quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

As políticas-diluente

Novo texto de João Boavida, como de costume antes publicado n´As Beiras:

O Iluminismo criou, no século XVIII, uma ideia magnífica sobre o género humano e uma esperança na sua redenção, demasiado próxima e fácil. Consideravam, e com razão, que a ignorância era a fonte de quase todos os males. Sobretudo do obscurantismo e da sua irmã gémea, a crendice. Os quais impediam tanto a compreensão das coisas e a análise crítica das atitudes e das situações, como a capacidade de escolher as melhores soluções, na base de informação credível e objectiva. Pensava-se que tendo sido fácil, até aí, aos políticos e aos poderosos, dominar massas embrutecidas e analfabetas, com a instrução generalizada e a cultura das “luzes”, em breve as populações seriam constituídas por cidadãos capazes de decidir pelas próprias cabeças, ganhando maturidade política e social. Por outro lado, a democracia, transformando todos em activos participantes na escolha dos políticos e das políticas, tornaria aqueles – os políticos – em efectivos defensores das ideias e dos anseios dos que os tinham escolhido, e estas – as políticas – em forças orientadas para objectivos colectivos importantes e apoiadas em sentimentos acarinhados pelas populações.

Desta visão idílica nasceu uma ideia de progresso feito por nós, resultado da acção dos homens e dos poderes políticos, ultrapassando a visão fatalista a que estávamos sujeitos, e da vida terrena como um lugar de sofrimento e purificação. A felicidade e o bem-estar eram possíveis e estavam na nossa mão, e com o esclarecimento generalizado e progressivo das massas o futuro seria pacífico e feliz.

Ou seja, a visão teleológica ou finalística das religiões e a sua ideia de salvação final foi adoptada pela concepção racionalista e iluminista, que se tinha desenvolvido no combate às religiões, isto é, lutando contra a crença como forma de conhecimento e solução para os grandes problemas, e contra a subserviência afectiva como sentimento dominante face às forças transcendentes e misteriosas. Do mesmo modo que, nas concepções religiosas, a vida piedosa e justa levaria à salvação das almas e à vitória final do bem, para os racionalistas da modernidade a informação, o conhecimento e sobretudo a nossa capacidade racional produziriam cidadãos cada vez mais evoluídos e sociedades mais justas, perfeitas e pacíficas.

Infelizmente, nem tudo assim foi. Houve enormes progressos científicos, sociais, económicos, educativos, sanitários nos séculos XIX e XX, mas também se assistiu a hecatombes humanas e a crueldades inimagináveis, enfim, à "libertação do mal", como escrevi noutro lugar. E em nome de progressos infalíveis e futuros risonhos sacrificaram-se gerações inteiras, ao mesmo tempo que se multiplicavam subtis e eficazes estratégias de condicionamento que se riem do sentido crítico dos humanos, e os mantêm dependentes e obscurecidos. E por estas e outras a actual descrença angustiada em relação ao futuro e à natureza humana.

Desorientados por políticas de futuros virtuais, descrentes das religiões e das suas esperanças, críticos ferozes das instituições e dos valores em que assentam, precisamos hoje de políticos que não acelerem mais a vertigem em que voamos sem saber para onde. Neste momento precisamos de tudo menos de políticas que funcionam como ácido sulfúrico ou diluente sintético da sociedade e das suas estruturas. Com massas sem perspectivas de futuro, nesta ou noutra vida, conservem-lhe, ao menos, as instituições que as estruturam. Lembrem-se daquela passagem de São Mateus - que aliás Alves Redol utilizou como epígrafe no “Barranco de Cegos” - «…deixai-os, cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia outro cego, ambos vêm a cair no mesmo barranco»?
João Boavida

2 comentários:

Manuel de Castro Nunes disse...

Contra a corrente da epopeia do fortuito, oportuna intervenção, Caro João Boavida. Ressalvo apenas que não necessitamos de meter os políticos nisso, não vá sair-nos o tiro pela culatra. Congreguemos a gente em torno desse fim. Os políticos lá continuarão pelo seu caminho, guiados uns pelos outros. A democracia, ou seja lá o que for, só atingirá maturidade quando se emancipar dos políticos. São eles que nos trazem cativos. E quem manipula os meios para tal. Será que de facto necessitamos deles, ou eles quem se impõe sem ser convidado?

Anónimo disse...

"Com massas sem perspectivas de futuro, nesta ou noutra vida, conservem-lhe, ao menos, as instituições que as estruturam."

Não se preocupe que a liga de futebol está aqui para durar.

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