Nas últimas semanas tenho estado ocupada com a organização das Olimpíadas da Química, cuja semi-final regional aconteceu dia 5 de Abril no Técnico e de que ontem se realizaram as semi-finais da versão Júnior, destinada a alunos dos 8º e 9º anos.
Quando me passaram esta tarefa pensei que as Olimpíadas+, destinadas a alunos dos 10º e 11º anos, dariam francamente mais trabalho até porque na prova que organizei participaram equipas do Algarve, das regiões autónomas, etc., o que levantava algumas questões logisticas que não se colocavam nas Júnior, em que a etapa que me competia organizar se destinava apenas a escolas da região de Lisboa.
Engano meu, rapidamente esclarecido: as primeiras consistem essencialmente numa prova escrita igual para todos; na versão Júnior, realizada em mais escolas, cabe aos organizadores locais pensar e concretizar a prova, normalmente de cariz mais prático. Desenhar uma avaliação em Química para alunos do ensino básico foi uma dor de cabeça que fez empalidecer todos os pormenores organizativos. Foi igualmente muito didáctico, tão didáctico que apenas um post não é suficiente para abordar tudo o que a experiência propiciou.
Devo confessar que nunca antes tinha olhado detalhadamente para os programas de Química do 3º ciclo do Ensino Básico emanados do ministério. A primeira leitura atenta serviu de inspiração de fundo para os posts sobre o renascimento do anti-intelectualismo. Fiquei tão perplexa com o que li que resolvi incluir no programa das Olimpíadas Júnior um debate com os professores das escolas participantes que versasse sobre o ensino da Química no ensino básico também para tentar perceber como é que eles conseguiam a proeza de simultaneamente ensinar alguma química e seguir as orientações ministeriais (objectivos que me pareceram nessa primeira leitura mutuamente exclusivos).
Considerei que a minha primeira reacção à verbosidade ministerial, da qual não consegui extrair qualquer informação útil para a elaboração de uma prova que testasse os conhecimentos em química dos participantes, talvez fosse injusta e colorida pela minha manifesta falta de prática nestas coisas das Ciências da Educação (ou antes, eduquês) e por nunca me ter apercebido que havia necessidade de «mudanças nas concepções» do ensino da Química.
Deixei para uma reflexão futura as considerações das responsáveis da Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular que elaboraram as referidas orientações curriculares, já que a minha falta de paciência (e tempo) para conversas redondas poderia impedir uma análise neutra dos conteúdos. Arranjei mais uns manuais escolares e escrevi as «Guerras da propaganda» para me purificar do turbilhão de pensamentos perturbadores que me assolavam.
Mergulhei nos livros de Química dos 8º e 9º anos emprestados por conhecidos (e usados pelos filhos) e só voltei à página do ministério para olhar as directivas sobre avaliação na fase em que já tinha pensado as provas. Foi a gota de água que fez transbordar o copo, já muito cheio com o que encontrei em alguns dos manuais. Fiquei simplesmente horrorizada com a prosa debitada no item avaliação e no outro ponto associado, o das competências.
O ponto de avaliação inicia-se dizendo, por outras palavras, que é uma maçada a sociedade não perceber que não deve haver avaliação de conhecimentos porque esta pressupõe «juízos de valor» (?) - ponto onde fiquei inicialmente na dúvida sobre se estaria numa página referente a avaliação de conhecimentos em ciências exactas, não percebi muito bem onde entravam juízos de valor nesta história. Depois percebi que não se preconizava avaliação de conhecimentos mas sim avaliação de competências, competências cujo mérito me parece muito duvidoso:
«A avaliação de conhecimento holístico das ideias científicas e a compreensão crítica da Ciência e do pensamento científico constitui a ênfase do processo avaliativo das aprendizagens. Deve ser dada atenção à avaliação de competências como preparação para a vida adulta, quer para o desempenho de uma actividade profissional, quer para aprendizagem ao longo da vida.»
Nessa altura escrevi o post «Humboldt e a educação para a cidadania», despoletado principalmente pela parte da avaliação de competências como preparação «para o desempenho de uma actividade profissional». Mas todo o parágrafo me arrepiou...
Não faço a mínima ideia o que possa ser «conhecimento holístico» de ideias que não constam do programa (mas recordei a personagem Dirk Gently criada por Douglas Adams) mas, mesmo que constassem, tenho sérias dúvidas que um aluno do básico seja capaz de tal proeza. De igual forma, não é seu propósito (do programa) proporcionar uma compreensão crítica da Ciência (com maiúscula ou com minúscula, como é explicado mais à frente) e tenho a certeza que nenhum aluno terminaria o ensino básico com a mais pálida ideia sobre o que seja o pensamento científico se as orientações curriculares fossem seguidas na íntegra (felizmente há muitos professores com bom senso que as ignoram, diria mesmo que são a maioria...).
Sobre as ditas orientações curriculares há muito a dizer mas, conteúdos discutíveis à parte, discordo em absoluto que se deva «Reduzir a ênfase tradicional da avaliação de componentes específicas e compartimentadas do conhecimento dos alunos» a menos que o objectivo seja formar analfabetos químicos. Pior, analfabetos químicos convencidos de que sabem algo de química já que supostamente tiveram «aproveitamento escolar» na disciplina.
Por outro lado, «Aumentar a ênfase da avaliação das competências dos alunos, desenvolvidas em experiências educativas diferenciadas» parece-me ser um convite à transformação total da química numa disciplina lúdico-confessional (o próximo post esclarecerá o que quero dizer com confessional), que se limita a avaliar a competência dos alunos na arte de bem sublinhar todo o livro, a experiência diferenciada de completar frases e de encher as páginas dos livros com setinhas em várias e importantes direcções.
Avaliação esta sim sujeita a juízos de valor: um dos livros que me emprestaram exibia nas questões postas (que suponho fazerem parte da diferenciação) uns sublinhados em cores mais do meu agrado, uma letra mais agradável e um traço mais firme nas setas. Não havia nada objectivo a avaliar... pelo menos para mim que não privilegio uma lógica e uma orientação axiológica no sentido do abandono de um ensino disciplinar por uma abordagem CTSA (bem explicado neste documento em formato pdf). Acrónimo CTSA que para mim nesta altura significa apenas Construção Total de uma Sociedade de Analfabetos!
Imagem: Hyeronimus Bosch, «The Ship of Fools», 1500.
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10 comentários:
Gostei do que li, particularmente porque considero que esta química leccionada no ensino básico não serve para ninguém e muito menos para os alunos aprenderem o que quer que seja. Os alunos saem do ensino básico analfabetos na disciplina mas convencidos que são muito bons porque até têm boas notas. Quando chegam ao 11º ano é quer são elas.
Quando interessam os números do sucesso, não se olham a meios para atingir os fins.
Uma mãe revoltada...
Estou horrorizado! Zero estrelas!
Horrorizado com o que foi escrito ou pela forma que foi escrito?
Sobre o que está a acontecer no "As Vicentinas de Braganza", agradecia que nos visitassem, e se pronunciassem, caso vos interesse o nosso novo dilema/problema
http://asvicentinasdebraganza.blogspot.com/2008/04/nota-constitucional.html#links
Mais uma vez, os cientistas "duros" que batalham arduamente contra o tal "eduquês", que ficam saudosos do tempo em que o ensino era só trabalho e esforço, que não compreendem (nem resolvem) os desafios da universalização do ensino em Portugal, em oposição a um período em que só as elites andavam na escola, que se recusam a tentar compreender o que se quer dizer com competências, e que se esquecem que a aplicação dessas competências só pode ser feita recorrendo aos conteúdos, que ignoram o problema da carga horária excessiva, e que continuam a caminhar, estóicamente, no sentido oposto ao resto da Europa no que diz respeito aos paradigmas actuais no ensino público...
Caro/a Mbek, eu vivo no "resto da Europa" e garanto que os tais "oaradigmas" do "resto da Europa" são muito diferentes destes do eduquês. São feitos para permitir precisamente a elitização do ensino. O modelo que tem dado mais sucesso é o da criação de ensinos paralelos ao longo do secundário, com escolas especificamente preparadas para criar alunos para as universidades, outras para os politécnicos, outras para ensinos profissionais, etc, tudo isto, como é óbvio, com possibilidade de movimento entre as escolas, com os bons alunos a poderem passar para as escolas mais orientadas para as universidades desde que sejam avaliados ocmo tendo condições para tal.
Por outro lado, uma vez no mercado de trabalho, as competências que interessam aos empregadores é uam sólida formação teórica, em que as competências adicionais são adquiridas ao longo do tempo, com as empresas a investirem nelas. Claro que uma empresa gostará de contratar um engenheiro que possa ser produtivo desde o primeiro dia, mas não terá qualquer problema em contratar um que possa antes aprender desde o primeiro dia. São essas as competências que o "resto da Europa" vai procurando...
Amigo JSA,
Não vejo onde é que o eduquês contesta a criação de ensinos paralelos (mas isso já percebi que tem a ver com a própria definição de eduquês, convenientemente vaga para que caibam lá todos os preconceitos) - e se reparar bem, nesse tal "resto da europa" onde vive, a inexistência de ensino técnico profissional e a degenerescência das instituições politécnicas é tipica dos países menos desenvolvidos, portanto o problema não é tão simples assim), nem o que é que isso tem a ver com a elitização do ensino - algo que, já agora, em sociedades democráticas tende a ser considerado algo negativo, sendo também um conceito muito diferente do de especialização ou do de diversificação da formação -, nem me lembro de ouvir os líderes da AIP ou outras entidades que tais a dizer que o que querem é "uma sólida formação teórica, em que as competências adicionais são adquiridas ao longo do tempo" - MUITO pelo contrário. Portanto, nesse aspecto, o problema está na qualidade dos empresários, e não na do sistema educativo...
Referi a elitização do ensino para lhe opor o "paradigma" anterior em que referiu (e bem) que apenas as elites andavam no ensino. O "paradigma" era bom, na minha opinião, apenas a acessibilidade do ensino era errada.
Sinceramente, um ensino que pede a criação de "competências" holísticas contesta os ensinos paralelos. Estes preparam os alunos de acordo com as suas capacidades, não de forma genérica. Nesse aspecto, o interesse é criar especialistas. Os ensinos superiores criam especialistas em engenharias, ciências exactas, história, línguas, sociologia, etc. Os intermédios criam especialistas na parte prática dessas ciências. Os mais "baixos" criam a mão de obra especializada. A lógica é que seja o todo que esteja genérico, não cada indivíduo, o que é, peloq ue entendo, o contrário do que o ensino holístico propõe.
Quanto aos empresários, tem toda a razão. Eles querem é escravos que façam o que lhes dizem. A lógica de ensinar algo a um empregado não passa pela cabeça da maioria deles e apenas o fazem porque a lei os obriga a isso. Nesse aspecto, de acordo: a AIP e os empresários estão completamente errados.
Cara Palmira
Acabei de descobrir este blog e estou adorando ler seus textos. Sou formada em Química e tenho um blog voltado para professores e futuros professores e gostaria que conhecesse. Link: http://ensquimica.blogspot.com/
Sempre voltarei aqui para ler o que escreves, pode ter certeza.
Um abraço.
Alcione
Gostaria também de convidá-la - e a todos os outros participantes deste blog - a participar da comunidade Blogs de Ciência no Orkut.
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=51659033
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