quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O ESTATUTO DA CARREIRA DOCENTE, A MINISTRA E OS SINDICATOS


“A primeira igualdade é a justiça” (John Kenneth Galbraith, 1908-2006)

Pelo que que tem sido largamente noticiado pela comunicação social, a actual ministra da Educação, Isabel Alçada (na foto), e os sindicatos dos professores encontram-se em negociações para a revisão do Estatuto da Carreira Docente, embora correndo o perigo dessas negociações se eternizarem. Ou mesmo se gorarem pelas ameaças constantes da Fenprof em abandonar a mesa das negociações, atrasando, com isso, as reformas necessárias num sector vital para o país, como sejam os desenvolvimentos social, cultural e económico da sua gente, que não pode estar ao sabor de um sindicalismo saudoso de épocas tumultuosas do passado.

Numa espécie de “casa roubada trancas à porta”, acaba de ser publicado um estudo sobre A Dimensão Económica da Literacia em Portugal, que nos diz que “o futuro económico de Portugal está em risco e um dos caminhos para encontrar uma solução que permita ao país ser mais competitivo passa pelo investimento na literacia” (Público, 3/12/2009).

Dadas as características habituais da luta laboral dos sindicatos docentes temo que o que se discute continue a ser uma questão de euros e de igualar desiguais numa hora em que o ministro da Economia, habitualmente respirando optimismo por todos os poros, nos adverte de que “o país vive um momento difícil que exige responsabilidades” (Jornal de Notícias, 2/12/2009).

Talvez por pessimismo, não tenho detectado nem grande nem pequena vontade em melhorar os caminhos tortuosos da educação. O sucessivos ministérios da Educação têm-se limitado em encarar os problemas pela rama, e em função das idiossincrasias dos seus titulares. Por outro lado, os sindicatos têm-se posicionado ao serviço de interesses da respectiva clientela que se compaginam em tornar o magistério numa massa igualitária em que os medíocres se acolhem à sombra daqueles que ainda ousam lutar por uma educação melhor e mais justa porque, para isso, queimaram as pestanas em noites insones de estudo.

Como escreveu António José Saraiva, uma referência incontornável da cultura portuguesa, “nestas condições a caça ao diploma tornou-se em Portugal generalizada e premente, consistindo em obter o acesso a um estatuto social privilegiado com o menor esforço possível”. Mas trata-se de um vício consentido pela tradição nacional, e perpetuado em nossos dias, que encontra raízes queirosianas no século XIX: “É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política do expediente” (O Distrito de Évora, 1867).

Radica-se, portanto, em mim a dúvida se tudo não ficará na mesma, ou quase na mesma, por os mandantes dos legisladores se limitarem a dar-lhes orientações no sentido de limarem as rugosidades de textos ásperos que possam causar atritos laborais, procurando continuar um destino sem espinhos de professores e alunos, como se estivessem a fazer uma obra de que o país se deva orgulhar no futuro (com a sinceridade que a política não consente).

Não acredito, portanto, que se aproveite uma ocasião soberana como esta para se acabar com a guerra entre meio-irmãos, filhos do mesmo pai - o ensino superior - e de mães diferentes - a universidade e a escola politécnica -, destinados à docência dos diversos níveis do ensino não superior, criando, assim, um ambiente desconfortável quer para uns quer para outros , embora com o beneplácito de sindicatos com clientelas que beneficiam deste “statu quo igualitário.

Seria fácil resolver este problema atribuindo às escolas superiores de educação a formação de educadores de infância e professores dos 1.º e 2.º ciclos do ensino básico e concedendo aos alunos saídos das faculdades os ensinos do 3.º ciclo do básico e do secundário Mas bem sei que uma mudança neste sentido daria azo ao choradinho do elitismo como se a defesa das elites não fosse coisa boa e justa pela chamada que faz ao escol intelectual da sociedade capaz de impulsionar o desenvolvimento de um país mergulhado na “apagada e vil tristeza” de ser, em muitos aspectos, uma das lanternas vermelhas da União Europeia.

Ora é aqui que começam os trabalhos para a ministra da Educação ao dizer "estar empenhada na criação de um sistema de avaliação de professores que recompense o esforço e a qualidade” (Diário Económico, 26/11/2009). Espero bem que, uma vez mais, se não cumpra o aforisma de que “de boas intenções está o inferno cheio”. Aliás, tenho dificuldade em compreender como é que os “teóricos” da educação se eternizam nos lugares de cúpula sindical, sem viverem na carne os problemas dos professores (que se sentem ultrapassados por medíocres acarinhados pelo poder político e pelo próprio ambiente escolar ou porque pertencem ao mesmo partido ou por outras causas que tanto têm desprestigiado o ensino público, quando comparado com um ensino privado que não contemporiza com a mediocridade).

A propósito, ou mesmo a despropósito, concedo: como foram avaliados os dinossauros do dirigismo sindical que chegaram ao topo da carreira docente afastados das escolas e da função docente? Entretanto, professores bem mais credenciados academicamente e de grande experiência pedagógica marcaram e marcam passo num acesso congelado a escalões mais altos da carreira docente a que têm direito de facto e de jure. Quanto mais tempo estará este país preso ao atavismo de ver uma meritocracia substituída pela mediocracia em que “o pensamento representa um capital inútil e um fardo embaraçoso para jornadear pelo caminho da vida” (Manuel Laranjeira, O Norte, 1908)?

Para tanto seria necessário retirar a razão que assiste a Albert Hirschman: “Sempre que se propõe uma reforma, é verdade que, primeiro, a reforma não vai alterar em nada o que já existe, segundo que a reforma vai produzir efeitos exactamente contrários aos que pretende ter, e, terceiro, que a reforma vai prejudicar o que havia de positivo na reforma anterior”. Acontece, porém, que o caso é bem mas grave. O Estatuto da Carreira Docente, com as alterações que lhe têm sido feitas, criou um Frankenstein de “cadáveres adiados” (Fernando Pessoa) que, paradoxalmente, lhe serviram de sopro de vida licenciosa que se deseja perpetuada, embora se jure a pés juntos o contrário.

E o pior disto tudo é que os seus nefastos efeitos só se virão a projectar no futuro, deixando atrás de si uma geração de cobaias de pedagogias em que se fazem experiências, como, se, por vezes, estas não fossem "o nome que damos aos erros que cometemos", como escreveu Oscar Wilde. Com os computadores Magalhães a inundarem as nossas escolas, colocados nas mãos ávidas de alunos de tenra idade, corre-se o risco de os seus cérebros em formação se automatizarem, como acontece na própria adultícia na opinião de Erich Fromm: “O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos; o perigo do futuro é que os homens se tornem autómatos”.

Receio mesmo que estejamos a entrar na época do “tecnolês”, em analogia com o “eduquês”. O futuro o dirá, mas poderemos ter, nos dias vindouros, consciência tranquila pelos erros que andamos hoje a cometer?

Nota: Inseri neste texto excertos de um comentário meu em resposta a um outro de Manuel Nunes de Castro, sobre o post “Nuno Crato, a Escola e as Novas Tecnologias” (1/12/2009).

18 comentários:

Fartinho da Silva disse...

Estou completa e absolutamente convencido que as ditas "reformas" têm apenas três objectivos:
1º reduzir custos com o pessoal "docente";
2º aumentar o sucesso estatístico dos "alunos":
3º manter os grupos de pressão.

Se as tais "reformas" forem como as introduzidas pelo governo anterior, teremos os "professores" mais facilitistas, mais entertainers, mais pós-modernos e naturalmente todos aqueles que pertencem a grupos disciplinares menos exigentes no que ao estudo individual diz respeito e que mais actividades lúdicas prestam aos "alunos" a subir na carreira e os outros que leccionam disciplinas como Física, Matemática, Química, Biologia, entre outras, e que se esforçam para que os estudantes aprendam de facto a sentirem-se no congelador até... mudarem de vida. Estes últimos professores têm três caminhos:
1º manterem-se com o mesmo vencimento até se reformarem;
2º mudarem de vida e passarem a professar a fé das "ciências" da educação;
3º mudar de vida e concorrerem para uma escola privada a sério ou mudarem de emprego.

Enquanto não se discutir o cerne da questão, continuaremos a ouvir o ministério e os sindicatos a discutirem a espuma, ou seja estatutos, avaliações docentes, planos tecnológicos, da leitura, da matemática; e qualquer dia planos das línguas, das ciências, da educação física,...!

José Batista da Ascenção disse...

Não, qualquer mexida que haja não deixará tudo na mesma ou quase. Disso estou certo. Iniciei-me como professor já fez vinte e cinco anos. Fui estagiário, efectivo, do quadro de nomeação definitiva e estou quase a deixar de ser titular, sem pena, de resto. Por mor da obrigação, nos últimos dois anos fui designado avaliador, qualidade que deleguei logo que pude, mas não escapei de pertencer a uma comissão de coordenação da avaliação docente. Previamente havia "participado" na elaboração dos documentos da avaliação: grelhas, grelhas e mais grelhas, que consumiram horas e horas de esforço e de tristeza... Dias houve em que saímos da escola à meia-noite, e uma dessas noitadas foi interrompida quando os ponteiros tinham chegado à uma da madrugada do dia seguinte. Qualquer mortal imagina a energia com que se inciavam as aulas desses dias seguintes, às oito e vinte... A barragem de legislação era caudalosa e ininterrupta. Em cada escola,os mais diligentes abasteciam-se de literatura apropriada na "lixeira" da internet e com ela iam mais longe do que a hierarquia... Os resultados de toda essa azáfama estão à vista. Só não os vê quem não quer ver. Em reunião havida com figura grada da Direcção Regional de Educação do Norte, que então era adjunto, pedi a palavra e comparei o sitema de avaliação proposto a um autocarro sem pneus, sem luzes e sem travões que estávamos obrigados a fazer andar, para depois aquilatarmos do sucesso da viagem. Na resposta, foi-me dito que podia até ter acrescentado que ao volante estava um louco... pois forçoso era que se movesse!
Digamos, pois, que não falo apenas por falar.
Não, o que quer que seja que venha a seguir não deixará tudo na mesma ou quase... É ver a tendência dos últimos vinte e cinco anos. O resto está no comentário de Fartinho.

Manuel de Castro Nunes disse...

Estatutos, avaliações, literacias.

Caro Rui.

E aqui do meu posto, recalcitrante na atitude de olhar de fora, para não me precipitar na alucinação da acção, vou intervindo talvez em contradição à premissa.
A reformulação do Estatuto da Carreira Docente é, do meu ponto de vista, talvez das últimas prioridades de um sistema educativo que não conseguiu ainda formular os seus fins. Assim sendo, como formular o estatuto dos professores? Este raciocínio aplicar-se-ia, obviamente à formulação de um modelo de avaliação para os professores. Fique todavia claro que não coloco em questão a legitimidade de a comunidade e o sistema avaliarem contínua e rigorosamente os professores.
Como avaliar os professores? Complexa questão. Do meu ponto de vista, o primeiro referente para a avaliação de um professor seriam os seus resultados. Ora, num contexto em que o insucesso atinge taxas nunca esperadas, transversalmente, das duas uma: ou previamente aos professores, devíamos avaliar o sistema, ou os professores são uma massa indistinta de ineptos. Em que ficamos?
Sou do tempo em que o modelo do professor diligente e rigoroso era o professor de matemática. Porque era aquele que exibia maior taxa de insucesso e de contribuição para a retenção. Pensei sempre: aqui há gato…
E perdoem-me os professores, pois, se acompanharem o meu raciocínio, terão a certeza de que não é contra eles que verbero.
Não são os professores quem resiste à mudança, uma vez que é óbvio que algo tem que mudar. É o sistema, quando continua a pensar que, quando tiver os professores todos muito rigorosamente avaliados e e arrumadinhos em seus estatutos, tudo começa a rolar. Mas os professores, provavelmente, continuarão a não saber o que fazer dentro do sistema. Repetirão quotidiana e ritualmente as rotinas que o sistema impõe e que redundam numa avaliação exuberante.
Não, caros amigos. Na escola não existem apenas alunos a lutarem pelo canudo, existem os professores a lutarem pelo estatuto e o sistema a reclamar pelas palmas.
E prometo-lhe que suspendo aqui a minha intromissão. Vou pensar um bocado.
Mas antes faria um apelo. Há termos e expressões que se tornam bordões e moda, sem que nos apercebamos de que podem condicionar a nossa relação com as coisas.
Que quer dizer rigorosamente «literacia», seja, o que pretende nomear? Há coisas que uma vez nomeadas jamais se libertam do nome. «stat pristina rosa nomine», Eco. Porque deixámos de falar em cultura? Bem, este tema talvez me mobilize para mais umas intromissões.

Anónimo disse...

Estou de acordo com "Fartinho da Silva". É necessário dizê-lo e ousá-lo fazê-lo, que o "cerne da questão" é o sistema de ensino que não cria perspectivas nem objectivos, não estimula professores, não forma nem educa alunos para as dificuldades futuras. Em vez de se andar entretido com outras questões é necessário alterar a imagem que se criou da escola e retomar o espaço que esta ocupou, como local de formação, educação, trabalho e geradora de vocações.

João Moreira

Anónimo disse...

Continuamos então a reduzir o núcleo dos problemas do ensino a uma questão laboral de sindicatos e avaliação de professores? Isso é um grande logro. Isso é a parte residual, embora seja a mais visível para o mero financiador. A preocupação do governo é cortar custos, não é a qualidade do ensino.

O problema da qualidade do ensino passa pela qualidade dos currículos e dos programas. Agora vêm defender que História e Geografia devem ser aglutinadas numa só área, vêm aprofundar o desperdício do "aprender a aprender", que actualmente nas escolas já ocupa 5 horas por semana do 5.º ao 9.º ano (mais do que Português ou Matemática ou qualquer outra disciplina).

Os alunos passam a vida a saltar por estas aulas sem programa, onde se "improvisa" porque os professores não tiveram preparação específica para esta tarefa. Procurem informar-se do que é Área de Projecto, do que serve e de como é abordada nas escolas. Aqui e ali um ou outro professor mais inspirado lá faz alguma coisa vistosa mas não necessariamente eficaz enquanto aprendizagem. De resto...

Um professor de Matemática será sempre mais eficaz a ensinar Matemática do que a guiar os alunos na metodologia do aprender-a-aprender.

Vejam o que fizeram com os novos programas de Português do Ensino Básico, onde se exige que as mil e tal escolas reinventem a roda a partir de um documento de 180 páginas, que deverá ser reorganizado em cada agrupamento de escolas, adaptado às características específicas. Quantas horas se gastarão a fixar os programas em cada escola? Não era preferível um programa nacional fixo e liberdade para introduzir pequenas alterações?

Não é uma questão de sindicatos, nem de negociações laborais. É uma questão de opções pedagógicas.

jad disse...

Boa noite. Vim parar ao De rerum natura por acaso (bem sei que o acaso não é propriamente um facto de ciência...). Parece-me redundante dizer da qualidade que o inspira e alimenta. Passarei sempre que me movimentar pela blogosfera.

Quanto a este post e aos comentários associados:
1. Estão centrados no problema central: o êxito ou fracasso do educação estão na qualidade dos currículos, na qualidade dos saberes, na qualidade dos professores:
2. A qualidade dos professores depende do rigor da sua formação académica, educativa e pedagógica;
3. A sua formação depende dos meios e das motivações que lhes estiverem associadas;
4. Os meios dependem das políticas identificadas como fundamentais para a formação das novas gerações:
5 e último. As políticas dependem dos princípios que dinamizarão todo o processo de ensinar e de aprender. E aqui é que começa a confusão e a discórdia.
Com efeito, são muitos os equívocos associados à actividade docente. E muitas as perguntas. Uma, emblemática e problemática, é a úlitma frase do post: "Receio mesmo que estejamos a entrar na época do “tecnolês”, em analogia com o “eduquês”. O futuro o dirá, mas poderemos ter, nos dias vindouros, consciência tranquila pelos erros que andamos hoje a cometer?" Pois é. Mas há outro receio de efeitos também nefastos: o "cientês", a crença na ciência como único critério de pensar o mundo e a vida. Se o "eduquês" nos leva a um certo esvaziamento do ensinar, o "tecnês" a um esvaziamento do aprender, o "cientês" leva-nos a um esvaziamento do diverso, da dúvida, da poesia, da filosofia, da arte.
Bem sei que a ciência não é isso. Mas o "cientês" é.

Cá voltarei, se for caso disso.

jad disse...

Boa noite. Enviei um comentário assinado por Jad. Reparei que pretendem a identificação com o nome verdadeiro. Ei-lo: José Alberto Damas, nem mais, nem menos.

Rui Baptista disse...

Estou com um problema no meu computador.

Depois de resolvido, terei grande prazer em trocar impressões com os comentadores que me dirigiram comentários.

Comentários que me obrigam a uma reflexão pessoal. Desde já, obrigado.

Rui Baptista disse...

Caro Fartinho da Silva:


O seu comentário fez-me reflectir sobre os verdadeiros motivos da aversão que a Fenprof tem aos colégios particulares e que penso poder sintetizar da forma seguinte (e abreviada):

1.Os colégios escolhem os professores e são exigentes no rendimento escolar dos alunos.
2.O Estado cinge-se à nota de licenciatura quer se trate de candidatos de universidades ou de escolas superiores de educação.
3.O Estado limita-se a a cacarejar bons resultados estatísticos que a realidade nos diz serem ovos sem postura.
4.Não havendo comparações entre ranking's (pese embora os defeitos que eles possam apresentar) poderá a Fenprof dizer que tudo corre no melhor dos mundos no ensino oficial não havendo, numa apreciação ofensiva para os mais capazes,diferenciação entre os bons e os maus professores: são todos bons.
5.Bondade que a realidade se encarrega de desmentir quanto o simples exame de acesso à profissão é posto em causa, mesmo quando incide sobre matéria de Português para evitar que haja professores (de toda e qualquer disciplina) não capazes de redigirem uma simples acta ou expressarem-se oralmente com correcção.

Rui Baptista disse...

Caro Manuel:

Em boa verdade, agradeço a sua chamada de atenção para este facto: o que se pretende do nosso ensino? Estamos a formar quem, como e para quê? A partir desta premissa talvez nos apercebamos que não interessa ter passado de um “país de analfabetos para um país de burros diplomados”, numa análise amarga de Francisco de Sousa Tavares.

Queremos um país de licenciados no desemprego? Estamos no bom caminho. As Novas Oportunidades passam diplomas do 12.º ano enquanto o diabo esfrega um olho. Mas isto não chega ainda? Temos o acesso ao ensino superior para maiores de 23 anos cuja finalidade terá sido arranjar clientela para o ensino superior privado de má qualidade que distribui diplomas de licenciatura como quem distribui um bodo aos pobres de massa cinzenta.

Eu ainda compreenderia, ou até louvaria, que as Novas Oportunidades tivessem com finalidade contribuír para uma melhoria do suporte teórico para certas profissões dela carenciadas. Não para transformar um bom artífice num funcionário de papel e caneta. Péssima caneta!

Se o Manuel reparar (e já reparou, desculpe-me a redundância), as matérias do ensino secundário que agilizavam o pensamento dos alunos foram subalternizadas. Escrevi-o num post deste blogue, “O exame nacional de filosofia” (23/07/2007). Dele transcrevo um pequeno naco de prosa:

“Hoje, numa época em que os responsáveis pela tutela da Educação – em nome de uma deplorável facilidade no acesso ao ensino superior, ou (apenas) como tal plasmado na lei! - em boa hora arrepiaram caminho na decisão em acabar com o exame da Literatura Portuguesa, mas persistem em manter essa decisão no que se reporta à Filosofia, uma questão se levanta. Deverá a Filosofia ser valorizada no
âmbito dos cursos de humanidade e ser subalternizada no domínio das Ciências Naturais?”

O resto do meu texto foi argumentar na defesa de um ensino sério e valorizado quer para alunos com destino às chamadas humanidades, quer para as ciências. Quanto à Literatura Portuguesa ela não acabou, como escrevi, mas abastardou-se com o desprezo pelo estudo dos nossos melhores escritores (substituídos por sinopses de escassas páginas das sua obras), muito deles património da cultura mundial. Os respectivos exames vieram substituir as cruzinhas do totobola, com a diferença de em vez de haver 3 hipóteses (vitória, derrota e empate) passar a haver 4 hipóteses.

Meu Caro Manuel, para um ensino deste jaez, sem bússola que o oriente, com programas que pretendem fazer passar os nossos filhos ou netos como indigentes intelectuais, etc., qualquer tipo de professor serve. Utilizando uma linguagem popular, “para quem é bacalhau basta”. Redimo-me, portanto, de ter massacrado os meus possíveis leitores com coisas sem importância (por pôr o carro à frente dos bois), como seja a formação dos professores. Sem ponta de ironia, o digo!

Rui Baptista disse...

Caro José Batista da Ascenção:

Começo por registar o seu optimismo. Eu, a exemplo de um saudoso amigo, já falecido, que me dizia preferir ser um pessimista que se engana a ser um optimista que se engana, comungo deste pensamento, negativo dirão uns, realista diria ele e digo eu.

Ou seja, quando me pergunta“acha que qualquer mexida deixará tudo na mesma” ?, ocorre-me retorqui-lhe: ficará tudo pior ou melhor? Para tanto, como escrevi, seria necessário fazer orelhas moucas às palavras (se) loucas de Albert Hirschman: “Sempre que se propõe uma reforma, é verdade que, primeiro, a reforma não vai alterar em nada o que já existe, segundo que a reforma vai produzir efeitos exactamente contrários aos que pretende ter, e, terceiro, que a reforma vai prejudicar o que havia de positivo na reforma anterior”.

O braço-de-ferro entre a Fenprof e a ministra da Educação (ou vice-versa), depois de uma brevíssima lua de mel tende em transformar-se num divórcio. Litigioso, mesmo! Esperar que venha algo de bom destas negociações, quanto a mim, seria o mesmo que esperar que a Marguerite Gautier da “Dama das Camélias” não tivesse exalado o último suspiro, depois de uma grave hemoptise, só porque o Armand Duval lhe coloriu de carmim as faces pálidas.

Queira Deus, portanto, que eu seja um pessimista que se engana e que venham daí dias radiosos de concórdia entre as partes desavindas sem cedências que dêem o golpe de misericórdia num ensino deplorável que tem andado, muitas vezes, a reboque de interesses de uns e de outros.E entre estes e outros, não estão contabilizados os interesses doa alunos e do país em que "não tiveramm a culpa de nascer", escreveu-o, salvo erro, Jorge de Sena.

Aliás, a comparação que fez do actual sistema de avaliação proposto “a um autocarro sem pneus e sem travões” tenho-a por feliz se a referência se reportar, outrossim,como julgo que se reporta, à antiga avaliação que nivelava os professores pela mesma bitola, quer fossem óptimos, bons, maus ou medíocres. O respeito que me merecem os professores que fizeram do magistério um “modus operendi” ao serviço de uma sociedade mais culta, mais desenvolvida e mais ética leva-me a tomar uma posição, possivelmente, havida por politicamente pouco correcta (ou mesmo incorrecta) por parte de uma certa mediocridade docente.

Mas há alturas na vida em que se tem de tomar um opção. Boa ou má, esta a minha opção tomada em boa consciência.

Rui Baptista disse...

Prezado João Moreira:

Associo-me aos seus princípios, que eu me atrevo a ter por votos, em prol de uma educação melhor, através de uma escola, como escreve no final do seu comentário, “como local de formação, educação, trabalho e geradora de vocações”.

Aliás, António José Saraiva, em título de texto critica a “diplomocracia” a-propósito de uma cidade do Norte que reclamava (e conseguiu) um instituto 'universitário', evocando o amor à ciência e à instrução”(D.N., 31/08/1979). Quanto a uma escola geradora de vocações, defende-a, igualmente, o mesmo autor quando escreveu (preto no branco): “A escola não pode impedir que um indivíduo que seria um excelente doutor não passe de um serralheiro, ou que um bom serralheiro acabe num mau doutor”. E, nesse tempo, nem sequer lhe passaria pela cabeça o país de “carreiristas”(palavra que roubo a João Lobo Antunes) em que se tornaria Portugal que ele já não veria e que em menos de um fósforo aparecem licenciados por todo o lado como cogumelos em terreno húmido.

Rui Baptista disse...

Caro anónimo: Penso que muitas das críticas que faz aos programas, bem ou mal, completa ou incompletamente, já as abordei ou, pelo menos, tentei abordar.

Como diz, é tudo uma questão de opções pedagógicas, em que o “aprender-a-aprender” se tornou num jargão do eduquês, que têm sido preteridas por meras lutas laborais em que se estiolam vontades em melhorar o ensino. Se é que as há, mesmo.

Sei que o pão para a boca é uma questão fisiológica de sobrevivência. E o pão para o espírito não será uma forma de nos emanciparmos da escravatura dessa mera condição para continuarmos agentes de uma cultura que se quer perpetuada para as gerações do provir?

Pode ser que eu tenha exagerado na tónica das pressões de natureza sindical confundindo prioridades.Mas terei mesmo?

Rui Baptista disse...

Meu Caro José Alberto Damas:

Congratula-se o blogue com a promessa em passar [pelo De Rerum] “sempre que se movimentar pela blogosfera”.

Como terá verificado todos os temas que dizem respeito a todas as formas de cultura são aqui abordados, porque se comunga da opinião de um expoente de um Saber multifacetado, Abel Salazar, catedrático de Medicina no Porto que legou para a posteridade um princípio que deve estar sempre presente nos cientistas, e que cito de memória (tantas vezes foram as que o citei): “Um médico que só sabe de Medicina nem isso sabe”.

Até breve, portanto.

Manuel de Castro Nunes disse...

Tinha prometido não me intrometer mais no assunto. Faço-o para transcrever pensamento e diligência alheia. Suscitando partilhas transversais. Porque a pedagogia deve ser informada pela filosofia. Há mais mundo do que imaginamos por debaixo dos nossos pés.

De Vitor Oliveira Jorge.
http://trans-ferir.blogspot.com

Bernard Stiegler - Primeiros contributos para um glossário
Bernard Stiegler - Primeiros contributos para um glossário
(arquitectura de conceitos - “work in progress” baseado nas palavras/definições do próprio autor – atenção, para não se pensar que estou a fazer qualquer tipo de plágio, quando se trata apenas de “apontamentos de estudo”, traduzidos por mim. Voltarei regularmente a eles, para os modificar, ampliar, enriquecer, até abarcar se possível toda a estrutura básica do pensamento do autor. Fundamental para se perceber uma série de questões filosóficas, desde o papel da técnica aos processos de individuação a ela ligados, até ao forjar de um pensamento crítico contemporâneo simultaneamente materialista, revolucionário, e não redutor, isto é, capaz de afastar a transcendência, proporcionar a abertura do futuro em termos diferentes, e não deitar fora nada do que anteriormente passava por teológico ou transcendente.
Ulteriormente, este pensamento, que é de inspiração kantiana, husserliana e simondiana deveria ser cruzado com o de outros autores. Um verdadeiro “guia” do pensamento crítico contemporâneo não pode obviamente ser um dicionário, mas, muito embora organizado por ordem alfabética, constituir uma espécie de modelo de orientação num quadro de infinitas transformações conceptuais, e do que em filigrana está por detrás delas em termos de “cavername conceptual”, não esquecendo as modificações, as mutações que conceitos aparentemente afins ou semelhantes/contrastados sofrem no mesmo autor, de autor para autor, de momento para momento, etc., etc. Não se trata de subsumir tudo num quadro harmónico – não estamos há uns séculos atrás, em que havia sistemas de pensamento, mas de comparar perspectivas e ir estabelecendo uma cartografia dos campos de forças conceptuais que nos são co-presentes. Tentar, em última análise, uma primeira cartografia pessoal da fragmentação, procurando utilizar de forma útil as forças da dispersão num sentido oposto ao da desorientação e alienação. Se chegar a essa fase, esse trabalho não procurará jamais erigir-se em norma, mas apenas apresentar-se como instrumento de trabalho, e assumidamente subjectivo.
Confusão da logística e do símbolo – sua integração não crítica – conduz à proletarização do espírito e à depauperização da cultura, quer dizer, à destruição das capacidades unificadoras dos fluxos temporais que as consciências individuais são
Consciência – é essencialmente livre, diacrónica, excepcional, irredutivelmente minha (ipseidade). É temporal, em fluxo contínuo, mas também no sentido de que a sua forma é histórica e evolutiva. É um arqui-cinema
Consciências individuais – podem ser destruídas nas suas capacidades de projecção, ou seja, de desejo, que é sempre singular. Das duas, uma: ou se afundam nas indústrias de programas, ou são apanhadas nas redes dos “perfis de utilizador”, que permitem sub- estandardizar e portanto tribalizá-las em sub-comunidades
Controlo total dos mercados – sincronização dos fluxos temporais de consciências
Crítica da realidade contemporânea – tem de ser radical e está ainda por fazer. O momento crítico de Kant, o da sua opção, é o do esquematismo fundamental. Stiegler vai tentar recolocar a questão em termos de um cinema da consciência.
Decomposição das consciências – está a processar-se pela via da hiperindustrialização dos objectos temporais
Devir técnico – primeira suspensão de programas, revolução do sistema técnico de uma época
Diacronia e sincronia – estão em permanente composição entre si, não se podem opor permanentemente

Extracto. Ver original.

José Batista da Ascenção disse...

Caro Rui Baptista:

Quando escrevi que "...o que quer que venha a seguir não deixará tudo na mesma ou quase... é ver a tendência dos últimos vinte e cinco anos" queria apenas dizer que a minha experiência vivida lá onde dói, quer dizer sempre com o horário preenchido com a leccionação a várias turmas, me mostra que cada ano é pior do que os anteriores. Ora estando tudo tão claro quanto Fartinho o enunciou, em termos dos interesses envolvidos e dos protagonistas [e aqui a nova ministra é apenas mais uma, a que há-de suceder outro(a), com a mesma irrelevãncia], é para mim claro que o que quer que se faça nestas condições só pode continuar no plano inclinado (descendente) em que deslizamos... Por outra palavras: o meu pessimismo é bem maior do que o seu, porque o Rui Baptista admite que o que se faça vá deixar tudo na mesma ou quase, e eu, pelo meu lado, e com as mãos na massa, sinto e sei (sofridamente) que vai ser pior...
Quanto ao sistema de avaliação que esteve em vigor nestes dois anos julgo-o, como ao anterior (que não era nada),uma abjecção.

Rui Baptista disse...

Caro José Alberto Damas


O Rerum só se pode congratular com o acaso que o trouxe até aqui e, “ipso facto”, com o facto de nos passar a visitar. Será sempre bem-vindo com os seus comentários.

Como poderá ver (ou já viu mesmo), este blogue tem a preocupação de abordar todos os temas que dizem respeito à cultura, lamentando o desprezo a que têm sido votadas as humanidades, mormente, no que respeita ao ensino da Literatura em que os textos dos bons autores portugueses, como Camões, Eça, Antero, Pessoa,etc., foram substituídos por sinopses ou até por textos de jornais. E o que dizer dos respectivos exames nacionais com cruzinhas do tipo totobola não com 3 hipóteses (vitória, derrota, empate) mas com 4 hipóteses. Isto para já não falar no caso verdadeiramente escandaloso da Filosofia que deixou de ter exames nacionais.

Disso mesmo, muito criticamente, dou conta, num post, aqui publicado e intitulado “O exame nacional de filosofia” (23/07/2007), em que começo por citar Georges Gusdorf: “O fascínio tecnicista e cientista é um sinal dos tempos, cujas repercussões se fazem sentir na organização, ou antes, na desorganização do sistema de ensino, a todos os níveis”.

Aliás, como tenho citado muitas vezes (e por isso o cito de memória), o professor catedrático de Medicina do Porto, Abel Salazar, com uma vastíssima cultura nos vários domínios das humanidades e das artes legou-nos este princípio: “Um médico que só sabe de Medicina nem isso sabe”.

“Mutatis mutandi”, este perigo pode aplicar-se a outras profissões de carácter científico que correm o perigo de uma nefasta especialização com os liames de saber cada vez mais de cada vez menos. Se nos recordarmos grandes cientistas deram um valioso contributo no âmbito da Filosofia, por exemplo.

E quantos médicos portugueses não foram ou são escritores notáveis, como Júlio Dinis, Fernando Namora e António Lobo Antunes?

P.S.: Escrevi um comentário deste tipo, tendo ficado na dúvida se o enviei ou não. "In dubio", reformulei-o e reenvi-o.

jad disse...

Caro Rui Baptista

Fico encantado com o comentário ao meu comentário.

O que me leva a participar num debate é aquilo que Habermas designava por "desejo de intercompreensão", associado àquilo que os filósofos chamam de"douta ignorância". É, ao fim e ao cabo, o desejo de aprender porque se sabe que é pouco o que se sabe, mas sabe-se alguma coisa. E, já agora, outra motivação: quem sabe ensina, quem não sabe aprende. Se o desejarem.

Grato pela recepção e pelo muito que aprenderei. Nos posts e nos comentários.

O corpo e a mente

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