sexta-feira, 19 de julho de 2019

Um beco com saída


Início do texto inédito do jornalista do PÚBLICO Nuno Pacheco, que fecha o seu livro  Acordo ortográfico. Um beco com saída, que acaba de sair na Gradiva (também eu sou contra o Novo Acordo Ortográfico, para o qual nunca encontrei explicação suficiente):

O Acordo Ortográfico de 1990 nasceu de um perigoso casamento: o do medo com a mentira. O medo, antigo, é de que no Brasil se ouça finalmente o há muito brandido grito do Ipiranga linguístico e a língua portuguesa, ali, passe a denominar‑se «brasileiro». A mentira, muitas vezes repetida, é a de que o português seria a única língua com duas ortografias oficiais. O acordo, sob a capa da unificação ortográfica (uma «causa» de décadas), viria assim travar a desagregação do universo da língua portuguesa e criar, enfim, uma ortografia unificada.

 Sobre estes dois temas, já muitos textos foram escritos, esgrimindo argumentos com bases científicas ou simplesmente brandindo opiniões fundadas apenas em crenças. Não valerá a pena remexer nelas, a não ser para sublinhar o óbvio: a causa do «brasileiro» será tanto mais forte quanto mais se insistir na miragem da «unificação»; e a ortografia, por mais que se afiance o contrário, tende a ser plural nos idiomas mais difundidos no Universo (veja‑se o inglês, o francês, o espanhol ou o árabe com, respectivamente, 18, 15, 21 e 16 variantes ortográficas reconhecidas) e não unificado. Por uma razão bem simples: a cada desenvolvimento de uma língua e respectiva escrita, corresponde uma matriz cultural de séculos, que a vai moldando, alterando, reconfigurando. Não só na criação de novos vocábulos como na morfologia de várias palavras, nos seus significados e nas estruturas frásicas, ou seja, na sintaxe. A cada ano que passa, a ideia de uma uniformização afasta‑se naturalmente, para se aproximar do reino das quimeras. Os seus arautos, ainda que não o saibam (ou não queiram saber), são já parte de um pequeno exército retrógrado, a lutar contra a inexorabilidade deste destino.

Porém, mesmo assim, surgiu no universo da língua portuguesa (e foi aprovado, por força de duvidosas convicções políticas) algo de que nenhuma outra língua nacional precisou para sobreviver, singrar ou até expandir‑se no globo: um acordo ortográfico. É uma originalidade estranha, que só vingou devido ao perigoso casamento a que se aludiu no início do texto. Medo e mentira, juntos, ao longo da História, têm sido adubo para inúmeras carnificinas e monstruosidades, das quais só se acorda quando o mal está feito. Não é exactamente o caso deste «acordo», que não provocou a morte de ninguém, embora os seus malefícios tenham, na escrita, no entendimento dela e até mesmo na fonética, graves efeitos a médio prazo. O máximo a que nos conduziu, e que persiste, foi a um clima de animosidades, desconfianças, a erros feitos norma, a um caos ortográfico desnecessário e a um empreendimento desastroso do qual não é visível qualquer benefício, dos tantos propalados no início eufórico desta triste aventura. Encontramo‑nos, pois, no fundo do abismo. Sorte nossa, ainda nos restam cordas para tentar a escalada, íngreme, fincar de novo os pés na terra e evitar futuras quedas. 

Se pudéssemos retroceder uns séculos (e isso é possível com uma paciente consulta de livros em bibliotecas nacionais, aqui como no Brasil), veríamos que a ortografia, embora fosse já motivo de discussão desde o século xvii (primeiro com Bento Pereira ou João Franco Barreto e posteriormente, já no século xviii, com Luís António Verney ou Moreira Feijó), não era uniforme em Portugal ou no Brasil. Escritores houve que tinham várias ortografias, usando‑as consoante os seus escritos fossem cartas, livros ou outros documentos. A ideia de uma simplificação, vinda já de Verney (no seu Verdadeiro Método de Estudar, 1.ª edição impressa em Nápoles, 1746), havia de encontrar eco mais tarde, no início do século xx.

 Foi a Academia Brasileira de Letras que deu o primeiro passo, em 1907. E nomeou, em Maio desse ano, uma comissão para levar a cabo uma reforma ortográfica. Como escreveu mais tarde o académico Evanildo Bechara, num prefácio ao livro de actas da ABL, «a Academia conseguiu, àquela primeira fase, discutir a sistematização ortográfica, divididas as hostes entre os fonetistas, com Medeiros de Albuquerque à frente, e os etimologistas, chefiados por Salvador Um beco com saída 189 Mendonça». Após várias sessões, a proposta foi aprovada em 17 de Agosto de 1907, ainda com Machado de Assis presidente da ABL, cargo que ocupou de 1896 a 1908. Não contavam os Brasileiros que, em Portugal, o advento do republicanismo levasse ao derrube da monarquia em 5 de Outubro de 1910 e que, em consequência de tal revolução política, os Portugueses resolvessem avançar com a sua própria reforma ortográfica, destinada a, diziam, «favorecer o ensino fácil da leitura e da escrita, tanto quanto um idioma secularmente literário o permite» (Nova Ortografia Portuguesa, Oficialmente Adoptada, Porto, 1911). Foi uma reforma unicamente portuguesa, alheia ao Brasil; que aliás, como se viu, avançara anos antes com a sua, sem nenhuma preocupação com «unificações». O que não impediu os Brasileiros de apontarem um dedo acusador a Portugal: «Apesar de tudo [da escrita consuetudinária e das variações ortográficas consoante autores, escolas, épocas e lugares] não existia o problema, se prevalecia o critério etimológico. Em 1911 dele se apartou Portugal, com o sistema simplificado que Gonçalves Viana preconizara.» Isto pode ser lido na edição do livrinho Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal, publicado no Brasil, em 1947, pelo Jornal do Commercio, e que incluía o texto do Acordo Ortográfico de 1945. O texto, que omite o passo dado pela ABL em 1907 no sentido de uma reforma unilateral do Brasil, conclui: «Em 1931 verificaram as Academias brasileira e portuguesa que, devido àquela atitude isolada, realmente se cindira o idioma em duas escritas, a fonética e a etimológica.» É aqui, neste pequeno e singelo momento, que se esboça a mentira.

 Desde então, a busca de «um tratado que de novo a unificasse» (a escrita, bem entendido) não mais parou. Reuniões, conclaves, consultas, esboços de acordos, acordos assinados e depois rasgados, modificações parcelares, tudo em busca do almejado graal. Não houve, ao longo de todo esse tempo, entre os negociadores, alguém que parasse por um momento a avaliar o enorme absurdo de tal empreitada. O objectivo era tudo: unificar, mesmo que isso já não existisse antes. Ninguém pensou, por um só segundo, na insanidade que seria voltar atrás noutras coisas (países, bandeiras, hábitos, culturas), mas a escrita sim, devia voltar «ao que era».  E o que era, antes? O que se sabe: herança de séculos, um belo idioma que se foi desenvolvendo e tomando novos sons e formas consoante as geografias. Não seria isso unidade bastante? Como a de pais e filhos, que não têm de ser iguais nas opções de vida ou nos gostos para partilharem o mesmo sangue? Não. E insistiu‑se no acordo «unificador».

(...)

Nuno Pacheco

1 comentário:

Paulo Almeida disse...

Obrigado a Nuno Pacheco pela sua insistência em "não pensar sem agir" contrastando com o "agir sem pensar" de Cavacos, Sócrates, Santanas Lopes e quejandos, para além da pesporrência de Antónios Reis, e Malacas, que confrontados com o seu erro nunca se dispõem a corrigi-lo, moucos à Razão e às razões de muitos Vítores Aguiar e Silva, Vascos Graça Moura, Eduardos Lourenço, Hélias Correia, Ivos Castro e tantos outros que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa não podem deixar de se envergonhar de ouvir e reouvir, como o faz a maioria dos Portugueses, agora pela voz de Nuno Pacheco clamando que o rei vai nu!!!!!!!

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