José Luís Pio Abreu (n. 1944 em Santarém) é um psiquiatra com actividade em Coimbra, onde foi professor na Faculdade de Medicina e médico nos Hospitais da Universidade (hoje Centro Hospitalar Universitário de Coimbra). Tornou-se conhecido do público pelos seus livros sucessivamente reeditados – destaca-se o best-seller Como Tornar-se Doente Mental (Quarteto, 2001; 24.ª ed., Dom Quixote, 2016) – e pela sua intervenção cívica, que passou por crónicas na imprensa (o livro Estranho Quotidiano, saído na Dom Quixote em 2010, com prefácio de Maria Filomena Mónica, reúne as curiosas crónicas que publicou no jornal Destak).
Acaba de sair na Dom Quixote o
seu último livro Pequena História da Psiquiatria. Os desafios das doenças
mentais, que é um resumo, naturalmente na óptica do autor, da evolução da
ciência psiquiátrica. Em 192 páginas o autor passa em revista os marcos mais
importantes da psiquiatria. Isso é feito na primeira parte (intitulada “O Passado”),
que ocupa dois terços do livro, a começar com o alemão Franz Mesmer, o médico criador
da teoria do magnetismo animal no final do século XVIII, e com o francês
Philippe Pinel, representado na bela capa a libertar os alienados do asilo de
La Salpêtrière, em Paris, no ano de 1795 (numa pintura muito posterior). Pinel
é considerado o «pai da psiquiatria», por ter passado a tratar humanamente as
pessoas com perturbações mentais e a classificar estas perturbações, depois de
ter sabido do suicídio de um amigo. Como não podia deixar de ser, Pio Abreu
dedica espaço ao francês Jean-Martin Charcot, fundador da neurologia moderna, e
ao austríaco de origem judaica Sigmund Freud, criador da psicanálise. Pio Abreu
não esconde as críticas que a ciência hoje faz a Freud, mas aponta também os seus
méritos, entre os quais o de fazer passar os tratamentos psiquiátricos para
consultórios privados. Explica que o êxito de Freud se deve, em grande medida,
aos seus continuadores judeus nos Estados Unidos depois do Holocausto no Velho
Continente. É também destacado o alemão Emil Kraepelin, o fundador da
psiquiatria científica moderna, ao defender que as doenças mentais são causadas
por transtornos biológicos, tendo algumas delas base genética.
Pio Abreu dá grande atenção ao
uso de drogas para tratar de doenças mentais, começando no século XIX com a
morfina e continuado ao longo do século XX com a insulina, o lítio, a clorpromazina
e a levodopa. E dá também o devido realce aos manuais norte-americanos de
classificação de doenças mentais, os DSM – Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders. A primeira versão foi o DSM-1, de 1952 e a última o
DSM-5, de 2013. Para que se veja a evolução face à homossexualidade: esta só
deixou de ser considerada doença no DSM em 1974!
O autor historia a evolução em
Portugal da psiquiatria, desde o Abade Faria, nascido em Goa e com actividade
em França, um dos primeiros estudiosos da hipnose. Uma personagem inspirada por
ele aparece no romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Pio
Abreu discute o papel de António Egas Moniz, o nosso único Prémio Nobel na área
das Ciências (de Fisiologia ou Medicina, em 1949): ele foi o autor de uma tese
doutoral intitulada A Vida Sexual (1901), onde a homossexualidade é
considerada uma doença curável por psicoterapia e hipnose, e o precursor de uma
técnica de psicocirurgia assaz criticada, a leucotomia pré-frontal, que deixou
de ser usada graças aos avanços dos psicofármacos. Egas Moniz foi também
pioneiro na recepção de Freud entre nós, o que passou por uma biografia de
Júlio Dinis (de cuja morte passam este ano 150 anos), onde há uma leitura
psicanalítica de Uma Família Inglesa. No livro de Pio Abreu não está,
mas Egas Moniz foi médico de Fernando Pessoa e de Mário de Sá Carneiro. O autor
descreve também em traços gerais o trabalho de grandes médicos como Miguel
Bombarda, António de Magalhães Lemos, Júlio de Matos e José Sobral Cid, cujos
nomes estão associados a hospitais psiquiátricos respectivamente em Lisboa,
Porto, Lisboa e Coimbra. Quem quiser saber mais sobre a história da psiquiatria
ganha em consultar a tese defendida em 2015 na Universidade de Coimbra pelo médico
José Morgado Pereira A Psiquiatria em Portugal. Protagonistas e história
conceptual (1884-1924), que se encontra on-line.
Na segunda parte (intitulado «Presente
Contínuo»), que ocupa o terço final do livro, o autor apresenta um ponto da
situação da psiquiatria hoje, enumerando questões que permanecem em aberto,
apesar dos grandes avanços na imagiologia cerebral e na sequenciação genética.
Conclui: «A mente está para o cérebro como a vida está para o corpo. Corpo e
cérebro são estruturas espaciais. Mas a vida e a mente são o corpo e o cérebro
ao longo do tempo.» O livro tem no fim um útil índice onomástico, algo que não
é muito usual nos livros portugueses. Encontramos lá, na letra C, o nome de
Arsélio Pato de Carvalho, o biólogo que fundou em Coimbra em 1989 o primeiro
centro de neurociências português.
Aprendi muito neste livro. Por
exemplo, não sabia que Freud começou a sua carreira num laboratório de
fisiologia a comparar cérebros humanos com os das enguias, que ele dissecava
(mais tarde haveria de as considerar símbolos fálicos). E não tinha a noção de
que o filósofo alemão Karl Jaspers, com formação em medicina e expulso pelos
nazis da Universidade de Heidelberg, teve uma actividade tão determinante na
área da psiquiatria. Para já não falar da curta ideia que tinha da influência
da indústria farmacêutica no desenvolvimento da ciência psiquiátrica, que
permitiu substituir tratamentos violentos como os que aparecem no filme Voando
Sobre um Ninho de Cucos, de Miloš Forman (dos tratamentos antigos quase que
só resta o electrochoque, eficaz em certos casos).
Na Pequena História da
Psiquiatria fica demonstrado o bom poder de síntese do autor, que está
alicerçada na sua longa carreira médica, ao longo de cinco décadas, e na sua bibliografia
tanto científica como pedagógica e de divulgação. De vez em quando, em caixas
sombreadas, ele remete para obras suas anteriores. O primeiro livro de Pio Abreu,
sobre quadros clínicos de depressão, foi publicado em 1973, em colaboração com o
psiquiatra Adriano Vaz Serra, catedrático de Psiquiatria em Coimbra e director desse
serviço no hospital. Seguiu-se O Modelo do Psicodrama Moreniano (HUC,
1992; Climepsi, 2019), uma terapia criada por um médico romeno, emigrado para
os Estados Unidos devido à perseguição aos judeus. Pio Abreu é também autor de
manuais universitários bem-sucedidos do prelo da Fundação Gulbenkian: Introdução
à Psicopatologia Compreensiva (2004; 7.ª ed., 2015) e Elementos de Psicopatologia
Explicativa (2012; 2.ª ed., 2014). Para a mesma Fundação traduziu Neurofisiologia
Sem Lágrimas, de William MacKay (1999; 6.ª ed., 2016).
Antes do marco bibliográfico que
foi Como Tornar-se Doente Mental, Pio Abreu publicou Comunicação e Medicina
(Virtualidade, 1998) e O Tempo Aprisionado (Quarteto, 2000). Depois
passou para a Dom Quixote, onde saíram, para além do já referido Estranho
Quotidiano, os livros Quem Nos Faz Quem Somos: Genes, signos,
identidades (2007), para o qual escrevi um prefácio, O Bailado da Alma
(2014), sendo a mente o novo nome da alma, e A Queda dos Machos: Cartas às
minhas amigas (2016, 2.ª ed., 2019), sobre questões de género.
É ainda autor de prefácios para
livros polémicos: Anti-Freud, de Michel Onfray (Objectiva, 2012), onde o
filósofo francês critica abertamente Freud; Maníacos de Qualidade: Portugueses
célebres na consulta com uma psicóloga, de Joana Amaral Dias (Esfera do
Caos, 2010), filha do psiquiatra conimbricense Carlos Amaral Dias; e Amor e
Sexo no Tempo de Salazar, de Isabel Freire (A Esfera dos Livros, 2010).
Como Tornar-se Doente Mental é
um título muito original. O seu êxito não será alheio ao título. A
partir da 13.ª edição passou a sair na Dom Quixote, tendo os direitos sido vendidos
para o Brasil, Espanha e Itália (o autor ganhou em 2016 o prémio italiano Cittá
delle Rose). Pio Abreu pega em doenças do DSM e descreve os seus sintomas,
para que ironicamente, o leitor possa «escolher» essas formas de loucura.
Devo dizer que o conheço
pessoalmente, tendo por ele admiração e estima. Fiquei com a ideia do contacto
com ele e com outros psiquiatras (em Coimbra, conheço também o Carlos Braz
Saraiva, especialista em suicídio; no Porto, conheço Rui Coelho, para cuja Revista
Portuguesa de Psicanálise, já escrevi) que os psiquiatras são das classes
profissionais mais interessantes para se ter uma conversa…
A minha experiência com a classe é,
até agora, apenas fora do consultório. Diz o povo que «de médico e louco todos
temos um pouco». De médico, eu tenho muito pouco, pois nem posso ver sangue. De
louco, tenho, como toda a gente, ocasiões. Em entrevista recente à jornalista
Clara Soares da Visão, Pio Abreu respondeu assim à pergunta «como não
ser doente mental?»:
«Todos podemos ter problemas
mentais: ficar fóbico depois de ter um acidente de viação, maníaco quando se
tem uma paixão, ou um pouco obsessivo após ter feito qualquer coisa e não poder
pensar nela. São crises passageiras, mas é preciso estar atento porque a partir
de certo ponto podem tornar-se patológicas. As pessoas podem reinventar-se,
experimentar outras formas de estar. Grandes artistas tinham patologias e
sempre houve uma relação entre criação artística e doença mental. Costumo dizer
que um génio é um louco com sucesso e um louco é um génio sem sucesso.»
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