Meu artigo no I de hoje:
A norte-americana Naomi Oreskes (n. 1958), com formação
inicial na área da Geologia no Imperial College de Londres e na Universidade de
Stanford, é professora de História da Ciência na Universidade de Harvard, em
Boston. Tem trabalhado na história das ciências ambientais e climáticas, na
política de ciência, nas relações entre ciência e religião e em questões de
género. É autora de sete livros e de mais de 150 artigos científicos. O seu
livro que suscitou mais atenção – alimentando mesmo um vivo debate – foi Merchants of Doubt (Bloomsbury, 2010),
escrito em colaboração com Erik Conway, historiador da NASA, que incide sobre o
negacionismo das alterações climáticas. O seu livro mais recente é Science on a Mission. American Oceanography
from the Cold War to the Climate Change (University of Chicago Press,
2021), sobre a relação entre cientistas e militares no domínico da
oceanografia. Merchants of Doubt,
traduzido em nove línguas (ainda não em português), serviu de base a um
documentário com o mesmo título que foi distribuído pela Sony Pictures. Na
edição mais recente, teve um prefácio de Al Gore, o ex-vice presidente dos
Estados Unidos e destacado ambientalista (autor do filme e livro Uma Verdade Inconveniente).
Naomi Oreskes ganhou proeminência quando, num artigo
publicado na revista Science em 2004
mostrou, analisando milhares de artigos, que havia um maciço consenso na
comunidade científica sobre as alterações climáticas e a sua origem, tema que o
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas tem vindo
a rever em sucessivos relatórios. A contribuição das Ciências Físico-Químicas
para o próximo relatório (o sexto), divulgada em Agosto passado, é
particularmente alarmante, ao dizer que o limiar de aquecimento de 1,5 ºC,
indicado no Acordo de Paris de 2015, vai ser transposto. Existem, de facto,
alterações climáticas globais devidas ao aumento do efeito estufa, causado
pelas emissões de dióxido de carbono e de outros gases resultantes da
actividade humana. Oreskes apontou o dedo às petrolíferas que negavam as
provas, tal como no passado as tabaqueiras tinham negado a relação entre fumo
do tabaco e o cancro do pulmão. Entidades com um óbvio conflito de interesse
nunca são independentes a analisar assuntos que lhes dizem respeito.
Oreskes tem escrito para destacados órgãos da imprensa como
o New York Times e o Washington Post. Escreveu a introdução a
uma edição norte-americana da encíclica Laudato
Si’ do papa Francisco sobre mudanças climáticas e desigualdades sociais,
publicada no mesmo ano do Acordo de Paris. E é colunista regular da revista Scientific American.
Acaba de sair na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, com o
n.º 236, a edição portuguesa do livro de Naomi Oreskes Porque Confiar na Ciência? (original: Princeton University Press,
2019). A obra contém as Tanner Lectures
que a autora proferiu na Universidade de Princeton em 2016. Tem uma introdução
de Stephen Macedo, professor de Ciências Políticas em Princeton, e um conjunto
de quatro textos de reflexão crítica de vários autores suscitada pelas
palestras de Oreskes. No final, a autora responde a todos, num esforço de
síntese, actualizando num posfácio alguns dos seus argumentos. A tradução,
muito competente, é de Maria de Fátima Carmo e eu próprio fiz a revisão
científica, que foi de pouca monta até porque o livro não está escrito numa
linguagem especializada: pode ser lido por um leigo em ciência. A obra encerra
com numerosas notas e uma extensa bibliografia.
Vivemos num mundo em que, apesar dos impressionantes
sucessos da ciência, há quem desconfie dela. Quer nas alterações climáticas
quer na questão mais recente do Covid-19 são múltiplas as manifestações dos
chamados negacionistas, que recusam acreditar nas provas científicas. O
astrofísico e comunicador de ciência norte-americano Carl Sagan foi peremptório
quando, no seu livro O Mundo Infestado de Demónios. A Ciência como uma
Luz na Escuridão (Gradiva, 1998), escreveu: «Criámos uma civilização global em que os
elementos mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias,
a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a protecção ao meio ambiente e
até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente da
ciência e da tecnologia. Também criámos uma ordem em que quase ninguém
compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos
escapar ilesos por algum tempo, porém, mais cedo ou mais tarde, essa mistura inflamável de ignorância e
poder vai-nos explodir na cara.»
A mistura inflamável já nos explodiu na cara com Donald
Trump, que negava as alterações climáticas (e, baseado nas suas convicções
infundadas, retirou o seu país do Acordo de Paris) e alimentou posições também
negacionistas sobre a actual pandemia. A sociedade estaria perdida se recusasse
quer a ciência das alterações climáticas quer
a ciência das vacinas. Hoje estamos confrontados com questões de vida ou
de morte e a morte pode ganhar se a ciência for derrotada.
Naomi Oreskes esteve ligada a Portugal, no ano passado, no
Mês da Educação e Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que apoiou a
edição deste livro. Falou nesse âmbito com o bioquímico e comunicador de
ciência David Marçal. E vai estar de novo em ligação com o nosso país na
apresentação do livro que será no dia 14
de Outubro em Oeiras.
Oreskes começa o livro
desta maneira: «Muitas pessoas estão confundidas quanto aos riscos envolvidos
na vacinação, às causas das alterações climáticas, o que fazer para permanecer
saudável e outras matérias que estão dentro do domínio da ciência. Os imunologistas
dizem-nos que as vacinas são geralmente seguras para a maioria das pessoas, já
protegeram milhões de pessoas de doenças mortíferas ou que desfiguram, e não
provocam autismo. Os físicos atmosféricos dizem-nos que a acumulação de gases
com efeito de estufa na atmosfera está a aquecer o planeta e a causar a subida
do nível dos mares e de fenómenos meteorológicos extremos. Os dentistas
dizem-nos para usarmos fio dental. Mas como é que eles sabem estas coisas? E
como sabemos nós que eles não estão errados? Todas estas afirmações são
questionadas na imprensa popular e na Internet, por vezes por pessoas que se
afirmam cientistas. Poderemos encontrar um caminho nestas afirmações
contraditórias?»
A conclusão final depois de ampla discussão em que apresenta
a história, a sociologia e a política da ciência, é que devemos confiar na ciência, embora
obviamente de um modo crítico. Escreve a autora: «Há muito que não sabemos, mas
isso não é razão para não confiar na ciência quanto às coisas que sabemos. O
argumento a favor da confiança na ciência não defende uma confiança cega e
total. Defende uma confiança justificada, contra um cepticismo injustificado,
nas descobertas dos cientistas nos seus domínios de especialização.»
Oreskes serve-se de exemplos elucidativos. Conta alguns casos em
que alguns cientistas fizeram afirmações erradas: a chamada teoria da energia
limitada, a rejeição da deriva dos continentes, a eugenia, o controlo hormonal
da natalidade e a depressão (em que conta uma história pessoal) e o uso do fio
dental. A ciência está longe de ser perfeita — aliás, nenhum empreendimento
humano o é. A ciência, por vezes, erra. Mas ela própria tem mecanismos para
emendar os erros. Este é um livro essencial para compreender o que é a ciência.
Porque devemos confiar na ciência? A discussão científica a
respeito do funcionamento do mundo é eminentemente social: é feito por uma
comunidade de especialistas. Ora, a ciência é robusta porque essa comunidade
tem métodos para confirmar ou desmentir uma afirmação sobre o mundo. A ciência
nunca é o que diz um só cientista ou sequer uma ou duas equipas de cientistas.
A ciência é o que acaba por ser sedimentado (para usar uma metáfora da
geologia) à medida que o tempo passa e as provas se vão acumulando. Pode ter
havido no passado dúvidas sobre os factos fundamentais das alterações
climáticas de origem antropogénica, mas hoje já não as há.
Num mundo profundamente influenciado pela ciência, mas onde
ainda há tanta gente desconfiada da ciência (o problema em Portugal ainda não é
muito grave, mas já surgiram casos que nos deviam preocupar) este é um livro
que recomendo. Oreskes lembra-nos a necessidade dos valores que devem informar
os cientistas – a ciência deve ser feita com consciência – e diz,
convictamente, no final da sua intervenção inicial: «Se não agirmos à luz do
nosso conhecimento científico e se ele estiver correcto, as pessoas sofrerão e
o mundo ficará diminuído. As provas disso são avassaladoras.» Tem razão.
1 comentário:
Quem tem acesso aos media, colabora nesta imbecilidade, quando coloca como alternativa "democratica" a opinião dum (por vezes imbecil) a uma informação cientifica. Com o Covid os capangas do poder e os lacaios da "informação" fizeram um mau serviço aos cidadãos, misturando ciencia com opiniões, por vezes de imbecis.
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