sexta-feira, 11 de julho de 2008

Ideologia

Algumas pessoas pensam que tudo é ideologia, ou que todo o ensino é ideológico. Esta ideia foi dada como óbvia por alguns comentadores na sequência do meu post "E os Perigos do Ensino Privado?", como o Jorge e o Pedro. esta ideia é dificilmente defensável, e é impossível defender que é óbvia. Pode parecer óbvia porque é um lugar-comum, mas como muitos lugares-comuns, revela-se pouco plausível quando se pensa um pouco. Vejamos porquê.

A ideia de que tudo é ideologia enfrenta, para começar, uma dificuldade óbvia. Se dizer que tudo é ideologia é dizer que tudo é mera expressão dos interesses de classe ou expressão de opções injustificáveis, então também a ideia de que tudo é ideologia é ideológica, e como tal injustificável e um mero artigo de fé. O que significa que quem discorda da ideia de que tudo é ideologia pode limitar-se a concordar com quem afirma tal coisa, para de seguida negar tranquilamente tudo o que essa pessoa disser, precisamente por ser ideológico, ou negar todos os métodos de discussão de ideias que ela propuser, por serem todos ideológicos, ou todos os sistemas de ensino que ela propuser, por serem todos ideológicos. Em conclusão, a ideia de que tudo é ideologia é obviamente incoerente. É como gritar “GRITAR É IMPOSSÍVEL!”: o próprio acto de gritar pressupõe a negação do que se está a afirmar aos gritos.

Pensa-se por vezes erradamente que este tipo de posição auto-refutante é “paradoxal”. Mas isto é confundir dois conceitos cruciais: auto-refutação e paradoxo. Um paradoxo não é uma afirmação auto-refutante. Uma afirmação auto-refutante é uma afirmação necessariamente falsa. Um paradoxo é um argumento aparentemente válido com premissas aparentemente verdadeiras que conduz a uma conclusão aparentemente falsa. O paradoxo é que nenhum argumento válido com premissas verdadeiras tem conclusão falsa e por isso algo tem de estar errado, mas não se consegue ver o que é. Quando temos um paradoxo, algo está errado nas nossas premissas ou no nosso raciocínio, e o desafio é perceber o que raio está errado. Quando temos uma afirmação auto-refutante não temos qualquer paradoxo: temos apenas a certeza de que a afirmação é falsa porque se refuta sozinha. Confundir os dois conceitos é uma psicofoda.

Mas o aspecto mais importante é a incompreensão que esta posição trai da natureza da racionalidade e da argumentação. Quando se pensa que tudo é ideológico pensa-se que a argumentação e a racionalidade são elas mesmas ideológicas porque se baseiam sempre em pressupostos que queremos proteger da livre discussão. Pensa-se que a argumentação e a racionalidade é uma questão de adoptar como artigos de fé certos axiomas e a partir daí pensar de maneira mais ou menos automática nas consequências desses artigos de fé. Isto é um disparate, e dos grandes. Talvez o melhor antídoto que conheço a esta concepção verdadeiramente palerma e infelizmente comum da racionalidade e da argumentação seja esta passagem do livro Sobre a Liberdade (1859), de John Stuart Mill, que toda a gente deveria ler:

"Há uma grande diferença entre presumir que uma opinião é verdadeira porque não foi refutada em qualquer das oportunidades que houve para a contestar, e pressupor a sua verdade para impedir a sua refutação. O que nos dá justificação para presumir a verdade da nossa opinião para efeitos de acção é uma liberdade completa para a contradizer e provar a sua falsidade; e sob nenhumas outras condições pode um ser com faculdades humanas ter qualquer garantia racional de ter razão." (p. 55)

"Se não fosse permitido que até mesmo a filosofia newtoniana fosse questionada, as pessoas não sentiriam uma tão completa certeza da sua verdade como agora sentem. As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento. Se o desafio não é aceite, ou se é aceite e a tentativa é gorada, estaremos, ainda assim, longe da certeza; mas teremos feito o melhor que a condição presente da razão humana permite; nada teremos negligenciado que pudesse dar à verdade a hipótese de vir ter connosco: se o conjunto de crenças for mantido em aberto, podemos esperar que, se houver uma verdade melhor, será encontrada quando a mente humana estiver preparada para a aceitar; e, entretanto, podemos ter a certeza de estarmos tão próximos da verdade quanto possível, na altura presente. Esta é a quantidade máxima de certeza alcançável por um ser falível, e a única maneira de a alcançar." (pp. 57-58)

A racionalidade não é um “jogo” entre outros, no qual partimos de certas regras, admitidas como artigo de fé. A racionalidade é a abertura completa para discutir tudo, incluindo as regras da discussão. É por isso que se pode distinguir claramente um ensino ideológico, por exemplo, de um ensino não ideológico. Um ensino ideológico transmite, por exemplo, a ideia de que devemos ser ecologicamente responsáveis, respeitadores das diferenças culturais, ou cidadãos participativos. E, como dizia Orwell, o problema disto não é realmente o que está a ser dito: “O inimigo é o espírito de gramofone, quer concordemos quer não com o disco que está a tocar nesse momento.” Em contraste, um ensino que não seja ideológico permite a discussão de tudo, e impede o espírito de gramofone, que é a repetição acrítica de ideias — como a ideia de que todo o ensino é ideológico.

Por que razão as pessoas têm tanta dificuldade em compreender a racionalidade e a argumentação? Talvez, em parte, porque foram vítimas de um ensino autoritário e ideológico; foram psicofodidas desde muito cedo para aceitar certas ideias como intocáveis; erigiram nas suas mentes zonas de intocabilidade que não podem ser postas em causa. E é neste aspecto que Orwell viu bem a psicofoda ideológica: tanto faz ensinar ciência ou da astrologia, o problema é ensinar ideologicamente, acriticamente. A grande diferença entre uma e outra não se nota quando ambas são transmitidas ideologicamente, acriticamente. Mas nota-se quando estamos abertos à discussão: ao passo que uma resiste à tentativa de refutação, a outra cai às primeiras discussões livres. E é isto que distingue um ensino ideológico de um que não o é; é isto que distingue uma posição ideológica de uma que não o é. Uma, está permanentemente aberta à crítica, ao passo que a outra ergue zonas de intocabilidade, artigos de fé que não podem ser postos em causa.

Na ciência e na filosofia e nas artes TUDO pode ser posto em causa. Só na religião e na ideologia há zonas de intocabilidade, porque é da protecção cuidadosa dessas zonas que depende a sobrevivência da religião e da ideologia. Daí que todas as ideologias e todas as religiões tenham tendência para declarar que há coisas que escapam à argumentação, à racionalidade, à discussão aberta e pública: porque sabem que essa é a única maneira de proteger uma coutada de ideias que, se forem expostas à discussão aberta, se revelam menos plausíveis do que as suas concorrentes.

A melhor razão que qualquer um de nós tem para aceitar os resultados da ciência é simultaneamente a melhor razão que temos para não aceitar as revelações religiosas e as doutrinações ideológicas: é que umas são convites permanentes a toda a humanidade para as refutar, ao passo que outras apenas convidam os eleitos a aceitá-las, ao mesmo tempo que lançam o anátema sobre os que as rejeitam.

18 comentários:

Jorge Carreira Maia disse...

Caro Desidério,

É muito curioso que quando se fala em ideologia toda a gente parece ouvir a palavra marxiana sobre o assunto. Ora, antes de Marx falar em ideologia (como imagem invertida do real devido a uma distorção provocada pelos interesses de classe), o termo já existia e tinha sido objecto de investigação de um dos discípulos de Condorcet: Destutt de Tracy. Pretendia estudar as ideias como o produto da relação entre um organismo vivo e o ambiente onde se insere. A ideologia remete assim, muito claramente, para os processos de construção simbólica que o homem produz na sua interacção com o meio que o envolve. É só aqui que se pode enxertar uma segunda concepção de ideologia como distorção ou imagem invertida, aquela que Marx descortinou. Mas esta concepção não é essencial. Parece que o Desidério vive fascinado pelo marxismo.

Se se considerar a ideologia na primeira acepção toda a retórica (sim, é retórica. É estratégia que visa o convencimento ou vencimento do outro utilizando o argumento da análise lógica da linguagem) sobre proposições auto-refutantes deixa de ter sentido. É evidente que os sistemas simbólicos da humanidade, onde se incluem os sistemas lógicos e os argumentativos, são representações construídas segundo um interesse específico da espécie: a adaptação ao meio para subsistir; são estratégias vitais. Que destas estratégias resulte uma coisa tão nebulosa como a verdade é coisa que eu, por limitação pessoal, não entendo.

É evidente que todo o ensino é ideológico: é transmissão de sistemas simbólicos às novas gerações. Por detrás deste ensino há um interesse específico: a persistência daquela comunidade. Mas também é verdade que todo o ensino corre o risco de se tornar ideológico na segunda acepção, a de Marx. Aqui tanto o ensino público como o privado.

A minha posição no debate anterior ligava-se a isto: considerando que havia um interesse específico da comunidade em transmitir determinados sistemas simbólicos (falei em linguagens), essa transmissão seria mais eficiente feita pelo ensino público do que pelo privado, por razões que fui expondo. O ponto de divergência está aqui: enquanto eu olho para o fenómeno da comunidade que se quer autoperpetuar no tempo e utiliza instrumentalmente o ensino para isso, o Desidério valoriza o impulso do indivíduo para o saber e o valor intrínseco deste. Eu não tenho esta visão romântica (a sobre-importância vocacional do génio individual) do problema. Mas ao considerar que estas posições são ideológicas (são representações simbólicas das respostas a um interesse da espécie), que são construções feitas por um ser limitado e relativo – o homem, também estou a dizer que não são revelação de qualquer verdade, por isso são abertas e discutíveis. A minha posição não é mais verdadeira, julgo apenas que responde melhor aos interesses que estão em jogo, mas mesmo sobre estes e a sua hierarquização não estamos de acordo. É minha convicção que nunca terei a verdade da coisa e que a discussão não tem fim, a não o dado pelo cansaço. Daí não compreender o tom catequético do post.

Abraço.

Vitor Guerreiro disse...

Quando falamos em "persistencia da comunidade" estamos a falar especificamente no que? Na preservaçao física da comunidade nao será, pois mesmo que todas as ideias queridas da comunidade no momento t1 desapareçam em t2, os membros que compunham essa comunidade ou os seus descendentes biologicos continuarao a existir, provavelmente.
Sendo assim, a "persistencia da comunidade" tem de ser a persistencia nao da própria comunidade mas das ideias queridas. Mas isso apenas significa que há indivíduos para quem é interessante preservar as ideias queridas. Contudo, à luz do argumento comunitarista ou estatista, isto é ininteligível, pois o comunitarista pensa, à velha maneira hegeliana, que o indivíduo é uma abstracçao. Se pensarmos na comunidade como um superindivíduo que deseja a perpetuaçao no tempo, curiosamente, já o hegeliano nao sente estar a incorrer em qualquer abstracçao da imediatez.

Ou seja, se pensarmos que um organismo individual pensa ou faz qualquer coisa, estamos na abstracçao, segundo o hegeliano. Mas se pensarmos que tudo o que o individuo faz é mera expressao de uma "construçao simbolica" ou que há um deus societal ou um ectoplasma comunitario a pensar por ele, parece suficiente para escapar à abstracçao.

"O individuo pensa que...." é uma abstracçao. Mas "o Geist pensa no individuo que..." já nao é abstracto.

Mas nao é evidente que isto é uma psicofoda verbal, que as pessoas se deixam meramente seduzir pelo efeito que certas expressoes tem na sua imaginaçao, como "simbólico" ou "comunitário"?

Carlos Pires disse...

"Na ciência e na fylosofia TUDO pode ser posto em causa." Assim, a própria ideia de que "tudo pode ser posto em causa" pode também ser posta em causa. Mas fará sentido fazê-lo?
Carlos Pires

Desidério Murcho disse...

Falácia da redefinição, Jorge. Se você entende por “ideologia” “qualquer representação da realidade”, então realmente provou que qualquer representação da realidade é ideológica. Mas como o que se queria saber era se qualquer representação da realidade era ideológica, isto de nada adianta. Pois agora o que vamos querer saber é se toda a representação da realidade é uma representação enviesada, que serve interesses particulares e carece de justificação racional.

Desidério Murcho disse...

Olá, Carlos: sim, faz sentido pôr em causa a ideia de que tudo pode ser posto em causa. Na verdade, é muito comum fazer-se tal coisa: as pessoas que querem proteger certas ideias que não resistem à discussão pública (astrologia, numerologia, etc.) querem sempre declarar que certas ideias, as suas ideias preferidas, não podem ser postas em causa sob pena de estarmos a ser “intolerantes”. Esta forma de falso inclusivismo é apenas uma maneira de tentar estabelecer limites ao que pode ser posto em causa. Mas não é directamente incoerente pôr em causa que tudo possa ser posto em causa. Não se cai em contradição directa.

Jorge Carreira Maia disse...

Caro Desidério,

Desde o princípio que você entende ideologia na perspectiva marxiana. Só comentei porque apareci ligado, no seu texto, a uma posição que não é a minha.

Não fiz nenhuma redefinião do que entendia por ideologia. Não mudei o significado. Apenas esclareci o que entendia pelo conceito. Para mim nunca esteve em causa que o ensino terá de ser ideológico segundo a forma como o Desidério apresenta a ideologia. Estou de acordo consigo. O problema da ideologia é muito mais complexo do que a leitura marxiana deixa antever. Mas nem sequer estou interessado em discutir sobre o assunto. Se quer fazer uma cruzada contra o Marx, não sou eu que vou sair em defasa dele. Falacioso é atribuir aos outros aquilo que os outros não pensam.
Abraço,

Jorge Oliveira disse...

Ó meu caro Desidério Murcho :

Eu não quero interromper este debate elevado acerca de ideologias, mas precisamente porque se pretende elevado, julgo que o recurso a termos como “psicofoda” e “psicofodido” trazem o debate para um nível muito baixo.

O defeito pode ser meu, que já nasci há muitos anos, mas começo a detectar uma tendência para o recurso a termos anteriormente banidos do discurso de gente educada, em pessoas que, aparentemente, possuem níveis elevados de formação académica.

Acrescento a este caso, o exemplo infeliz da fraseologia de um tal Rui Curado Silva, intitulado investigador do Departamento de Física da Universidade de Coimbra e autor do blog Klepsýdra, onde encontrei um texto com este título elucidativo “Broches a uma ideologia que é contra a Ciência”, no seio do qual os leitores são brindados com frases de fino recorte como “este colóquio tem tudo para ser considerado mais um broche à ideologia neoconservadora”.

Eu sei que a forma e a essência são coisas distintas, mas não penso que uma boa essência seja valorizada por uma forma rasca.

Desidério Murcho disse...

Jorge Oliveira, os termos "psicofoda" e "treta" traduzem respectivamente "mindfuck" e "bullshit". Sobre este assunto, leia este artigo:

http://criticanarede.com/mindfucking.html

Desidério Murcho disse...

Jorge, imagine que eu lhe dizia que tudo é verde. E você acharia estranho. Pacientemente, tentaria argumentar comigo, para me explicar por que razão há coisas que não são verdes, mas sim brancas. E vai daí eu dizia-lhe: ah, e tal e o camandro, para mim, "verde" quer dizer "colorido".

Se "ideologia" quer dizer para si o que você agora diz que é, a sua referência à ideologia desde o início que foi disparatada, pois é nesse caso trivial que, no seu sentido do termo, tudo é ideológico. Mas nesse caso mais valia não ter usado o termo e ter afirmado que concorda comigo que o ensino não deve ser manipulativo, enganador, sofístico ou enviesado. Pois desde o início era isso que estava em causa.

Vitor Guerreiro disse...

Eis uma diferença entre a cultura anglo-saxónica e a nossa. O Colin McGinn pode publicar um texto intitulado "Mindfucking" para discutir um conceito que idependentemente do que ele, Colin, diga ou faça, já existe e circula no mundo em que Colin habita. Sendo Colin filósofo, não se pode deixar retrair por pudores de outros tempos, em que até a inteligência era coisa obscena para quem governava.

Não era essa "boa educação" a que justificava que os dirigentes instruídos do estado mandatassem alguns censores analfabetos para redigir indexes das obras que era preciso banir por serem "mal educadas"?

Este é um aspecto curioso da tradição analítica: os filósofos anglo-saxónicos estão a superar uma coisa que para nós ainda é extremamente complicada: não temos vocabulário para falar de certas coisas a não ser um vocabulário "malandro" ou um vocabulário "higiénico". Nada disto é imposto pela realidade mas pelos mitos infantis que nos foram moldando a mente ao longo dos séculos.

Muitos leitores provavelmente ficarão mais "descansados" depois de saber que há um autor anglo-saxónico que se conseguiu safar a publicar um livro com esse título e que até é lido com seriedade. Seguindo mais uma vez o nosso atavismo lusitano, o termo, uma vez que aparente ter sido sancionado por uma autoridade qualquer, tornar-se-á menos ácido. O que torna tudo isto ainda mais frustrante.

Vou agora partilhar algo que me sucedeu: traduzi um romance há cerca de dois anos em que tinha diversos parágrafos violentos, com alguns palavrões. Descobri quando o livro saiu que a revisora apagou "mijei" num parágrafo particularmente violento e substituiu por "fiz xixi". Não sei se os leitores estão a imaginar o ruído que provoca nos ouvidos ver aquele parágrafo, com aquela marca nítida de lápis azul, ridícula, patética. Reminiscente do mesmo provincianismo salazarista representado por aquele espantalho de pedra a pairar sobre Almada, que todos avistamos ao atravessar o Tejo.

Anónimo disse...

Concordo com o que o Desidério escreveu, sobre TUDO dever ser posto em causa. Mas analisando isto sobre uma perspectiva de aluno, muitas vezes é complicado fazê-lo. Em história, por exemplo, como é que eu vou pôr em causa aquele facto ? Como é que o professor me pode provar que aquilo realmente aconteceu ? Em matemática, por exemplo, se as aulas fossem dadas sob uma forma não ideológica, eu poderia, perfeitamente pedir ao professor para me provar que 1+1=2 , desta maneira queimava a aula toda. O que eu quero dizer com isto, é que há muitos aspectos em que é difícil provar algo, tanto por ser intelectualmente difícil, como por não haver tempo útil para o fazer. Apesar disso, devemos estar atentos ao que ouvimos não aceitando nada como garantido e certo. Devemos analisar, cuidadosamente, tudo o que nos é dito de uma forma crítica e saudável. Porque duvidar por duvidar é triste e patético. Quando o fazemos, devemos dizer o porquê da dúvida. O porquê de não concordar:
“A terra, tem uma lua.” “Não concordo” “Porquê ?” Porque não”.
É óbvio que aqui “duvidamos por duvidar”, o que não tem lógica nenhuma. Por isso quando o fazemos, deve ser com cabeça e não com o sentido de “duvidar por duvidar”. Em relação à religião, acho interessante essa criação de barreiras. Em qualquer diálogo, nunca chegamos a uma conclusão. Por isso mesmo é complicado falar sobre esse assunto especificamente. Ninguém consegue provar o seu lado. Poderemos pedir a um religioso para provar a existência do seu ídolo. Mas, por outro lado, somos nós que estamos a exigir, por isso mesmo, nós é que teríamos que provar que ele não existe. Sendo assim, não chegamos a grande conclusões.

rui.

Jorge Oliveira disse...

Caro Desidério : estou-me nas tintas para que os anglo-saxónicos utilizem o termo “mindfuck”. É lá com eles. Mas não rejeito o recurso a um palavrão quando enquadrado no contexto e quando faz sentido. No meu entender o neologismo “psicofoda” não faz qualquer sentido, em nenhum contexto. Aliás, nunca compreendi a razão por que alguns empregam a segunda parte do termo para traduzir uma coisa má. Por ignorância e falta de prática, certamente. Mas isso é outra conversa.

Indo ao seu texto, V. pergunta : “Por que razão as pessoas têm tanta dificuldade em compreender a racionalidade e a argumentação?” E adianta : “Talvez, em parte, porque foram vítimas de um ensino autoritário e ideológico (…)”

Não recuso, mas não penso que seja essa a razão principal. O ser humano, por muitas peneiras que alguns exemplares ostentem, não deixa de constituir um produto de um processo biológico talhado para a sobrevivência, reprodução e morte. A racionalidade, um atributo que se confunde com inteligência, no sentido de “capacidade de compreensão da relação causa-efeito”, não necessita de uma grande amplitude para satisfazer os objectivos da sobrevivência. Basta que permita ao candidato a sobrevivente reconhecer as relações causa-efeito que dão resultados imediatos, quer para caçar uma presa, quer para fugir de um predador. Não é por acaso que distinguimos inteligência de esperteza.

Exigir a todos os seres humanos que possuam elevados atributos de racionalidade e argumentação, pode ser uma violência. E alguns, aqueles que, não obstante as suas limitações cerebrais, ainda conseguem perceber que não possuem esses atributos, podem até tornar-se perigosos perante aqueles que com eles argumentam e que lhes querem abrir o espírito à racionalidade.

Por exemplo, os fanáticos evangélicos, ou lá que é, detestam as pessoas que defendem a teoria da evolução, contra o criacionismo que satisfaz as suas mentes limitadas. Também os fanáticos do global warming não hesitam em ofender todos os que se revelam cépticos relativamente aos putativos efeitos catastróficos do dióxido de carbono antropogénico. Uns e outros podem tornar-se perigosos. Por enquanto limitam-se às ameaças, mas se tivessem poder suficiente, não hesitariam em recorrer às fogueiras.

Como já deixei escrito em anterior comentário, as ideologias e as religiões já mataram mais gente do que todas as epidemias juntas. Cuidado, portanto.

Vitor Guerreiro disse...

"No meu entender o neologismo “psicofoda” não faz qualquer sentido, em nenhum contexto."

Como é que você diz isto e depois escreve "antropogénico"? Está a ver a contradição? Mas lá está a psicofoda: se formos buscar um neologismo bárbaro a uma tradução do Kojeve ou algo semelhante é diferente de concebermos uma palavra que traduz o melhor possível o conceito que queresmo, em vez de uma descrição do fenómeno que esse conceito procura articular.

A meu ver, faz muito menos sentido copiar neologismos sem saber porquê, do que construir as palavras de que precisamos e das quais sabemos por que precisamos delas.

Vitor Guerreiro disse...

"Aliás, nunca compreendi a razão por que alguns empregam a segunda parte do termo para traduzir uma coisa má."

Se ler a minha recensão ao livro do McGinn verá que uma das razões pelas quais optei por "psicofoda" foi precisamente o facto de, ao contrário de "bullshit" (treta), que tem apenas um sentido negativo, "mindfuck" ser ambígua: tem um sentido positivo e um negativo. Foi precisamente para captar essa ambiguidade entre o positivo e o negativo que usei o "psicofoda".

Vitor Guerreiro disse...

Caro Rui,

Se eu afirmar que o Abominável Homem das Neves existe, o ónus da prova não cai sobre quem duvida mas sobre mim. Sobretudo se eu pregar às pessoas que o Abominável Homem das Neves é omnisciente e que se as apanhar na privacidade a executarem certo tipo de fricções cutâneas vai castigá-las com uma bola de neve vingadora.

Há um detalhe que gostaria de frisar, sobre o problema da argumentação. O primado da argumentação e da questionabilidade, nas ciências e na filosofia, não significa que qualquer afirmação pode ou deve ser provada. Essa é precisamente a distinção crucial entre o ideológico e o racional: nao se trata apenas de construir argumentos mas de testar os argumentos com contra-exemplos e contra-argumentos. A afirmação filosófica e científica é um convite ao teste permanente dessa afirmação. A afirmação ideológica é um convite à aceitação, que tenta evitar a contra-argumentação através do poder sugestivo quer da mentira, quer da treta (falsidades ou verdades irrelevantes à mistura) quer da psicofoda (que na sua versão negativa inclui todo o tipo de manipulação das emoções e da imaginação do auditório).

As pessoas têm alguma dificuldade em assimilar este aspecto: falar contra a ideologia não é banir certo tipo de conteúdos, por exemplo, "doravante, é proibido falar em consciência de classe porque somos anti-ideologia". O problema não são os conteúdos mas o modo como se forma os conteúdos, as crenças. Há a tendência de pensar que uma lavagem ao cérebro só pode ser feita com conteúdos "feios", que uma pessoa normal rejeita. Mas uma lavagem ao cérebro pode perfeitamente ser feita com conteúdos a que podemos aderir com motivos racionais. Há uma diferença entre ensinar uma criança que x é mau ou ensinar as ferramentas para chegar a conclusões acerca de x.

Podemos nunca chegar a acordo sobre assunto x ou até podemos nao ter como saber a verdade sobre x, mas isso nao significa que o modo como formamos crenças acerca desse assunto seja um modo ideológico. O cepticismo pode ser o resultado crítico de uma investigação crítica. Este resultado não tem de ser uma afirmação bombástica ou uma "prova" daquilo em que queremos acreditar. Um exemplo disto é o texto do Colin McGinn "Podemos resolver o problema da mente-corpo?"

Uma das ironias nisto é que as pessoas rejeitam do Marx precisamente uma coisa em que ele acertou. Ele tinha de facto essa concepção da ideologia como inversão da realidade. Mas para ele este sentido era negativo. A ideologia era precisamente aquilo que é desejável afastar. Quem vai dar uma inflexão positiva ao termo são os autores de vulgatas do marxismo, as quais não passam de trampa ideológica para tentar naturalizar à força uma certa imagem do mundo. Era precisamente esse modo de pensar e escrever que era tão comum na Alemanha e que fez tanto o Marx como o Nietzsche vilipendiar a escrita alemã. Veja-se o modo como Nietzsche trata a "padralhada de Tubingen" (o seminário teológico de onde sairá o Idealismo Alemão) e afirmações ainda mais heráticas, como a de que até Maquiavel a escrever sobre um tema árido é melhor escritor do que as luminárias alemãs contemporâneas do Nietzsche.

Rui leprechaun disse...

Sim, tudo pode ser posto em causa... mas será que não existem mesmo interesses corporativos e outros, na Ciência?!

Afinal, a velha natureza humana é a mesma num ateu ou num crente, num cientista ou num filósofo ou num religioso.

Depois, a ciência, tal como a religião, não vivem em compartimentos humanos e isoladas da sociedade, claro. Ou seja, relacionam-se igualmente com outra áreas importantes, como a política ou económica, mesmo que estas se possam considerar "ciências sociais", mas este é já um termo algo vago e difuso...

Um exemplo concreto, e que já foi atrás apontado, é o do famoso "aquecimento global", que em boa verdade até agora ninguém viu nem sentiu. Mas tanto se martela esse conceito, que qualquer normal anomalia atmosférica agora já tem vilão identificado: "global warming", beware! Seja ele devido ao aumento do CO2 por acção do Homem ou não, o certo é que tal parece ser um dado adquirido na mente do cidadão comum e, mais importante ainda, na dos decisores políticos que são estes quem realmente manda e executa, para o bem e para o mal.

Ora isto põe-nos perante um problema "ideológico" ou de escolha, de que muitos cientistas se queixam. É que a investigação pode talvez ser orientada já para produzir certos resultados mais convenientes, como a controvérsia sobre o pretenso aquecimento tem vindo a demonstrar. Aliás, aqui o facto de uma figura política de relevo estar na linha da frente de todo o movimento pró teoria do aquecimento é bem significativo. Mais ainda quando se sabe que a preocupação de Gore com o tema já vem de há 20 anos atrás, não é fenómeno recente!

Logo, não será caso para perguntar que ideologias também pode a ciência servir? E, mais ainda, que real progresso tecnológico, no campo de energias ainda não desenvolvidas, a própria ciência pode activamente impedir ao ridicularizar e ostracizar os seus dissidentes, ou seja, cientistas que têm uma visão diferente?!

A este respeito, e embora um pouco fora do tema, deixo aqui este site acerca do Magne Gas, uma tecnologia limpa e não poluente desenvolvida pelo controverso físico italiano, Ruggero Santilli.

Ora este é mesmo o campo dos lobbies ambientalistas e petrolíferos e das novas energias e sei lá que mais! Logo, muitas ideologias num ninho de víboras... or may be human nature and business as usual!

É que isso de falar em "pensamento crítico" e "rigor científico" e por aí é sempre muito fácil em teoria, mas na prática, como é?! Quem é que está de facto disposto a arrostar com as tremendas consequências que o pensamento inovador e não convencional pode trazer no seio das ideologias, por natureza sempre conservadoras e que tendem a perpetuar o que é velho opondo-se à novidade e à mudança?!

Still... the times they are a-changing!

Vitor Guerreiro disse...

Na prática: é pensar criticamente.

O facto de os interesses corporativos arregimentarem a ciência não é muito diferente do que acontece na arte ou em qualquer outra actividade humana.

Contudo, o facto de haver uma indústria da música que promove sistematicamente a mediocridade para fazer milhões não significa que o conceito de "música" perde consistência ou que não seja possível distinguir entre um trabalho original, criativo, bom, musicalmente sólido, e uma chanfanada pimba. Claro que se nos colocarmos na posiçao do analfabeto musical crédulo que quer saber apenas a quem vai tratar acriticamente como o ídolo e Detentor da Ultima Palavra Acerca Do Assunto, ou mais aqui à lusitano: onde é que está o D. Sebastião salvador da pátria, claro, dizia eu, que se nos colocarmos nessa posição, tudo parece confronto ruidoso de ideologias que ladram umas para as outras e às tantas lá vem o merdoso refrão: "nunca mais vem um salazar para calar estes cães todos e ao menos impor um único caminho claro!"

Pois, só que o facto de haver interesses comerciais na música, discográficas e tudo isso nao significa que a música seja uma coisa puramente ideológica e puramente diletante. Aquilo que dá consistência a esses negócios é por um lado a estupidez inexorável das massas que consomem merda como se fosse ouro, muito orgulhosas de si e xenófobas de tudo o que tenha mais 1mm de cérebro empenhado na produção. Tal como a pseudociência ou a ciência enviesada a interesses corporativos se alimenta e explora da credulidade das massas que só querem saber afinal "quem é que manda? É aquele ou é o outro?"
Enquanto as pessoas não pararem de se atormentar com perguntas idiotas, é óbvio que a idiotice não desaparece da equação do dinheiro e do poder.

Agora, não se pode confundir é o estudo da arte e da história da arte e da técnica da arte com o facto de haver empresários da arte e as coisas por vezes não seguirem sempre a via mais virtuosa possível. Isso é assim com tudo, simplesmente. Até o nada tem os seus empresários. Perguntem ao Heidegger.

Vitor Guerreiro disse...

De uma forma mais clara:

Não é o facto de x poder servir um propósito ideológico que faz com que x tenha uma natureza ideológica, visto que TUDO pode ser arregimentado a fins ideológicos. Tudo, menos o pensamento crítico em si mesmo.
Nos desenhos animados da Warner Brothers, até os pianos podem ser usados como armas. E depois? Será que isso faz que a música seja uma arte marcial?


As pessoas tendem a só pensar em termos de conteúdos. Como se aquilo que fizesse de um conteúdo ciência fosse o teor do próprio conteúdo. Assim, é "fílosófico" falar no "sentido" disto e no "sentido" daquilo, e é "científico" falar na "composição" disto e na "composição" daquilo. Mas isto é uma caricatura das coisas.

O que é ou não ideológico é o modo de formação e o modo de transmissão dos conteúdos, e não os conteúdos em si próprios. A proposição "deus existe" pode fazer parte de uma argumentação crítica em filosofia da religião ou de um discurso propagandístico de alguma seita. Pode-se defender que deus existe com argumentos ou com frases idiotas disparadas ao acaso e ao sabor da agressividade tola. Em tudo isto, não é o conteúdo que determina a natureza do processo.

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