segunda-feira, 14 de maio de 2018

RAUL MIGUEL ROSADO FERNANDES (1934-2018)


Fomos colegas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nos 15 anos em que também ali lecionei (em Geografia) e, não obstante, as nossas antagónicas e conhecidas posições no espectro político, demo-nos bem e, até, fomos amigos. Depois de jubilado e retirado na sua terra alentejana, mantivemos, por algum tempo, frutuoso contacto por E-mail.

Licenciado em Filologia Clássica, professor catedrático da dita Faculdade e reitor da mesma Universidade, entre 1979 e 1983, um “rústico erudito”, como ele próprio se definiu, soube caldear o elitismo do meio académico com a rusticidade e a frontalidade das gentes que trabalharam para este erudito e importante terratenente alentejano. Sim, porque Rosado Fernandes foi senhor de muitas terras, na região de Reguengos de Monsaraz, tendo sido nesta qualidade que fundou a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP).

Professor brilhante de Línguas e Literatura Clássicas, grega e latina, agradável no trato, arguto e com notado sentido de humor, por vezes, marcado por inteligente ironia. Enquanto exerci funções de diretor no Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa, trabalhei com ele na qualidade de meu reitor, tendo visto nele também o homem atento, desembaraçado, avesso às burocracias e eficaz.

Rosado Fernandes serviu a República como deputado pelo CDS no Parlamento Nacional e no Europeu e foi nesta última qualidade que recordo um episódio que o define como homem honrado que foi.

O ESTRAFEGO DO EURODEPUTADO

Devo confessar que exultei no dia em que o telejonal noticiou o insólito episódio ocorrido em Estrasburgo, numa sessão nocturna do Parlamento Europeu, entre 1995 e 1999, na qual o nosso eurodeputado Raul Miguel Rosado Fernandes “estrafegou o porcino gasganete” do colega dinamarquês, Freddy Blak, na sequência da grave ofensa à sua honradez feita por aquele eurodeputado socialista. Nesse prolongamento dos trabalhos, o nosso ilustre ex-Professor Catedrático de Línguas e Literatura Clássicas, da Faculdade de Letras de Lisboa, acabara de fazer uma intervenção na qual, sem deixar de reconhecer os malefícios do tabaco, defendia a liberdade dos fumadores satisfazerem essa sua opção, desde que não incomodassem os não fumadores. A contrapor esta posição, o dinamarquês, para seu azar, tratou-o de “sem vergonha” e acusou-o de receber dinheiro das empresas tabaqueiras.

Como resposta pronta, em defesa da sua “reaccionária” honra e, segundo o próprio, “de maneira pouco ortodoxa”, o nosso auto-designado “rústico erudito” levantou-se calmamente do seu lugar, aproximou-se do colega, agarrou-o pela faceira e, atirando-o para fora do lugar, forçou-o a assentar o amplo traseiro no degrau da sua (dele) bancada.

Praticamente só me relacionei de perto com o Prof. Rosado Fernandes no período em que assumiu, e bem, as responsabilidades de Reitor da Universidade de Lisboa, nos anos, para nós muito difíceis, que se seguiram ao incêndio da Faculdade de Ciências, entre 1979 e 1983. Não obstante a pouquíssima ou nenhuma intimidade existente entre nós e as acentuadas diferenças nos rótulos ideológicos com que a comunidade nos marcou, encontro neste colega de Letras grandes afinidades com o meu modo de estar na sociedade. Isto, deixando de fora, como é evidente, a erudição que lhe vem de uma sólida formação humanística e a sua condição de cidadão abastado em termos de bens materiais.

Para um desconhecido, como então eu era, o Prof. Rosado Fernandes foi um dos “Magníficos Reitores” com quem mais fácil e simpaticamente me relacionei. Estou em crer que o facto de ser um homem culto e erudito, marcado, como ele próprio afirma, por uma certa rusticidade, rico e, ainda por cima, bem parecido e grande no tamanho, deram-lhe aquelas auto-segurança, simplicidade, cordialidade e jovialidade que todos lhe reconhecem.

Avesso a burocracias desnecessárias, tantas vezes estúpidas, agilizou soluções, resolveu casos difíceis, encontrou consensos. Um certo fim de tarde, numa reunião no seu amplo gabinete, com representantes do Sindicato da Função Pública, na resolução de um problema muito intrincado, envolvendo quadros de pessoal e carreiras, dirigiu-se à porta, fechou-a à chave e meteu-a no bolso, dizendo «só sairemos daqui quando este assunto estiver resolvido». E assim foi. E o resultado não podia ter sido melhor.

Em minha opinião, que me assumo como cidadão caldeado por uma certa ruralidade (o que não é muito diferente de rusticidade), acho que a dose de rusticidade de que este meu colega se diz portador, só lhe fica bem no meio académico que partilhou, onde a insegurança e, não raras vezes, a mediocridade se disfarçam com prosápias e elitismos.

Não sendo indiferente aos apelos que evocam a resolução pacífica dos diferendos que a vida nos vai colocando pelo caminho, devo confessar que aquela reacção espontânea do nosso muito estimado alentejano agradou de sobremaneira às reminiscências neandertalenses que, certamente, ainda transporto comigo.

(Do meu livro “FORA DE PORTAS, Memórias e Reflexões”. Âncora Editora, 2008)

A. Galopim de Carvalho

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