[Um grupo que se dedica a promover a partilha de conhecimento sobre a dimensão histórica, artística e cultural do Romantismo em Portugal (no qual eu me incluo) tomou a seguinte posição pública (com a qual eu concordo) que em seguida se transcreve]
Carta aberta ao Presidente da Câmara Municipal do Porto, Dr. Rui Moreira;
O Grupo Saudade Perpétua (https://saudadeperpetua.weebly.com) foi fundado em 2011 para promover a partilha de conhecimento sobre tudo o que diga respeito à dimensão histórica, artística e cultural do Romantismo em Portugal. Composto maioritariamente por especialistas neste tema, o Grupo tem promovido encontros informais e científicos, além de publicações. Por conseguinte, não poderíamos ficar sem reacção perante o ocorrido no Museu Romântico, e que consideramos grave.
O Museu Romântico da Quinta da Macieirinha, no Porto, que nos habituámos a visitar, como espaço de recriação de ambientes oitocentistas, literalmente desapareceu como tal. Actualmente, apresenta um conjunto de obras contemporâneas, constituindo a designada "Extensão do Romantismo" coordenada pelo "director artístico" dos museus da cidade do Porto, Nuno Faria.
Surpreende este novo projecto, demolidor de um outro apresentado pela Câmara Municipal do Porto apenas três anos antes. No palacete da Quinta da Macieirinha, com uma magnífica vista sobre o Douro, antiga casa de campo da família Ferreira Pinto Basto (negociantes e industriais portuenses), reconstituíam-se espaços deste período e um episódio singular e dos mais marcantes na história da cidade, dado que foi morada de exílio do rei da Sardenha-Piemonte, Carlos Alberto de Sabóia-Carignano, em 1849, após a derrota na batalha de Novara contra o Império Austríaco.
Na verdade, quem hoje visita o palacete apercebe-se da destruição do projecto (re)apresentado em 2018, pois desapareceram as portadas de madeira interiores das janelas e a pintura de “fingido” das paredes das escadas, técnica normalmente utilizada no século XIX. Estas preciosas intervenções na “escaiola” – acabamento dado a paredes, revestidas de estuque que imitavam o mármore polido – deram lugar a uma pintura monocromática que tudo uniformizou, de modo aparentemente irreversível. Retiradas portadas e cortinados, ainda se mantêm as obras de Jean-Baptiste Pillement (1728-1808), pintor e decorador francês, com uma pintura de delicadas representações da natureza e que muito influenciaram os artistas portugueses do século XIX.
Em 1972 a Câmara Municipal do Porto decidiu aqui instalar o Museu Romântico, recriando os espaços de uma casa de Oitocentos, ligada ao gosto das burguesias nortenhas, quer através de peças e mobiliário original, quer através de algumas réplicas, em espaços que se baseavam nos desenhos, aguarelas e documentos da época referentes a estes espaços intimistas.
Em 2018, com verbas comunitárias, alterou-se o percurso do Museu, apresentaram-se textos sobre a história da casa e recuperaram-se muitas obras, como o processo técnico de escaiola, na escadaria, com intervenções de conservadores-restauradores. Ora, a presente “reconfiguração” altera a ideia inicial deste projecto. Sendo um Museu recuperado com dinheiros comunitários, com verbas de meio milhão de euros, questiona-se o radicalismo da actual intervenção, e até a aceitação ou possibilidade legal desta opção, longe da proposta de 2018 e que o Presidente da Câmara tanto valorizou na sua inauguração.
A partir de 2018, o Museu Romântico da Quinta da Macieirinha tornou-se o museu municipal mais visitado, justificando, assim, o esforço e as avultadas verbas comunitárias. Paradoxalmente, o "director artístico" pretende agora revelar o espaço como “produto cultural”, inscrevendo-o num conjunto de "produtos culturais" que se apresentarão intervencionados. Alude aos Museus municipais, como a Casa Marta Ortigão Sampaio, onde se exibirão obras de gosto romântico. Estas peças estavam expostas no Museu Romântico da Quinta da Macieirinha e foram recentemente deslocadas para as reservas daquele Museu. Acrescenta ainda o "director artístico" que as obras se poderão observar nas várias extensões do Museu da Cidade. Assim, dispersa-se um espólio e uma colecção, certamente registada e inventariada. Mais grave ainda é o facto de esta dispersão incluir peças doadas e/ou depositadas propositadamente para a constituição do Museu Romântico, que agora deixou de existir como tal.
O espaço deste Museu transformou-se em “espaço performativo”, por o "director artístico" estar convencido que “não era possível prolongar mais a visão que ali se perpetuava e teve o seu tempo de existência”. Assim, supõe-se que haverá um fundamento legal para esta alteração radical de um projecto tão recente, que teve a concordância do Presidente da Câmara do Porto. O director artístico argumenta com um “distanciamento social (…) uma inacessibilidade aos visitantes” devido à existência de baias, mas isso sucede em muitos museus nacionais e internacionais, com o objectivo de salvaguardar as peças.
Este novo projecto pretende que o espaço seja um “lugar de encontro, de discussão e de construção da comunidade”, considerando o herbário de Júlio Dinis peça fundamentalmente romântica e representativa da sua “matriz”. Porém, questionamos esta radicalização que, desde logo, elimina o diálogo – interessante e propício à reflexão – entre peças de épocas diferentes; questionamos a afirmação de espaço redutor da casa, sem ligação com o público, quando sabemos que o Museu Romântico da Quinta da Macieirinha tinha um elevado número de visitantes. Realizavam-se inúmeras actividades escolares. Estranha-se também que alguns técnicos tenham preferido pedir transferência para outros museus.
Na verdade, torna-se chocante e até revoltante que não se tenha estabelecido um diálogo temporal, entre ambientes românticos; uma sedução por espaços – que até poderiam ser regularmente remodelados, mas que também poderiam traduzir escolhas e gostos de uma época, em confronto com a espacialidade das obras contemporâneas; a visibilidade de referentes que poderiam combinar, ajustar-se ou confrontar com os romantismos… Lamentavelmente, optou-se por uma mera exposição de arte contemporânea, remetendo para um discurso contemporâneo sem debate nem diálogo com eixos oitocentistas, hoje quase desaparecidos devido a um ostensivo propósito em os eliminar. O palacete da Quinta da Macieirinha agora apenas pontualmente apresenta referentes românticos, como se de um exotismo se tratasse, sobrepondo-se-lhe um espectáculo contemporâneo somente com ligeiras reminiscências oitocentistas.
O Museu Romântico da Quinta da Macieirinha era um espaço museológico que fazia todo o sentido, no contexto da cidade e do país. A sua reformulação criou um vazio e empobreceu o Porto.
Por tudo isto, dentro do que seja ainda possível, apelamos à reversão do erro cometido, e à não dispersão do espólio, de modo a que o Porto volte a ter um verdadeiro Museu Romântico - visto tratar-se da época áurea da cidade, e aquela em que, provavelmente, o Porto mais se destacou nacional e internacionalmente.
3 de Setembro de 2021,
Pelo Grupo Saudade Perpétua:
• Alexandra de Carvalho Antunes; Investigadora
• Álvaro de Sousa Holstein; Escritor / Investigador independente
• Ana Anjos Mântua; Conservadora do MNSR, Coordenadora da Casa-Museu Fernando de Castro
• André Godinho Varela Remígio; Conservador-restaurador
• António Santos da Cunha; Antiquário / Decorador
• António Teixeira Lopes Cruz; Sócio gerente da Quinta "Villa Rachel" Lda. (vitivinicultura e turismo), Licenciado em Economia (UP)
• Arlete Monteiro; Investigadora independente
• Carlos Caetano; Investigador em História e História da Arte e da Cultura Portuguesas, CEPESE / CHAM
• Cláudia Emanuel; Investigadora doutorada em Estudos do Património
• Cláudia Thomé Witte; Investigadora independente, membro do Instituto Histórico de Petrópolis
• Cristina Moscatel; Historiadora, Investigadora do CHAM - Universidade dos Açores
• Cristina Neiva Correia; Técnica superior do Palácio Nacional da Ajuda
• Cristina Ramos Horta; Ex-Directora do Museu da Cerâmica das Caldas da Rainha
• Duarte Nuno Morgado; Sacerdote
• Fabíola Franco Pires; Arquitecta e investigadora do CITCEM
• Fernando Manuel Cerqueira Barros; Arquitecto; investigador na área do Património Arquitectónico
• Fernando Pinto Coelho; Arquitecto / Artista plástico
• Francisco Queiroz ; Historiador de arte (CEPESE / ARTIS-IHA, FLUL)
• Inês Thomas Almeida; Musicóloga
• Isabel Marília Viana Peres; Docente
• Ivo Rafael Silva; Investigador do Centro de Estudos Interculturais do ISCAP
• Jorge Ricardo Ferreira Pinto; Geógrafo, docente do ISCET, investigador do CEGOT
• José Daniel Soares Ferreira; Técnico de Museologia e Património
• José Eduardo Reis; Bancário / Fotógrafo
• José Huet; Profissional de seguros
• José Pedro de Galhano Tenreiro; Investigador em História da Arquitectura
• Lourenço Correia de Matos; Investigador, Académico correspondente da Academia Portuguesa da História
• Margarida Araújo; Investigadora independente / Fotógrafa
• Maria de Aires Silveira; Técnica superior, MNAC
• Maria Gabriela Oliveira; Historiadora / Investigadora
• Maria João Botelho Moniz Burnay; Conservadora / Palácio Nacional da Ajuda
• Mário Adrião Almeida de Morais Marques; Engenheiro Civil
• Mário Correia Moniz ; Arquitecto
• Mário Manuel Marques; Cantor lírico e de concerto
• Marta Páscoa; Arquivista
• Miguel Ayres de Campos-Tovar; Investigador doutorado em História da Arte (Courtauld Institute of Art)
• Nuno Miguel de Amorim; Designer de interiores
• Paulo Duarte de Almeida; Professor
• Paulo Ribeiro Baptista; Investigador
• Pedro Pascoal de Melo; Investigador
• Pedro Urbano; Investigador do IHC/UNL
• Rafaela Ferreira ; Investigadora independente, criadora de conteúdos digitais
• Ramiro Gonçalves; Técnico superior (DGPC/MNAA)
• Ricardo Charters d'Azevedo; Engenheiro electrotécnico
• Rita van Zeller; Gerente comercial / Jurista
• Ruth da Gama; Docente
• Sérgio Figueira; Historiador / Investigador do CITCEM, escritor
• Sílvia Ferreira ; Historiadora de arte
• Vítor Aguiar Branco Sampaio; Investigador do CITCEM (Grupo de Populações e Saúde)
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