quinta-feira, 30 de setembro de 2021

FERNANDO PESSOA E OS TRÊS SALAZARES

 


Minha recensão no jornal I de hoje:

Fernando Pessoa e António de Oliveira Salazar, duas das figuras mais destacadas do século XX português, nasceram com quase um ano de diferença: Pessoa em Lisboa, a 13 de Junho de 1888 (dia de Santo António) e Salazar em Santa Comba Dão, a 28 de Abril de 1889. Mas o seu tempo de vida foi muito diferente: Pessoa morreu na sua cidade natal em 30 de Novembro de 1935, segundo alguns de cirrose hepática e de acordo com outros de pancreatite aguda; Salazar morreu em Lisboa a 27 de Julho de 1970, dois anos depois de ter caído de uma cadeira no Estoril, sofrendo uma lesão cerebral.


Os dois nunca se encontraram. O Estado Novo, através do SNI - Secretariado Nacional da Propaganda, atribuiu em 1934 um prémio ao livro Mensagem, de Pessoa – o seu único livro publicado em vida. Foi o prémio de poesia na «segunda categoria», por lhe faltarem  quatro páginas para o mínimo da «primeira categoria». Salazar discursou na cerimónia de entrega dos prémios, mas Pessoa, talvez já doente, esteve ausente. Morreu nesse mesmo ano. As últimas palavras de Pessoa foram, em inglês, «I know not what tomorrow will bring». Pessoa não podia adivinhar, quando morreu, que o homem que ele viu ascender a ministro das Finanças em 1928 e a Presidente do Conselho de Ministros em 1932 duraria no poder até 1968: 40 longos anos. De facto, Salazar entrou na vida política em 1926, pouco depois do golpe militar de 28 de Maio, mas foi ministro das Finanças apenas por escassos dias. Só passados dois anos, a convite do general Óscar Carmona, voltaria a ser ministro das Finanças, desta vez com carta branca para reduzir o défice através de severa austeridade.


Não se sabe se Pessoa reparou na passagem fugaz de Salazar pela pasta das Finanças. Mas reparou, porque está documentado, quando o autoritário ministro foi empossado pela segunda vez e, ainda mais, quando ele subiu a Presidente do Conselho de Ministros. Apesar de apenas mediarem sete anos entre 1928, quando Pessoa escreveu pela primeira vez sobre Salazar, e a última, em 1935, quando escreveu pela última vez, o autor de Mensagem deixou numerosos textos sobre a figura que passou a dominar a política nacional.


Estes textos estão reunidos no livro Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa?, uma recolha publicada pela Guerra & Paz, comentada pelo próprio editor, Manuel S. Fonseca, que lhe antepôs a introdução «Uma pluralidade de Salazares» e lhe acrescentou a «Cronologia Breve de um Ditador Longo». O livro com fotografias dos dois personagens, que aparecem juntos na fotomontagem da capa, os dois de chapéu e sobretudo. Não é a primeira vez que saem textos de Pessoa sobre Salazar: tenho uma larga estante pessoana – mais de três metros de livros dele e sobre ele –  e lá encontrei dele Contra Salazar (Angelus Novus, 2008), da responsabilidade de António Apolinário Lourenço, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar (Tinta da China, 2015), da responsabilidade de José Barreto, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Manuel S. Fonseca faz a devida a referência ao livro de Barreto, que publicou alguns papéis inéditos sobre Salazar tirados da infindável arca pessoana. A nova edição tem o mérito de colocar ao alcance dos leitores de hoje os escritos de Pessoa sobre Salazar - a editora Angelus Novus já não existe e livro de Barreto está esgotado. A edição é de divulgação, pelo que não tem o aparato das referências pormenorizadas nem sequer a usual bibliografia no fim. Mas ficou um livro que se lê rapidamente, com os textos arrumados por ordem cronológica e os comentários bem separados graficamente dos textos pessoanos.


Li-o com gosto. Fernando Pessoa escreve muito bem: a sua prosa faz por vezes lembrar a do padre António Vieira, a quem ele chamava «o imperador da língua portuguesa». E a sua poesia satírica sobre Salazar tem muita graça.


Quantos Salazares houve segundo Pessoa? Três. O primeiro é encomiástico. Fernando Pessoa nutria simpatia pela Ditadura Militar, considerando-a uma inevitabilidade face à desordem da Primeira República. Lembro que ele foi simpatizante de Sidónio Pais, um outro professor de Coimbra, não de Direito mas de Matemática. Pessoa era, como confessa numa nota biográfica publicada no final do livro, monárquico, mas achava a monarquia inviável entre nós. Diz, referindo-se a si próprio: «Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia complemente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo.» Socialmente, declara-se «anticomunista e antissocialista». E, quanto à religião: «Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel (…) à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (…)».

Antipatiza não só com o comunismo, mas também com o fascismo (na altura esta expressão referia-se apenas ao regime de Mussolini). Sobre o fascismo, afirma Pessoa por volta de 1924: «Os fascistas matam seu pai mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro». Em 1925, escreveu, descortinando paralelismos entre fascismo e comunismo: «Seguimos o princípio contrário ao do tio Mussolini e ao do abade Lénine. Desoprimir! Tornar os outros diferentes do que nós queremos!».


Sobre a Ditadura Militar portuguesa diz que «surgiu na paisagem politica da nação de um modo inesperado, como um comboio onde não há linha». E, sobre Salazar, as primeiras palavras são por volta de 1929: «Só um místico, embora imperfeito, como Sidónio, ou um temperamento ascético, como Salazar, têm o isolamento natural para poder agitar sobre, porque contra, a turba.» Em 1930, depois de Salazar ter imposto o superavit nas contas, diz: «Salazar é hoje o homem de maior prestígio em Portugal, é o homem que manda sozinho, embora seja um civil, no governo militar português, e contudo (…) é um mero Ministro das Finanças.» E, passados dois anos: «No meio de um povo de incoerentes, de verbosos, de maledicentes, por impotência e espirituosos por falta de assunto intelectual, o lente de Coimbra (Santo Deus! De Coimbra!) marcou como se tivesse caído de uma Inglaterra astral.»


O segundo Salazar já era chefe do governo. Não nutre por ele grande consideração intelectual. Em 1932, escreve: «O Sr. Oliveira Salazar é, sem dúvida, mais alguma coisa do que financeiro. Infelizmente o que ele é mais é católico.» E, na mesma altura: «O Chefe de Governo não é um estadista: é um arrumador (…) É sempre e em tudo um contabilista, mas só um contabilista. Quando vê que o país sofre, troca as rubricas e abre novas contas. Quando sente que o país se queixa, faz um estorno. (…) Assistimos à cesarização de um contabilista.» Ainda nessa época: «Um cadáver emotivo, artificialmente galvanizado por uma propaganda. Duas qualidades lhe faltam – a imaginação e o entusiasmo. Para ele o país não é a gente que nele vive, mas a estatística dessa gente. Soma, mas não segue.» E, noutro texto, ironiza: «Mais valia publicar um decreto-lei que rezasse assim: Art.º 1 -  A. de O. Salazar é Deus.»


Por último, aconteceu-lhe incompatibilizar-se com o regime. Primeiro foi a proibição da Maçonaria em 1935 por decreto-lei, tendo Pessoa publicado no Diário de Lisboa o texto «As Associações Secretas», reproduzido no livro, e depois foi o discurso de Salazar na entrega dos prémios do SNI, em que ele instava os escritores a apoiarem o regime. Pessoa não era maçon, mas achava absurdo proibir a maçonaria. O aparelho do Estado Novo caiu-lhe em cima. Pessoa escreveu: «Pela primeira vez na minha vida fabriquei uma bomba. Cerquei a sua dinamite de verdade com um invólucro de raciocínio; pus-lhe um rastilho de humorismo. Feita, atirei-a aos opositores da Maçonaria. E o efeito foi não só retumbante mas milagroso. Perderam a cabeça sem a ter.»


Escreveu a Casais Monteiro: «Ficámos sabendo, todos os que escrevemos, que estava substituída a regra proibitiva da Censura, “não se pode dizer isto ou aquilo”, pela regra soviética do Poder, “tem que se dizer aquilo e isto.”» Pessoa passou-se e chama a Salazar «seminarista da contabilidade.»


Alguns versos dão conta do desdém que passou a votar ao ditador. Escreveu estes versos violentos: «Olhem, vão p’ra o Salazar/ Que é a puta que os pariu.» E estoutros: «Este senhor Salazar/ É feito de sal e azar/ Se um dia chove,/ A água dissolve/ O sal,/ E sob o céu/ Fica o azar, é natural./ Oh, c’os diabos!/ Parece que já choveu… - Coitadinho/ do tiraninho! Não bebe vinho,/ Nem sequer sozinho…» Infelizmente a morte impediu a continuação da sua verve.


Manuel Fonseca, nascido em Angola em 1951, é formado em Filosofia e tem larga experiência na área do audiovisual: trabalhou na Cinemateca, na RTP, na SIC e na Valentim de Carvalho. Fundou a editora Guerra & Paz, que já publicou outros livros com recolhas de Fernando Pessoa. Destaco as antologias, todas de 2018: Conselhos às Malcasadas; Absinto, Ópio, Tabaco e outros Fumos; e Tenho Medo de Partir Um Livro de Viagens. E as edições especiais: Minha Mulher, a Solidão (2015) e Tabacaria (2016). Além de editor, Fonseca é cronista do Jornal de Negócios e Correio da Manhã.


Manuel Fonseca é um apaixonado por Pessoa. O seu novo livro ajudará a que mais gente se apaixone.

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