O ensino de artes pode tornar-se mais importante do que a matemática no futuro, baseado em tecnologia. Este é o enigmático título de um artigo que acabo de receber, publicado em 27 de Fevereiro do corrente ano (aqui), retirado do depoimento que Andreas Schleicher levou à Câmara dos Comuns sobre uma investigação em curso (presumivelmente da responsabilidade da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico - OCDE) sobre a influência na sociedade da "quarta revolução industrial" (robótica e inteligência artificial).
Imagem recolhida aqui |
Schleicher, o mais alto representante da OCDE para a Educação, é apresentado, no artigo, como "um importante especialista em educação", "um dos principais pensadores educacionais do mundo".
Sabendo que, efectivamente, assim é, estando bem consciente do poder que representa nos desígnios da escola pública à escala global, levo muito a sério tudo o que diz. E, naturalmente, preocupo-me.
Preocupo-me, nomeadamente, pelo facto de, nesse artigo, ser sugerido ou afirmado, pela enéssima vez, que:
- a integração de uma área de conhecimento no currículo escolar exclui outra(s) área(s). Por exemplo, para dar expressão à tecnologia minimiza-se a das humanidades e das artes (o que, de resto, acontece e está profundamente errado); para dar expressão às artes minimiza-se o das ciências e da matemática (o que se pretende, agora, fazer?). O que tenho a dizer é que as várias áreas que compõem o conhecimento humano são complementares e, portanto, todas elas devem estar devidamente representadas no percurso escolar dos alunos;
- as artes estão directamente associadas à criatividade. Não estão. A verdade é que todas as áreas de conhecimento podem concorrer para desenvolver essa capacidade humana. Ou não. Depende de como ela se estimula, através do ensino;
- a "priorização" de aprendizagens académicas impede os alunos de serem criativos. Ora, são precisamente as aprendizagens académicas (que interpreto serem as de ordem disciplinar) que permitem o desenvolvimento da criatividade (pelo menos de um certo tipo de criatividade que leva o conhecimento civilizacional mais além);
- as aprendizagens "muito focadas em tarefas tradicionais, como a memorização" são contraproducentes. A integração, tratamento e recuperação de conhecimento (dependentes do "aparelho de aprendizagem" que é a memória) são a base de toda a aprendizagem. O "jogo" entre estas três operações conduzem ao desenvolvimento de capacidades como a compreensão, a aplicação, a análise e a síntese... e a criatividade;
- para se conseguir a criatividade é preciso dispensar a "aprendizagem baseada em testes". Não sei bem o que Schleicher quer dizer com "aprendizagem baseada em testes", mas os testes, podem medir diversas capacidades, incluindo a criatividade (por referência a conhecimento escolar). Os testes não são, não podem ser, entendidos como um fim em si mesmos, mas são instrumentos de regulação do ensino e dos sistemas educativos, cumprem igualmente a função fundamental de identificar dificuldades, corrigir trajectórias de aprendizagem e dar feedback aos alunos. Não posso deixar de notar que o autor da afirmação é o responsável pelo "Programa Internacional de Avaliação de Estudantes" (PISA), concretizado, em parte, através de testes!
- se pode opor "habilidades"/"competências" (que não são a mesma coisa) ao conhecimento. Como é possível não se perceber que a realização prática (se é que o sentido de "habilidade"/"competência" usado depende de conhecimento que se integrou e se faz valer, que se evidencia numa certa circunstância?
- as “habilidades sociais e emocionais" (também não estou certa do que se possa entender por elas) são separáveis das "habilidades duras como ciência e matemática". Há aqui uma enorme confusão entre capacidades humanas e conhecimento(s). Vejamos: elementos cognitivos e afectivos da aprendizagem andam a par, pelo que devem ser trabalhados em consonância e isto em todas as áreas disciplinares e disciplinas, temas disciplinares, interdisciplinares, etc.;
- é preciso tornar, no futuro a "ciência e a matemática mais suaves" uma vez que a necessidade delas diminui devido à tecnologia é, no mínimo, desorientador... Não consigo entender o sentido da afirmação, quer pelo que mencionei no ponto acima, quer pela necessidade crescente do conhecimento científico, humanístico, artístico para lidar com a tecnologia. Como poderemos dispensar a "ciência e a matemática" numa sociedade tecnológica?!
- (mais:) porquê e para quê tornar as “habilidades sociais e emocionais" (como a “curiosidade, a liderança, a persistência e a resiliência”) em “habilidades difíceis”, invertendo a suposta ordem (ainda) existente? E como é possível desenvolver estas (chamemos-lhe) "habilidades" sem trabalhar o conhecimento escolar?
- às artes, ou às "artes" úteis à tecnologia?
- e à criatividade ou à "criatividade" que (uma certa) tecnologia envolve?
Finalmente, como é regra nas suas intervenções, Schleicher, diz que:
- é preciso preparar os alunos para o futuro (sim, evidentemente, que é desejável fazer isso, de resto, a escola sempre fez isso) e abandonar o passado (não, evidentemente, que isso não pode ser feito sem ponderação). Alega que os tipos de tarefas que os estudantes (no caso, os ingleses, mas também já li que o disse para os portugueses e para os espanhóis) desempenham melhor "são as que estão mais associadas ao passado do que ao futuro, o tipo de coisas que são fáceis de ensinar e fáceis de testar". Eu diria que tudo o que é escolar (dada a sua natureza) sempre foi, é e será difícil de ensinar e de aprender e, também, de testar;
- "o mundo moderno não recompensa ninguém pelo que sabe, mas pelo que pode fazer com o que sabe". Esta frase (eco de outra reproduzida no Expresso: “já não recompensa as pessoas apenas por aquilo que sabem – o Google sabe tudo – mas por aquilo que conseguem fazer com isso”) é absolutamente paradoxar: o que podemos fazer com o saber que... não temos?! Isto para não falar da desvalorização absoluta e grosseira do saber que se tem apenas porque se tem, e porque importa preservar o saber independentemente do que se possa fazer com ele. E, ainda, para não falar da miserável lógica da "recompensa" externa, material, imediata... tudo o que não couber nesta lógica deve ser apagado, destruído.
2 comentários:
No limite, seguindo o raciocínio de Schleicher, na escola não é preciso aprender porque as máquinas hão de fazer tudo por nós. O mais grave é que, no ensino profissional, 99 % dos formandos já não aprendem nada nas escolas! No entanto, os encarregados de educação, apoiados na opinião pública, acham bem empregado o dinheiro que se gasta para "tirar os seus filhos da rua", recolhendo-os num espaço livre de drogas e violências, onde eles se divertem à vontade, antes de virem a aceitar propostas de emprego mal remunerado ou, muito frequentemente, venderem a sua força de trabalho em países estrangeiros que não gastaram um cêntimo com a sua "formação".
Eu diria que na escola pública, infelizmente, à tendência para não se ensinar nada e consequentemente não se aprender nada! A tutela quer assim e os professores anuem.
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