sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
CIÊNCIA DA TRETA
“Conversa da Treta” foi o título de uma peça de teatro popular protagonizada pelos actores José Mário Gomes e António Feio. A palavra “treta” já adquiriu, porém, um significado filosófico além do popular. Com efeito, o filósofo norte-americano Harry Frankfurt num livrinho intitulado “Da Treta” (no original “On bullshit”, tradução portuguesa da Livros de Areia) disserta não sobre a mentira, um conceito com um significado epistemológico superior uma vez que mentir pressupõe conhecer a verdade que é negada, mas sobre a “treta”, isto é, a conversa em que a verdade e mentira se entrelaçam confusamente porque o falante não está minimamente interessado em separar uma de outra, mas sim e apenas em baralhar tudo e todos.
O livro “Ciência da Treta”, saído há pouco tempo na Bizâncio, é um dos melhores livros de divulgação da ciência vindos a lume em Portugal no ano de 2009. É seu autor o inglês Ben Goldacre (na foto), médico formado pela Universidade de Oxford, com prática no Serviço Nacional de Saúde inglês, especializado em Psiquiatria, e conhecido do grande público, pelo menos britânico, devido principalmente à sua coluna semanal aos sábados no jornal “The Guardian”. O livro resultou precisamente da compilação dessas crónicas, tendo até no original o mesmo título da coluna: “Bad Science”. Traduzido à letra teria dado em português “Má Ciência”, mas o editor fez bem em traduzir por “Ciência da Treta”. O autor analisa – e fá-lo sem papas na língua! – um conjunto de “tretas” das áreas da medicina e farmácia que é alimentado por um conjunto de pessoas – incluindo vários praticantes de pseudociências (como os homeopatas e outros curandeiros), grande indústria farmacêutica, nutricionistas com grande poder mediático, etc.
O autor conhece bem o método científico, isto é, a maneira de que dispomos hoje para descartar o erro, para separar tanto quanto possível a verdade da mentira. E, no sector da saúde, mostra como o método científico pode ser e é largamente ignorado, ao mesmo tempo que se fazem passar por credíveis um vasto conjunto de tretas, às quais se atribui injustificadamente uma base científica. É um livro de combate – um livro manifestamente em favor da ciência e impiedosamente contra a má ciência ou, talvez melhor, a pseudociência – num mundo que, apesar de estar cada vez mais dominado pela ciência, passa, em muitos aspectos, ao lado dela.
O estilo divertido do autor é um principais atractivos do livro. O seu humor revela-se, por exemplo, quando, no prefácio, afirma que se, no final da leitura, o leitor continuar a discordar dele, estará pelo menos a discordar dele “com muito mais estilo”:
“E se, quando terminar, ainda achar que discorda de mim (…) não deixará de estar errado, mas pode ter a certeza que o estará só que de uma forma muito mais confiante e com muito mais estilo do que poderia apresentar neste momento.”
No Capítulo 2 ridiculiza um programa denominado “Ginástica Cerebral”, que é “impingido” em escolas oficiais do Reino Unido, e que não passa, para Goldacre, de um “sem-fim de disparates vergonhosos e embaraçosos”. O programa recomenda, por exemplo: “Beba um copo de água antes das actividades de Ginástica Cerebral. Dado tratar-se de uma componente principal do sangue, a água é vital para o transporte do oxigénio ao cérebro”. Comenta Goldace: “Deus nos livre de o sangue secar por completo” . A escola portuguesa está mal, mas podia estar pior se tivessem cá chegado essas tretas!
No Capítulo 4 ataca os homeopatas, dizendo, a propósito da pretensa memória da água que esses “cientistas da treta” reclamam, que a circulação da água é uma enorme trivialidade:
“A água que tenho no corpo, no preciso momento em que estou aqui sentado a escrever em Londres, já passou pelos corpos de muitas outras pessoas antes do meu. Talvez algumas das moléculas de água que estão nos meus dedos ao escrever esta frase se encontrem presentemente no globo ocular do leitor, Talvez algumas das moléculas de água que transmitem informação aos meus neurónios no momento em que decido se vou escrever “chichi” ou “urina” besta frase estejam agora na bexiga da rainha (que Deus a abençoe): a água não faz distinções, anda por aí a circular. Basta olharmos para as nuvens.”
Mais ainda, no Capítulo 6, desmascara um famoso nutricionista da televisão britânica Michael van Straten, que, perante as câmaras, afirmou com um gesto teatral que um sumo de romã acrescentava dois anos à vida (alguns meses, emendou a seguir), falando de uma investigação recente, “acabada de publicar na semana passada na América”, segundo a qual o sumo de romã protege do envelhecimento. Na verdade, consultada a Medline, uma base de dados de referência da investigação biomédica internacional, Goldacre não encontrou nada que se parecesse, nem de perto nem de longe, com um estudo deste tipo que tivesse as conclusões que foram propagandeadas. A menos que, em vez de um artigo científico, se tratasse, sugere o nosso autor, de um panfleto da indústria das romãs… Isso não quer dizer que beber sumo de romã não faça bem à saúde, apenas quer dizer que a ciência, num bom exemplo de “conversa da treta”, foi invocada em vão pelo nutricionista!
Como remédio contra as patranhas que todos os dias nos entram via televisiva ou computacional pelos olhos dentro, Goldacre recomenda a medicina baseada na evidência, isto é, a medicina baseada na lógica e na experimentação. Explica o que são testes duplamente cegos (testes clínicos nos quais nem o doente nem o médico sabem que estão a receber ou a dar um medicamento, pois este aleatoriamente é substituído por algo inócuo, o chamado placebo) e a sua necessidade para a certificação de novos fármacos. Há aqui um fenómeno bastante curioso: O simples facto de um paciente saber que está a ser tratado favorece o seu restabelecimento, mesmo que ele esteja a tomar um inofensivo comprimido de açúcar. Este é o chamado “efeito placebo”, que, por estranho que pareça, existe na realidade, quer dizer, um doente a quem foi dado uma vulgar pastilha de açúcar, sem quaisquer propriedades terapêuticas, tem uma maior probabilidade de curar do que a que é dada meramente pelo acaso. O autor explica como os resultados da medicina baseada na evidência contrastam por completo com os das medicinas ditas alternativas, que, por isso, não podem ser consideradas alternativas válidas.
O penúltimo capítulo da tradução portuguesa ocupa-se de um curandeiro inglês que pretendia curar, por meio de vitaminas, a SIDA na África do Sul, país onde essa doença atingiu proporções alarmantes (é bom lembrar a posição estúpida que o governo desse país assumiu no passado, chegando a negar que a doença, era causada por um vírus). Essa crítica deu origem a um processo em tribunal, no qual o médico foi defendido por advogados do "The Guardian". O original não pôde, por isso, incluir este capítulo saído no jornal. Como no Reino Unido a justiça é mais célere do que em Portugal - o que aliás não é difícil- , não demorou muito até que Goldacre ganhasse o processo, ficando naturalmente as respectivas custas a cargo da parte queixosa. E a tradução portuguesa já acolheu o texto que estava interdito.
Depois de demolir por completo as críticas completamente injustificadas que saíram nalguns média à vacina tríplice por, alegadamente, ser causa de autismo, Goldacre dedica algumas palavras à pandemia causada pelo vírus H1N1, no final do livro. Põe ênfase na incerteza associada ao nosso actual conhecimento da doença. E aponta o dedo aos média, por não conseguirem separar o trigo do joio. “Já nem neles próprios acreditam”, conclui o nosso autor. O livro “Ciência da Treta”, distinguido em 2008 pela Royal Society (a Academia de Ciências britânica), é um verdadeiro antídoto contra os disparates num tempo onde, estranhamente, estes são muito mais abundantes do que seria expectável.
- Ben Goldacre, "Ciência da Treta", Bizâncio, 2009.
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1 comentário:
Evidentemente que tudo EVOLUI.
Será assim tão difícil compreender que o chamado "Acordo Ortográfico" não corresponde a uma EVOLUÇÃO?
É preciso explicar o que significa EVOLUÇÃO? Então não explico porque não tenho "pachorra"...
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