Meu artigo no último "As Artes entre as Letras":
O tempo está omnipresente na poesia. Luís de
Camões escreveu que «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ Muda-se o ser,
muda.se a confiança;/ Todo o mundo é composto de mudança,/ tomando sempre novas
qualidades.» O poeta Alberto Caeiro, o heterónimo anti-metafísico de Fernando
Pessoa, escreveu: «Vive, dizes, no presente;/ Vive só no presente.// Mas eu não
quero o presente, quero a realidade;/ Quero as coisas que existem, não o tempo
que as mede.// O que é o presente?/ É uma coisa relativa ao passado e ao
futuro. / É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem./ Eu
quero só a realidade, as coisas sem presente.// Não quero incluir o tempo no
meu esquema.(…)». E Vitorino Nemésio, no poema «A Tempo», que li na minha «última
lição», também glosou a eterna questão do tempo: «A tempo entrei no tempo,/ Sem
tempo dele sairei:/ Homem moderno,/ Antigo serei./ Evito o inferno / Contra
tempo, eterno/ À paz que visei./ Com mais tempo/ Terei tempo:/ No fim dos
tempos serei/ Como quem se salva a tempo./ E, entretanto, durei.»
Tive recentemente oportunidade de apresentar
um livro de poesia em que o tema do tempo está omnipresente. A sessão,
organizada pela editora On y va do escritor (também poeta) algarvio António
Manuel Venda, decorreu no Solar do Alambique, uma casa de campo em Angeja,
Aveiro, porque o poeta é natural dessa terra. António Souto (n. 1961) é autor
de cerca de uma dezena de obras, entre poesia e crónica. Formado em Línguas e
Literaturas Modernas na Universidade de Lisboa, é professor de Português na
Escola Secundária de Camões, em Lisboa, a escola onde ensinaram, entre outros
grandes nomes das nossas letras, Aquilino Ribeiro, Virgílio Ferreira e Rómulo
de Carvalho/António Gedeão (Jorge de Sena foiaí aluno de Rómulo no Camões).
O novo livro intitula-se A Seiva dos Dias.
O próprio título remete para a ideia de tempo, que está presente num número
substancial dos poemas: basta olhar para os muitos títulos que falam de dias,
meses e de estações do ano. Além das questões mais ou menos metafísicas do
tempo, o poeta atém-se, por vezes, a coisas comezinhas do dia-a-dia. Como a
poesia chama outra poesia, invoca amiúde a voz de outros poetas: Caeiro e
outros heterónimos de Pessoa é um dos seus preferidos, mas também Cesário
Verde, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, José Saramago e Manuel Alegre.
O seu primeiro livro de poesia foi Horizonte
Vertical (edição de autor, 1984), com prefácio Mário da Rocha. Depois
publicou: Arcanas Carícias: poesia (Escritor, 1993), Na Lavra do
Dizer (O Contador de Histórias, 1998), com prefácio de Urbano Tavares
Rodrigues, Caprichos (idem, 2000) e O Tempo das Palavras, com
Armindo S. (Sinapis Editores, 2010), com prefácio de João de Melo. Estres cinco
volumes iniciais foram reunidos em O Milagre do Entardecer (On y va, 1.ª
ed., 2019, e 2.ª ed., 2021). A seguir publicou mais dois volumes poéticos Sonhos
Sobrantes (DebatEvolution, 2014), com prefácio de Luiz Fagundes Duarte, e Palavras
(In)Adiáveis (idem, 2018), cujos conteúdos essenciais estão nas segunda e
terceira partes de A Seiva dos Dias, sendo a primeira parte um conjunto
de inéditos.
Alguns poemas tratam do tempo passado há
muito, o tempo da infância vivida em Angeja. Escreveu um dia o autor sobre si
próprio: «Começou cedo o encontro com a poesia, antes mesmo de lhe decifrar
aquele recheio que as palavras traduzem. Pelos quintais e campos e montes e
pinhais, cachopo ainda, a natureza oferecia-se aos sentidos todos, e foi a
minha primeira página em branco.» Escolho um poema, «Pirilampos», sobre esse
tempo de iniciação, um tempo que jamais voltará: «Tinham entre nós um nome/
luze-cus// pelas escuridões demoradas da/ infância tardia/ corríamos à sua
volta em jogos de cabra-cega e/ acompanhávamos em cada pirueta/ as sereias das
noites de incêndio/ rua abaixo rua acima/ rua acima rua abaixo/ até que acabava
quase sempre um deles no/ aconchego íntimo das mãos/ e havia um deslumbramento
cintilante/ a jorrar dos olhos// depois/ ah depois/ estafados e dormidos/
enchíamos a alma de sonhos e de estrelas.” Poesia simples, mas bastante
emotiva.
Escolho, para continuar a dar uma amostra da
poesia do autor, do tempo do professorado em Lisboa, o poema “Plátanos
desafiantes”, na segunda parte: «os alunos rabiscam respostas a um/ poema de
torga/ a mudez é recortada pela/ toada de um pássaro ou dois em ritual/
primaveril/ calou-se agora/ agora retoma// a sala é permeável à natureza toda
que é/ cada vez menos no presente da cidade// o pássaro cala-se e um aluno
pergunta// o que é uma videira// e o pássaro agora com um coro consigo/
disposto nos plátanos desafiantes e um/ aluno pergunta/ o que são beirais//
torga decididamente não é deste reino e/ só os pássaros insistem em fazer
ninhos na/ escola fora dos sonhos de quem nela anda/ de quem nela anda/ de quem
nela anda». É terrível a situação das escolas onde Torga parece não ter lugar!
Por último, voltando à primeira parte, transcrevo
um poema que é uma glosa na outro, «Lisboa ainda», que Manuel Alegre escreveu a
20 de Março de 2020, quando Lisboa estava deserta devido à pandemia que tinha
sido declarada escassos dias antes («Lisboa não tem beijos nem abraços/ não tem
risos nem esplanadas/ não tem passos/ nem raparigas e rapazes de mãos dadas/
nem praças cheias de ninguém (…)». Souto glosa Alegre em «Encruzilhada»: «Vai
para dez dias que te não vejo/ lisboa/ e as saudades começam já a ser de
séculos// diz-me o alegre que não tens beijos nem abraços/ que tens somente
praças cheias de ninguém/ e eu acredito/ porque é assim que estás/ como está
todo o meu país/ e o mundo quase todo/ de estranho luto enclausurado// dias e
noites noites e dias/ silêncios vazios e comédias divinas em cada lar// mas
diz-me o poeta/ também/ que ainda resistes/ e eu sei que é verdade/ porque sei
que tens dentro de ti sempre/ e pelo tejo fora despontares de primavera/
corações que pulsam e jardins vestidos de esperança.» Em tempo de pandemia, não
são só vacinas que nos salvam: a poesia também.
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