Minha recensão saído no jornal I a 10/6 passado:
A “doença do século” é a doença de Alzheimer, a
enfermidade neurodegenerativa actualmente mais comum (é a causa de 60 a 70 por
cento dos casos de demência) e cujo maior factor de risco é a idade. De facto,
a longevidade tem crescido ao longo das últimas décadas, levando ao
aparecimento de um maior número de casos. Em 2019, a esperança de vida à
nascença era estimada em todo o mundo em 73,4 anos, sendo maior nas mulheres do
que nos homens. Em Portugal era mais elevada: 81,1 anos para o total da
população, sendo 83,7 anos para as mulheres e 78,1 anos para os homens. A
Organização Mundial da Saúde estima que haja 48 milhões de casos de Alzheimer
diagnosticados, prevendo que esse número suba para 76 milhões em 2030 e 136
milhões em 2050. Os dados para Portugal não são muito fiáveis nesta
área, mas julga-se que existam mais de 200 000 casos, o que corresponde a cerca
de dois por cento da população. A Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico (OCDE) diz, num relatório de 2017, que Portugal é o
quarto país com mais casos de Alzheimer entre os países que dela fazem parte (a
média da OCDE anda à volta dos 1,5 por cento). Cada um de nós conhecerá decerto
casos na sua família ou em famílias próximas. Havendo estimativas que colocam
Portugal em 2050 como o país mais envelhecido da União Europeia e o quarto mais
envelhecido do mundo, forçoso é concluir que esta doença será nessa altura entre
nós um problema muito mais sério do que é hoje.
Faltava em Portugal um livro recente e bem
informado sobre uma enfermidade que nos apavora, dada a completa falta de
memória na fase final da enfermidade e, portanto, a completa disrupção das
relações sociais, para não falar já dos custos dos indispensáveis cuidados
permanentes com as pessoas atingidas. Esse livro acaba de sair com a chancela
da Guerra & Paz: O título é Alzheimer.
A verdade sobre a doença do século, uma tradução do original francês saído
na Grasset em 2019. É seu autor o neurologista francês Bruno Dubois, grande
especialista em Alzheimer, e sua tradutora a neurologista portuguesa, que
trabalha em França, Katia Andrade.
Bruno Dubois é professor de Neurologia
na Sorbonne em Paris. Daí o título de professor na capa do livro, uma
escolha editorial em que não me revejo, pois é muito comum encontrar livros cheios
de pseudociência (por exemplo, sobre dietética e nutrição) que usam o poder
persuasivo da autoridade académica para aumentar as suas vendas. O leitor pode
ficar descansado que não é o caso deste livro, inteiramente baseado em ciência.
Dubois justifica tudo o que escreve. Dirige o Institut de la Mémoire et
de la Maladie d'Alzheimer, que ele próprio criou, no Hospital Pitié-Salpêtrière, uma instituição
com largas tradições na Neurologia (foi lá que trabalhou Jean-Martin Charcot, o
médico oitocentista que fundou a Neurologia moderna), Dubois lidera também no
mesmo hospital uma unidade de investigação do Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (INSERM)
sobre o cérebro e medula espinhal. Entre as suas contribuições para a
Neurologia, está um teste para a identificar o Alzheimer: o “teste das cinco
palavras”, no qual é pedido ao paciente para se lembrar de cinco termos de
cinco grupos semânticos diferentes que lhe são apresentados. Este é o seu
primeiro livro para o grande público pois os outros são obras de carácter mais
especializado. Embora acessível a leitores minimamente cultos, devo prevenir,
ao mesmo tempo que recomendo o livro a todos os interessados, que o autor não prescinde
do uso de terminologia média nesta sua obra, tornando-a em certos excertos mais
difícil de ler. Mas tem outras passagens fáceis e apelativas. As pessoas em
busca de informação de confiança sobre o Alzheimer encontrá-la-ão neste livro
bem organizado em três capítulos: “O que é a doença de Alzheimer”, “A aventura
do conhecimento” e “A aventura moderna”.
A tradutora (a quem o editor também designa por
“Prof. Dr.ª ”) é Katia Andrade, médica neurologista do Porto, que hoje trabalha
em Paris, sendo próxima de Dubois. A tradução é bastante boa, como não podia
deixar de ser, da parte de quem domina bem tanto o vocabulário médico como a
língua portuguesa. Katia Andrade é autora de duas obras literárias publicadas pela
Guerra & Paz: Retrato (2019, com António
Bessa), uma homenagem a Sophia e Pessoa, e Poemas
Fotográficos (2017), um livro trilingue de poesia ilustrada.
Quem foi Alzheimer? Aloís Alzheimer (1864-1915),
psiquiatra e neuropatologista alemão, foi o primeiro a reconhecer a doença
neurodegenerativa que hoje tem o seu nome. Alzheimer trabalhou com outro grande
neurologista alemão, Emil Kraepelin, autor da primeira classificação moderna
das doenças psicóticas. Foi este seu colega que ajudou a divulgar o trabalho de
Alzheimer, fixando o nome da doença. Vale a pena contar a sua descoberta,
que Dubois descreve no segundo capítulo. Em 1901, Alzheimer observou Auguste
Deter, uma paciente com 51 anos, no asilo de Frankfurt am Main para doentes
mentais e epilépticos. A paciente tinha uma clara perda de memória de curto
prazo; Frau Deter permaneceu nesse asilo até morrer em 1906 tendo Alzheimer
ficado com os seus registos médicos e lâminas do seu cérebro, que ele próprio
examinou ao microscópio no laboratório de Kraepelin em Munique. Identificou o
que hoje sabemos serem duas marcas inequívocas de Alzheimer: placas amilóides e
emaranhados neurofibrilares. Também sabemos hoje que o Alzheimer, tal como
outras doenças neurodegenerativas, resulta de desconformidades de proteínas do
cérebro, que perturbam as funções cognitivas e motoras quando o seu número
ultrapassa certos limites. Curiosamente, os registos de Auguste ficaram muito
tempo perdido por terem sido mal arquivados, tendo sido descobertos em 1996. Dubois
transcreve um excerto do questionário que Alzheimer fez à doente no asilo: “Como
se chama? Auguste. Qual é o seu apelido? Auguste. Qual é o nome do seu marido? Auguste,
acho eu. É casada? Com Auguste.” Um exame
genético de tecidos conservados do cérebro de Auguste revelou que se tratava de
um dos raros casos de doença com origem genética, que se manifesta antes dos 65
anos. Alzheimer pensava que a “nova” doença aparecia antes dessa idade, mas o
mais normal é a doença não ter carácter genético e ocorrer em idade mais
avançada.
Muitas questões sobre o Alzheimer são respondidas no livro de
Dubois. Como se diagnostica o Alzheimer? Os primeiros sintomas são, como foi
dito, a perda de memória, mas o autor avisa-nos para não confundirmos falhas
amnésicas passageiras com prenúncios de Alzheimer. Fiquei feliz em saber pois
há dias aconteceu-me esquecer-me do meu número fiscal de contribuinte, que
estou farto de repetir (entretanto já me lembrei, sem consultar o registo). Não
nos lembrarmos de palavras ou números que costumamos saber acontece com mais
frequência à medida que progredimos na idade, mas isso não é, geralmente, sinal
de doença neurodegenerativa. Após testes de memória, que podem ser mais
elaborados do que o “teste das cinco palavras”, podem fazer-se exames
imagiológicos, como TAC ou RMN, e análises ao sangue, para despistar causas de
más formações, como tumores cerebrais. Em casos mais avançados da doença, podem
fazer-se punções lombares que permitem analisar o líquido da medula espinhal em
busca de biomarcadores da doença. De qualquer modo um diagnóstico concludente só
pode ser feito post mortem com a análise
de células cerebrais, tal como Alzheimer fez. Sabemos hoje a partir de inúmeras
autópsias que as lesões que ele detectou são mais comuns do que os diagnósticos
de falta de memória, o que significa que a doença é muitas vezes assintomática.
O nosso cérebro dispõe de redundâncias que compensam eventuais danos.
A doença de Alzheimer é hoje incurável, apesar de todos os esforços
da moderna investigação: conduz à morte em média em sete anos após o diagnóstico.
Acaba de ser anunciado que a FDA, a agência norte-americana que regula os
medicamentos, autorizou o uso de um novo fármaco que promete retardar o
desenvolvimento do Alzheimer, embora tenha havido controvérsia e parecer
negativo da comissão de peritos que foi consultada. A autorização acabou por
ser dada em boa medida por pressões de associações de familiares de doentes,
que têm muito poder nos Estados Unidos.
Hoje sabemos que o exercício intelectual é um factor que previne o
aparecimento da doença. Não conhecemos bem quais são os mecanismos que desencadeiam
a doença, mas sabemos que as pessoas com maior actividade intelectual tendem a
ter menos Alzheimer. Deixo um excerto do livro
em que se refere um estudo feito ao longo dos anos com base em cérebros de
freiras:
“A estimulação cognitiva nos primeiros anos de vida
desempenha um papel primordial (…) Isto foi belissimamente confirmado pelo ‘Nun
study’, um estudo realizado numa população de freiras americanas que ‘tinham
escolhido oferecer as suas almas a Deus… e os seus cérebros à ciência’, tal
como titulava a reportagem que a revista Science
fez sobre o assunto. O exame post mortem dos
cérebros dessas freiras mostrou uma relação entre a densidade das alterações cerebrais
da doença de Alzheimer e o seu nível de escolaridade (…).”
Portanto, caro leitor, o melhor é ir usando o
cérebro. Por exemplo, lendo este livro e outros. Ou envolver-se em actividades
sociais, por exemplo apresentar e discutir os livros que leu com os seus
familiares e amigos.
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