sexta-feira, 27 de novembro de 2020

JOAQUIM NAMORADO E A BANDEIRA DA POESIA


Minha recensão no jornal I de quinta-feira passada:

Sob uma Bandeira [Obra Poética] é o título do livro que reúne a maior parte da poesia do poeta Joaquim Namorado (Alter do Chão, 1914 - Coimbra 1986) que acaba de sair numa magnífica edição com a chancela da Modo de Ler, do Porto (do veterano editor José da Cruz Santos), com organização, prefácio e notas de José Carlos Seabra Pereira, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.  A colecção é “As Mãos e os Frutos”, que abriu com 36 Poemas e uma Aleluia Erótica, de Frederico García Lorca, traduzidos por Eugénio de Andrade. A edição, com design de Rui Mendonça, teve o apoio da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, que guarda o espólio literário de Namorado. Conforme explica no final uma nota desta associação, o autor esteve na génese do Museu e deixou-lhe o seu espólio literário, entre o qual se encontrava, organizado por ele e com o mesmo título, a reunião da sua obra poética. Não é ainda a obra completa, mas é uma boa tentativa.

Tive o gosto de conviver com Joaquim Namorado, quando regressei em 1982 do meu doutoramento na Alemanha. Bastante mais velho, ele era assistente de Matemática na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), onde tinha feito o curso de Ciência Matemáticas, que concluiu em 1943. Por ser militante do Partido Comunista desde a década de 30, foi-lhe coarctada a possibilidade de seguir uma carreira académica (incluindo a realização de doutoramento) e só após o 25 de Abril de 1974 pôde entrar na função pública. Antes de ingressar na Universidade, Namorado tinha andado no Liceu Normal de D. João III (hoje Escola Secundária José Falcão), que eu, muito depois, também frequentei.

Lembro-me de o ver nos cafés da Praça da República, em Coimbra, com a boina na cabeça o seu modo muito próprio de interpelar as pessoas. Tinha um humor muito especial, tão lúcido quanto ácido. Estive num jantar em sua homenagem em Junho de 1984, quando se reformou, no qual foi distribuída uma “plaquete” de poemas seus relacionados com a matemática: os Falsos Poemas Lógicos, incluídos no presente volume. Estive também no seu funeral, que teve direito a honras académicas e a um eloquente panegírico (não faltou a bandeira do PC sobre a urna).

Joaquim Namorado foi não só um intelectual resistente ao regime anterior, mas também um grande criador literário que merece maior reconhecimento do que aquele que teve hoje. Devido a várias circunstâncias da sua vida (julgo que viveu durante muitos anos de explicações particulares) e da censura reinante, não publicou muitos livros. Uma consulta ao catálogo da Biblioteca Nacional assinala essencialmente três: Aviso à Navegação: poemas (s.n., 1941), Incomodidade (Atlântida, 1945), A Poesia Necessária (Vértice, 1966). Mas na Biblioteca Rómulo, na Universidade de Coimbra, encontra-se também Zoo: poemas (FCTUC, s.d.). Alguma da sua prosa está em Obras, Ensaios e Críticas. Joaquim Namorado; organização, prefácio e notas de António Pedro Pita (Caminho, 1994). Escreveu Vida e Obra de Frederico García Lorca (s.n., 1943). Prefaciou livros de escritores seus contemporâneos: Fogo na Noite Escura, de Fernando Namora, Fanga, de Alves Redol, e Voz de Prisão, de Manuel Ferreira.

São vários os escritos sobre a vida e obra de Namorado, a maior parte deles obras colectivas da iniciativa da Câmara da Figueira da Foz (o poeta tinha uma casa de na Figueira e doou os seus livros à Biblioteca local, razão pela qual a edilidade criou um prémio literário com o seu nome) e do Museu do Neo-Realismo:  Homenagem ao escritor Joaquim Namorado (Câmara Municipal da Figueira da Foz, 1990; Joaquim Namorado - Vida e obra: catálogo (idem, 1990); Incomodidade necessária: depoimentos (Câmara Municipal de Coimbra, 1991); Joaquim Namorado: arte e intervenção, 1941, 50 anos depois (Museu do Neo-Realismo, 1993); Tudo existe o que se inventa é a descrição: Joaquim Namorado, 100 anos, organização de Fátima Faria Roque e António Pedro Pita (idem, 2014); e Joaquim Namorado: o herói no "Neo-realismo mágico": no centenário do seu nascimento, de Jaime Couto Ferreira (Lápis de Memórias, 2014).

Namorado é um autor do Neo-Realismo, o movimemto que despontou em Portugal em 1936-1937, sendo uma sua marca de água as preocupações social e política. Nesse movimento foi um dos poetas do "Novo Cancioneiro" (1941-1944), uma colecção onde além dele publicaram Fernando Namora, Álvaro Feijó, Carlos de Oliveira, Políbio Gomes dos Santos, Francisco José Tenreiro, João José Cochofel (de quem a Imprensa Nacional acaba de publicar a obra completa), Mário Dionísio, Sidónio Muralha e Manuel da Fonseca (de quem acaba de sair uma entrevista a Amália Rodrigues, Amália nas suas Palavras, Porto Editora). Namorado colaborou em várias revistas culturais que agitaram o país entre os anos 30 e 50 do século passado como O Diabo, Sol Nascente, Altitude, Síntese, Liberdade e Seara Nova. Participou na reformulação da revista Vértice em 1945, da qual foi director entre 1975 e 1981.

Comemorou-se a 24 de Novembro o dia de aniversário do professor de Física e Química Rómulo de Carvalho, de pseudónimo António Gedeão, que é também o Dia Nacional da Cultura Científica. Embora Gedeão não caiba no Neo-Realismo, encontramos nalguns seus poemas, como “Poema da Pedra Lioz” e “Calçada de Carriche”, as preocupações sociais dos neorrealistas. Por outro lado, tal como Gedeão, Namorado abordou amiúde temas científicos, o que não admira dada a sua formação.

Seabra Pereira escalpeliza muito bem a lírica de Namorado. Mas o melhor aqui será mostrar alguns exemplos. Os dois primeiros livros de Namorado são marcados pela Segunda Guerra Mundial. O título do primeiro é retirado do poema “Aviso à Navegação”, que é por si só uma bandeira de resistência: “Alto lá!/ Aviso à navegação!/ Eu não morri:/ Estou aqui / na ilha sem nome, / sem latitude nem longitude,/ perdida nos mapas,/ perdida no mar Tenebroso!// Sim, eu,/ o perigo para a navegação!/ o dos saques e das abordagens,/ o capitão da fragata/ cem vezes torpedeada,/ cem vezes afundada,/ mas sempre ressuscitada!// Eu que aportei/ com os porões inundados, / as torres desmoronadas,/ os mastros e os lemes quebrados/ - mas aportei!// Não espereis de mim a paz!/ Aviso à navegação:/ Não espereis de mim a paz!// Que quanto mais me afundo/ maior é a minha ânsia de salvar-me!/(…)”. No segundo livro, Incomodidade, o tom trágico-cómico está patente no poema “Tragédia Antiga”: “Deitem-me às feras do circo!// Que me importa/ que a multidão se debruce das bancadas/ e o César obeso e debochado/ me olhe de través/pelo óculo de esmeraldas?!// Amanhã vou à manicure... “ E o tom irónico está em “Mania das Grandezas”: “Pois bem, confesso:/ fui eu quem destruiu as Babilónias/ e descobriu a pólvora.../ Acredite,/ a estrela Sirius, de primeira grandeza,/ (única no mercado)/ deixou-ma meu tio-avô em testamento./ No meu bolso esconde-se o segredo/ das alquimias/ e a metafísica das religiões/ — tudo por inspiração!/ Que querem/ Sou poeta/ tenho a mania das grandezas...// Talvez ainda venha a ser Presidente da República...” Gosto, em particular, pela concisão e pelo humor, de três poemas muito curtos: “O Caruncho do Eterno”: “Se nós não existíssemos/ Cervantes nunca seria imortal”; “Aventura nos Mares do Sul”: “Eu não fui lá…”; e “Fábula”: “No tempo em que os animais falavam.../ Liberdade!/ Igualdade!/ Fraternidade!”

No mesmo livro destaco, sobre a pobreza, o poema ”Caridade”, segundo o autor uma das “cinco virtudes mortais”: “As senhoras da sociedade/ deram um baile a rigor/ para vestir a pobreza/ e a pobreza horas a fio/ cortou, coseu, enfeitou/ os vestidos deslumbrantes/ que a caridade exibiu./ Depois das contas bem feitas/ bem tiradas as despesas/ arranjou um namorado/ a mais nova das Fonsecas;/ esteve bem a viscondessa,/ veio o nome e o retrato  da comissão nos jornais,/ e o doutor, o Menezes,/ o senhor desembargador,/ estiveram muito engraçados,/ dançaram o tiro-liro/ já meio-tombados.../ Parece que ainda sobrou/ algum dinheiro para chita/ para vestir a pobreza/ numa festa comovente  com discursos de homenagem/ e uma missa.../ a que assistiu toda a gente”.

Depois de Incomodidade o organizador colocou o poema “Combate”, a muito conhecida letra de uma das “Canções Heróicas” de Fernando Lopes Graça: “nada poderá deter-nos/nada poderá vencer-nos.” As pessoas da minha geração ouvem a música quando lêem o poema…

No final do livro A Poesia Necessária, o autor volta ao tema da pobreza, no poema “Edital”, com algumas palavras em maiúsculas: “Foi afixado/ nos locais do costume/ que É PROIBIDO MENDIGAR.// Logo mão que se descobre/ escreveu a tinta por baixo/ MAS NÃO É PROIBIDO SER POBRE. “

O primeiro poema de Zoo é “Serenata”: “Metam o burro na gaiola/ de douradas grades/ e tratem-no a alpista/ se quiserem/ —  é só um despropósito./ Mas esperar dele o trinar/ do canário melodioso/ é simplesmente tolo.”  Um dos Falsos Poemas Lógicos é "O que é, era": “Quando Cristóvão Colombo/ descobriu a América/ a América estava lá;/ o sangue já circulava/ antes de descrever Harvey a sua circulação;/ a gente respirava sem saber/ que respirar é uma oxidação:// Tudo existe./ O que se inventa é a descrição.” Ora aqui está uma boa tirada poético-filosófica sobre descoberta e invenção.

 

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