terça-feira, 1 de maio de 2012

Um século depois de Piltdown: lições da maior fraude paleoantropológica.



Com a devida vénia, transcrevo aqui a primeira crónica que a Antropóloga Forense 
Eugénia Cunha elaborou para o projecto "Ciência na Imprensa Regional - Ciência Viva", 
e que já foi publicada em vários jornais regionais.

Há cem anos, a história da evolução humana ficou marcada pelo anúncio do que terá sido a maior fraude cometida nesta ciência. Era apresentado o primeiro homem, que não só era europeu como inglês. Foi a cereja em cima do bolo para os eurocentristas que conseguiram a incrível proeza de fazer prevalecer o homem de Piltdown como o primeiro homem durante 41 anos. Efectivamente, só em 1953 a fraude foi desmascarada: tratava-se de uma mandíbula de orangotango cuidadosamente adaptada para articular num crânio humano moderno.

Os criadores da fraude conseguiram mitigar a sua responsabilidade a ponto de ainda hoje se afirmar que não se sabe exactamente quem estava por detrás daquela montagem bem orquestrada. De qualquer modo há nomes, como o de C. Dawson e A. Woodward, que ficaram irreversivelmente manchados. Piltdown é um marco indubitável da história da paleoantropologia e, talvez, uma das fraudes científicas mais duradouras.




Das várias lições que dela podemos derivar destacaria a enorme e perigosa influência das tendências nacionalistas e em como é falacioso ver nas alegadas descobertas provas de teorias concebidas sem quaisquer evidências subjacentes. Cria-se e queria-se que o primeiro homem tivesse já um grande cérebro e assim foi. Era essa a ideia dos perpetuadores da fraude: o desenvolvimento cerebral teria antecedido o bipedismo. A aceitação deste falso dogma constituiu uma barreira para a aceitação de fósseis africanos indiscutivelmente cruciais. A criança de Taung, África do Sul, anunciada à comunidade científica por R. Dart em 1925 teve que esperar décadas para ser aceite como o, à época, fóssil mais antigo da humanidade (com mais de dois milhões de anos).

Dart e o seu Australopithecus africanus, que foi efectivamente o primeiro membro dessa espécie a ser descoberto, tiveram, por causa do homem de Piltdown, que esperar décadas para ser reconhecidos. Foi também a primeira vez que se utilizou a designação de Australopithecus que hoje é um género que inclui várias espécies. Hoje o menino de Taung, que já era bípede mas com uma pequena capacidade craniana, continua a ter um papel essencial na evolução humana, provando o enorme visionarismo do seu descobridor. Inversamente, Piltdown e os seus alegados autores são mencionados como um péssimo exemplo do que pode acontecer em ciência. Não se pretende pois comemorar uma efeméride já que Piltdown é absolutamente desmerecedor (não obstante ter tido direito a um memorial, em 1938,em Inglaterra, um acto lamentável!).

O objectivo desta crónica é avivar a memória relativamente à facilidade com que acontecem fraudes. Cem anos depois, a febre de encontrar “ o primeiro”, seja o 1.º homem, seja o 1.º homem anatomicamente moderno a chegar à Europa, seja o 1.º estúdio de arte, o 1.º colchão, mencionando aqui apenas algumas das descobertas que foram consideradas o Top 10 dos achados paleoantropológicos de 2011 pela Smithsonian Institution.

A fraude!

É inegável que haverá maior notoriedade, maior divulgação se a descoberta for a primeira de qualquer coisa. Valerá por isso a pena, para alguns, correr o risco e anunciar descobertas surpreendentes mesmo numa época em que a aceitação das mesmas passa necessariamente por um crivo científico alegadamente apertado. A Nature a Science tendem a funcionar como esses crivos, mas nem sempre estarão completamente isentas de outras influências. Por isso uma boa dose de cepticismo, q.b., continua a ser fundamental quando são divulgadas as grandes notícias científicas sobre a nossa história natural.

Eugénia Cunha

(Professora Catedrática de Antropologia no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra)

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