terça-feira, 21 de setembro de 2021

O prestígio desprestigiante

Novo texto de João Boavida

Coimbra não deve puxar pelos galões, e se alguns o fizeram, no passado, já ninguém de bom gosto o faz hoje. Mas uma vez que a maior parte dos membros do Tribunal Constitucional acha “desprestigiante” a hipótese de transferência do dito tribunal para Coimbra, somos obrigados a lembrar-lhes algumas coisas. Tenham paciência, têm que ouvir. 

Coimbra foi a 1ª capital de Portugal. Ali nasceu a maior parte dos reis da 1ª dinastia. Ao território do Condado Portugalense se juntou, para dar consistência a um país, o Condado de Coimbra - tudo o que ia da margem esquerda do Douro até quase Leiria. Ali jazem, e não por acaso, os dois primeiros reis de Portugal. 

Santa Cruz de Coimbra foi, desde o século XII, juntamente com Alcobaça, o maior centro intelectual de Portugal. 

Ali se estudou e ensinou o Trivium e o Quadrivium, expoentes da cultura medieval, além de se copiarem, traduzirem e interpretarem os grandes autores clássicos e da tradição cristã. De Santa Cruz de Coimbra, onde estudou e se formou Santo António, saiu o melhor da elite intelectual que apoiou D. Afonso Henriques nos seus esforços diplomáticos junto da Santa Sé; e, não esquecer, ainda Lisboa era uma cidade estrangeira. 

Ali se reuniram as Cortes de Coimbra (1385), que elegeram D. João I e fundamentaram juridicamente o seu direito ao trono. E é curioso que andando o futuro rei já por terras mais a sul, tenha vindo a Coimbra respaldar-se nos juristas que cá havia.

Ali se estabeleceu, por diversas vezes e definitivamente a partir de 1537, e não foi por acaso mas em grande parte pela tradição e irradiação cultural de Santa Cruz, a única Universidade Portuguesa até ao século XX. Ali floresceram dezenas de colégios de estudos médios, jesuítas e de outras congregações, tanto da Rua da Sofia, a que deram o nome, como na Alta.

Ali floresceram os célebres “Conimbricenses”, responsáveis por um monumento de sabedoria e erudição filosófica, teológica e científica do Renascimento, e pelo qual estudou a Europa culta do tempo.

Ali empreendeu e levou a cabo o Marquês de Pombal a mais sólida reforma iluminista de Portugal, e deu à Universidade e, portanto, a Portugal um património científico e museológico talvez único. 

Ali funciona, há séculos, uma Faculdade de Direito que tem dado inúmeros juristas da mais elevada qualidade, e donde saiu a elite de juristas que estruturou o edifício jurídico brasileiro, na linha de Coimbra, além da proeza inaudita que é o Brasil de hoje, unido e imenso.

Ali existe, desde há décadas, a maior editora jurídica de Portugal – A Almedina – onde se publicaram e publicam a maioria dos estudos e dos tratados jurídicos em Português, não só dos professores da sua Faculdade, mas de outras que sabem do prestígio jurídico das referidas edições. Foi a dois professores da Faculdade de Direito de Coimbra – Barbosa de Melo e Cardoso da Costa – que, no âmbito da revisão constitucional de 1982, foi dada a tarefa de articular e fundamentar o futuro Tribunal Constitucional. É interessante recordar que este chamado “Grupo de Coimbra”, logo na altura considerou que não convinha ao referido tribunal a proximidade do poder político. E um dos problemas que se colocou, e que na altura foi debatido, foi o da sua independência; coisa eventualmente mais difícil de manter quando a proximidade ao referido poder é grande.

Ora bem, 

apesar disto tudo, talvez por ignorância ou por um acinte subconsciente e provinciano, ou por simples comodidade e egoísmo, a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional deu parecer negativo à sua transferência para Coimbra, num esboço do que poderia ser alguma descentralização. Isso seria “desprestigiante” para a Instituição, disseram dez dos treze juízes. Depois, face à indignação geral, emendaram dizendo que o desprestígio não era por ser Coimbra mas por sair de Lisboa. Pior ainda. Como se não houvesse exemplos disso na Europa, não fossem até sinal de maturidade institucional e política e não tivesse Coimbra razões culturais e jurídicas suficientes, o que é inaceitável por muitas das razões apresentas.

E mesmo quanto ao presente, Coimbra é boa para ter no Instituto Pedro Nunes uma das melhores incubadoras de empresas do Mundo, é boa por inúmeras empresas de ponta como a Critical, a Feedzai, a Bleupharma, etc. mas não pode ter o Tribunal Constitucional nem o Supremo Tribunal Administrativo.

É claro que o Partido Socialista, que sabe ter em Coimbra uma coutada reverente e obrigada, absteve-se na votação na Assembleia da República. Embora seja o grande responsável por um poder autárquico que há décadas atrofia a cidade, veio com as habituais explicações palavrosas, hipócritas e cobardes.

Sim, porque a Universidade de Coimbra tem feito um notável esforço de modernização e internacionalização, como o referido Instituto Pedro Nunes, o Aibili e o Biocant são exemplos, tal como a grande percentagem de alunos estrangeiros que atualmente a procuram. 

Mas esse esforço não tem sido acompanhado, nem de perto nem de longe, pelas sucessivas autarquias socialistas que têm anestesiado a cidade. Basta recordar os mais de trinta anos que demorou a licenciar o Polo II. Portante, era melhor que o Partido Socialista e os seus deputados assumissem que, para eles, todo o resto do país, por muitos pergaminhos que tenha e moderno que seja, é desprezível. 

Será que, como já alguém disse, o Tribunal Constitucional se sente mais dignamente instalado no Bairro Alto que junto aos Antigos Paços dos reis de Portugal?

João Boavida

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

O Tribunal Constitucional não sai completamente desprestigiado no parecer que emitiu, porque houve voto de vencido. Mesmo tratando-se de um parecer que, suponho, lhe terá sido solicitado, por razões que respeitam e afectam as condições físicas e humanas do Tribunal e que, assim sendo, se insere num procedimento meramente burocrático da administração do Estado, não tendo natureza jurisdicional, nem envolvendo as competências jurisdicionais do Tribunal. Mas é um indício, ou, mais correntemente, dá para perceber que os juízes, em causa própria, como toda a gente, podem ser um desastre.

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