sexta-feira, 5 de maio de 2023

"TERMÓMETRO DA FELICIDADE". EIS UMA APLICAÇÃO DA REVOLUCIONÁRIA IA

A "privacidade", como valor, encontra-se consagrada em múltiplos documentos supranacionais, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e nacionais, com destaque para a Constituição da República Portuguesa. Como valor ético, não nasce connosco, depende da educação. A escola tem especial responsabilidade na delimitação do que se convencionou designar por esferas privada (e íntima) e pública. Além da explicitação, o exemplo é fundamental. 

Este articulado cai por terra quando se convocam as já antigas perspectivas contextualistas: alegando a necessidade de adequar a aprendizagem a cada aluno e/ou grupo para a tornar mais "significativa", defendem o apelo a vivências (privadas e íntimas) dos alunos. E, sobretudo, quando a elas se acrescentam desvarios "modernos" como eleger a "felicidade" (individual, hedonista) para fim último da escolaridade. 

Os "projectos pedagógicos inovadores" daí resultantes, que darão uma imagem "pioneira" das escolas, chegam no imediato à comunicação social. Há poucos dias foi noticiado um particularmente eloquente; a sua designação é "Escola Feliz". Segundo a directora da escola básica em que surgiu, “assenta no auto-conhecimento, em processos de empatia, resiliência e auto-regulação” dos alunos (ver aqui):
"(...) incentiva-se os alunos a falar sobre as suas emoções e a querer saber como é que o outro se sente. Através de inteligência artificial medem-se os picos de emoção e os professores têm essa informação em conta ao escolherem a forma de leccionar a matéria. Todos os dias cada aluno (...) passa pelo termómetro da felicidade ao entrar na sala de aula. Num processo de autorregulação avalia os seus pensamentos, sentimentos e comportamentos, e define as emoções que está a sentir. Lá fora, no pátio, a cada segunda-feira, uma turma faz o lançamento do cubo para descobrir que actividade vai trabalhar ao longo dessa semana como, por exemplo, perguntar aos colegas como se sentem (...) 
Este projecto, que coloca a felicidade no centro da aprendizagem dos 240 alunos desta escola, foi implementado no início do presente ano lectivo em parceria com a Câmara de Alcanena e, além de contar com a colaboração de todos os professores e encarregados de educação, envolve inteligência artificial, que monitoriza, através de sensores, as emoções dos alunos. Desta forma os professores conseguem perceber em que alturas do dia, por norma, os alunos estão mais ou menos agitados para poderem ajustar a forma de leccionar a matéria".
Convidado para a dita apresentação, o Ministro da Educação sorri francamente nas fotografias. Poderemos daí inferir que concorda com a solicitação (abusiva) que a escola faz aos alunos para que tragam a público as suas emoções e sentimentos (privados e íntimos)? Mais: que sejam monitorizadas emoções e sentimentos (insisto, privados e íntimos) com um apetrecho de "inteligência artificial"? 

Quando o mais alto representante do sistema escolar público não parece preocupado com uma questão ética de relevo, num contexto (escolar) em que a educação para os valores deveria prevalecer, temos sérias razões para nos preocuparmos... até porque, a avaliar pela notícia, não parece existir na comunidade escolar sombra de inquietação.

11 comentários:

Rui Ferreira disse...

Já comentei noutro espaço desta forma, "os filhos da ignorância são capazes de produzir formas mais sedutoras de ignorância" (Gregório Vaz). Outros escreveram assim: Nas escolas, hoje, existe uma tendência para sofisticar exaustivamente a administração de inutilidades.

Anónimo disse...

“Todos os professores e encarregados de educação” aquiescem nesta perversidade do Projeto “Escola Feliz”, porque ninguém gosta de ser visto como um bota-de-elástico pelos seus pares, ou pelo seu chefe. Este texto de apresentação da Escola Feliz ressuma filosofia ubuntu: eu sou, porque tu és! Ninguém se atreve a contestar uma pedagogia baseada na filosofia ubuntu, seja lá o que isso for!
Sendo o sucesso escolar fácil, potenciador de mais felicidade a cada ano que passa, um direito adquirido, onde está o mal de pessoas e máquinas violarem a nossa intimidade!?
Para os sindicatos, principalmente aqueles que defendem o comunismo, a grande questão da educação é a recuperação de 6 anos, 6 meses e 6 dias de tempo de serviço dos professores.
Para mim, resolviam-se os principais problemas da educação se o ministério devolvesse a autonomia científica e pedagógica aos professores, acabasse com a carreira única dos professores dos ensinos básico e secundário e dos educadores de infância, promovesse um ensino exigente, fomentasse a disciplina e reprimisse a violência em contexto escolar e não “inovasse” com fantochadas antipedagógicas!

Anónimo disse...

E, de repente, todos têm algo a dizer sobre a inteligência artificial! (Todavia, até "inteligência" - "tout court" - é difícil de definir!)

Anónimo disse...

Inteligência é ser feliz. O tempo é escasso e a importância das coisas relativa. Correr atrás de quê e de quem? Sentemo-nos. Eu tenho um baloiço que me imprime um movimento para cá e para lá. Às vezes quase toco o céu para, logo a seguir, travar o chão. A vida é isso. Parece que estamos a ir para algum lado. Mas não.

Anónimo disse...

Os professores (os atuais e os alienados) deverão queixar-se, primeiramente, deles próprios; depois, dos "ministros" (mais do que dos ministérios); e só de seguida de outros fatores e circunstâncias.

Anónimo disse...

Vê-se que não é feliz.

Anónimo disse...

É só inteligente.

Anónimo disse...

Carlos Soares, concordo plenamente.
O que é uma taça?
Só na hora da morte nos aperceberemos de que fomos um sonho.
Eu acredito no nada. Mas devemos enchê-lo todos os dias. A existência precisa de atividade. Torna-se mais credível.

João Soares disse...

Esse discurso de pais frustrados dá nisto. Malhar nos professores.

João Soares disse...

Tem tudo a ver com a Ecologia e mais sabedoria e contacto com a Natureza. Uma escola mais feliz sem Natureza e experimentação, só à base de lápis, caneta e Powerpoints dá em nada. Zero. Quantos às taças, é como nas outras profissões: construam-se prémios e menos burocracia e trabalhos de excelente nível surgirão. Tal como estamos, sim, estamos de acordo. Uma escola acédia, neurótica e dessensibilizada.

Anónimo disse...

Como também não sou "classificador encartado", estou autorizado (por si) a classificá-lo como "pequeno atrevido e apressado". Porque não se cinge à mensagem e atira ao mensageiro? Assim vai Portugal!

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