como banalidade do mal é muito mal compreendido e representado. De facto, o termo é propenso tanto a erros por acção como a erros por omissão. É mais fácil lidar com os primeiros (cf. Waller, 2002). Com certeza que Arendt não quis dizer que Eichmann desempenhou um papel trivial no Holocausto, nem que ele não fez mais do que aquilo que uma hoste de funcionários menores também fizeram. De igual modo, não quis dizer que o Holocausto não foi diferente de muitos outros actos de maldade ou que os actos de maldade do Holocausto eram triviais ou prática comum (cf. Waller, 2002). Arendt não era apologista do Eichmann, não negava o Holocausto, nem o trivializava. A referência à banalidade não se dirigia à natureza dos actos nazis, mas à natureza dos actores. É em relação a este último aspecto que os problemas de omissão se tornaram relevantes, uma vez que a argumentação de Arendt envolvia três elementos centrais.
O primeiro, era que Eichmann e outros como ele não representavam um tipo psicológico fundamentalmente distinto dos restantes indivíduos. As circunstâncias podem ter levado estas pessoas a comportarem-se de modo diferente das pessoas que viveram em tempos mais calmos, mas não podemos ter a certeza absoluta de que mesmo nós não nos tornaríamos assassinos se estivéssemos no seu lugar. Este será, porventura, o aspecto mais inquietante do seu argumento. Retira-nos a confortável ilusão de que estes assassinos pertencem a uma espécie diferente de indivíduos. Assim sendo, não nos podemos limitar a colocar questões acerca deles. Temos que começar a colocar questões preocupantes acerca de nós mesmos.
Ligado a este aspecto e, em segundo lugar, Arendt sugeria que os seus actos surgiram de motivos normais que a maioria das pessoas partilha: o desejo de ser valorizado e aceite pelos outros, de fazer o seu trabalho bem feito e progredir na carreira. Na maior parte das vezes, estes motivos podem conduzir a actos inofensivos ou até mesmo nobres, tal como Newman (2001) ilustra. Mas querer ser aceite por racistas e fanáticos tem, decididamente, consequências perigosas. Dependendo dos grupos que temos ao nosso dispor para esse fim, o desejo de ser aceite e de obter aprovação pode levar-nos para direcções muito distintas. Pondo as coisas de outro modo, a variabilidade dos resultados comportamentais é menos uma questão de diferenças psicológicas do que de oportunidades sociais.
A combinação destes dois argumentos constitui aquilo que é, provavelmente, a principal forma como a banalidade do mal é entendida. Esta é a ideia de que qualquer um o pode fazer e o sentimento associado de que graças a Deus, não estou naquela situação. Esta perspectiva é apoiada por muitas investigações recentes acerca do Holocausto, que mostram que os indivíduos envolvidos nos assassínios poderiam ser descritos, correctamente, como homens comuns – o título da análise de Browning (1992) às actividades do Batalhão de Reservistas da Polícia (BRP) 101 (...) uma das unidades móveis de matança que operou na Polónia ocupada pela Alemanha e que, sozinha, matou, pelo menos, 38.000 judeus entre Julho de 1942 e Novembro de 1943.
Browning mostra como os membros deste batalhão não eram fanáticos - para além do mais, antes da guerra, eles eram mais anti-nazi do que a norma. Contudo, eles executaram as suas ordens assassinas, mesmo quando tinham a oportunidade de as rejeitar. Esta constatação leva Browning a concluir o seu livro com a seguinte questão: «se os homens do Batakhão de Reservistas da Polícia 101 se puderam tornar assassinos sob tais condições, que grupo de homens está imune a isto?» (1992, p. 189).
Existe, no entanto, um terceiro argumento na afirmação de Arendt, que deriva do seu trabalho anterior, publicado em 1951, acerca do totalitarismo. Este trabalho prende-se com os processos psicológicos que permitem que homens comuns (e eles, quase sempre, são homens) cometam massacres em massa. De uma forma clara, ela evoca um falhanço da imaginação e não um falhanço da consciência. Isto é, os assassinos tornam-se obcecados com o processo de fazer o seu trabalho. O seu sentido do bem e do mal restringe-se a quão bem e, até mesmo, quão criativamente eles cumprem o que lhes é pedido. Nunca erguem o seu olhar para verem além do seu emprego e considerarem as consequências do seu trabalho. Com certeza, nunca consideram a perspectiva das vítimas. Por vezes, este facto é usado para sugerir que os assassinos são irreflectidos ou não pensam. Talvez isto seja um pouco enganador. Em vez disso, o problema coloca-se no horizonte restrito ao qual aplicam o seu pensamento. Como diz Arendt, Eichmann “não tinha quaisquer motivos”. Dizendo isto de uma forma mais coloquial, “ele, simplesmente, nunca se apercebeu do que estava a fazer” (Arendt, 1992, pp. 287-8)."
O que podemos responder é que, com base na investigação de que dispomos, com destaque para a que se faz na área da pedagogia, é impossível emitirmos uma resposta segura.
Uma simples constatação não parece permitir-nos confiar demasiado na educação: no início do século XX os alemães eram o povo com mais educação formal e, em função disso, com mais desenvolvimento científico e tecnológico, mais produção e acolhimento das artes; a partir de meados do mesmo século os Estados Unidos da América tomaram a dianteira...
É claro que este raciocínio, muito global como todas as falhas que daí advêm, não pode nem deve, em circunstância alguma negar a importância da educação.
O que procuro dizer é que quem tem responsabilidades educativas deve saber conviver com essa interrogação.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
Educação para a escolha
Acontece que a Pedagogia, como é compreensível, tem sido permeável a ideias emergentes noutras disciplinas que completam, corroboram ou discutem as que vai produzido, estando no início do século XX, por via da importância crescente dessa filosofia, particularmente receptiva a "descobertas etnográficas" que interrogavam a própria essência do acto educativo e as vias de concretização que solicita.
Assim sendo, as observações realizadas por Margaret Mead, em contextos sociais distantes e diferentes do ocidental, parecendo confirmar a tal filosofia, cumpriam esse propósito. Apesar das ilações tiradas a partir das ditas observações terem sido, dizem alguns, distorcídíssimas, o livro Corning of Age in Samoa (Crescer em Samoa), publicado em finais dos anos 20 do século XX, teve inúmeras edições e poucas interrogações.
Benjamin Wiker na obra a que me referi em texto recente – Dez livros que estragaram o mundo, Aletheia, 2011 – explica, na página 137, que "Mead propunha uma orientação educativa totalmente diferente do que até então vigorava: a nova orientação era designada por “educação para a escolha” e o seu ponto mais importante era o de que não havia pontos importantes, o seu âmago o de que não tinha âmago era o de que não havia". Para melhor esclarecer esta ideia, Wilker cita a própria Mead:
“A educação […] não deve ser uma orientação especial por um certo regime de vida, uma tentativa desesperada de formar determinados hábitos mentais, que resistem a toda e qualquer influência exterior; pelo contrário, deve ser uma preparação para essas mesmas influências […]. As crianças do futuro devem ter um espírito aberto. A família tem de deixar de lhes impor posições éticas e convicções religiosas por meio de sorrisos e caras sérias, de carícias e ameaças. Temos de ensinar as crianças a pensar, não temos de lhes transmitir os conteúdos do pensamento. E, dado que os erros do passado levam tempo a morrer, é preciso ensiná-las a serem tolerantes, como hoje as ensinamos a serem intolerantes. É preciso ensinar-lhes que têm diante de si múltiplas alternativas, e que sobre elas apenas cai o fardo da escolha. Libertas de preconceitos, desembraçadas de condicionamentos muito precoces com um padrão único, as crianças têm de encarar de olhos bem abertos as alternativas que se lhe apresentam.”
Docentes ou professores dos professores?
Num artigo recente, o professor de Biologia E. J. Burris afirmou que o baixo desempenho dos alunos dos EUA em testes internacionais de ciência (TIMSS e PISA) se deve aos professores. Explicando que o sistema educativo dos EUA possui métodos para melhorar a educação em ciências afirma que nenhuma abordagem pode ser sustentada com sucesso sem professores brilhantes, bem preparados e apoiados. E continua, dizendo que as lições a retirar do sucesso dos alunos finlandeses naqueles testes são simples: recrutar de entre os melhores candidatos a professores (a Finlândia aceita apenas cerca de um em cada dez candidatos) e prepará-los muito bem.
No nosso sistema de ensino, qualquer estudante pode candidatar-se a um curso superior de formação de professores, sem outro critério que não seja a classificação (frequentemente baixa) obtida no ensino secundário. Contrariamente a países como a Finlândia, Portugal não reconhece o papel central dos professores na sociedade, demonstrado, como diz Burris, pelo respeito com que são tratados e pela elevada procura desta profissão por parte dos jovens, a despeito de salários, que se situam na média nacional.
Os formadores de professores vêem-se perante turmas de alunos cuja composição não reflete critérios de natureza académica e que, por essa razão, não são à partida grupos de excelência. São poucos os alunos academicamente brilhantes cujo interesse pela profissão de professor consegue ultrapassar a falta de reconhecimento social. Esta é a base real com a qual os formadores de professores trabalham. Os formadores de professores são professores do ensino superior de diversas áreas, incluindo as ciências da educação, que não têm formas institucionais próprias e eficientes de formação no sentido da excelência. Os professores de educação só ocasionalmente são recrutados de entre os melhores professores do ensino básico e secundário. Estabelece-se um ciclo reprodutor no processo de seleção entre quem seleciona (os professores do ensino superior) e quem é selecionado, conduzindo à não excelência dos futuros formadores de professores.
O discurso dominante em educação, a nível do ensino superior, está, na sua generalidade, implícita ou explicitamente, assente em perspetivas que se afirmam progressistas, mas que descuram o rigor e a exigência em nome de uma educação para todos, que se vai tornando, assim, cada vez mais uma educação para poucos.
Como L. Schulman, um dos grandes nomes da formação de professores, apontou, referindo-se à situação nos EUA, a "formação de professores não existe": "Há uma tal variação entre os programas de formação, os padrões de admissão, o rigor na preparação dos assuntos, o que é ensinado e o que é aprendido [...] que, quando comparada com outra profissão académica, a sensação de caos é impossível de evitar [...]. A formação de professores só poderá sobreviver como uma forma séria de educação profissional de base universitária se cessar de celebrar a sua idiossincrática abordagem let a thousand flowers bloom [...]". Portugal também acompanha esta situação.
O baixo nível da formação dos professores é um compósito de deficiências de dois tipos: os processos de seleção e a competência dos formadores de professores. A ação dos formadores situa-se num campo superior do aparelho pedagógico e tem um efeito reprodutor aos diversos níveis das práticas das escolas dos ensinos básico e secundário. O problema é mais difícil de tratar do que qualquer visão simplista possa fazer crer.
Ana Maria Morais
CICLOS SOLARES
Meu artigo saído hoje no "Sol":
O Sol tem ciclos. Quando o jornal “Sol” apareceu nas bancas, em 16 de Setembro de 2006, o 23.º ciclo solar aproximava-se do fim, mas hoje, já desde Dezembro de 2008, estamos no 24.º ciclo. Os ciclos da nossa estrela não são exactamente regulares, pois a sua duração tem variado entre 9 e 13 anos, com a média de 11. Por isso, ninguém sabe quando acabará o 24.ºl ciclo solar. Mas, em 2013, é previsível que cheguemos a meio do actual ciclo, devendo então a actividade solar atingir um novo máximo. Há quem receie uma grande actividade no próximo ano, mas tudo indica que ela vai ser apenas moderada. Não vai haver nenhum fim do mundo.
Como se medem os ciclos solares? Porque vamos no ciclo 24? Os ciclos são medidos contando as manchas na face do Sol. Essa contagem só começou a a ser feita partir de 1755, embora haja registos de anteriores observações de manchas. Galileu, por exemplo, observou no início do século XVII manchas solares, tendo polemizado com o padre jesuíta Scheiner acerca desse fenómeno. Curiosamente, na segunda metade do século XVIII, embora tivessem persistido os ciclos, a actividade solar reduziu-se drasticamente, pelo que esse período ficou conhecido por “mínimo de Maunder” (do nome de um astrónomo inglês) . Pelo contrário, em torno de 1950, observou-se o chamado “máximo moderno”.
Embora pareçam pequenas vistas da Terra, essas manchas cobrem enormes zonas. Parecem escuras por a sua temperatura bastante mais baixa do que no resto do astro-rei. Sabe-se desde o início do século XX que essas regiões são especialmente magnéticas. Aparecem graças aos movimentos do plasma, a matéria muito quente em desalinho no interior da nossa estrela. Alguma irregularidade no aparecimento das manchas reflecte a complexidade da dinâmica nas entranhas solares. Mas o ciclo, que está associado a inversões periódicas do campo magnético solar, permanece misterioso. Para aprendermos mais, temos de continuar a olhar para o Sol. Na astrofísica, como em geral na ciência, é bem mais o que não sabemos do que aquilo que sabemos.
PS) Também o “Sol”, que em breve comemorará seis anos, tem ciclos. Com a renovação do semanário, cessa a minha coluna “Heliosfera”. Ao jornal que me acolheu e, acima de tudo, a todos os leitores, o meu muito obrigado.
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
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