domingo, 26 de maio de 2019

SEGUNDA CONFERÊNCIA: “Responsabilidade social das empresas na construção do currículo escolar"


Realizou-se ontem a SEGUNDA CONFERÊNCIA do ciclo “O currículo escolar na contemporaneidade: Identificação e discussão de algumas das suas bases” (ver aqui e aqui).

Título: “Responsabilidade social das empresas na construção do currículo escolar” 

Resumo: No cenário global designado da “Educação para o Futuro”/”Educação para do Século XXI”, os sistemas de ensino e as empresas mantêm múltiplas e estreitas relações, as quais acompanham o delineamento e desenvolvimento do currículo, sobretudo na componente designada por “Educação para a Cidadania” (em Portugal, designada na mais recente reforma curricular por “Cidadania e Desenvolvimento”). Ainda que se trate de relações que já se tornaram comuns e que, inclusivamente, encontrem suporte na lei vigente, há que interrogá-las, quer pela diferença de propósitos em causa (educar, para os sistemas de ensino; expandir o negócio, para as empresas), quer pela abordagem (crítica, para os sistemas de ensino; promocional, para as empresas). Há que interrogá-las, ainda, pela recolha de dados junto dos alunos, professores e famílias, que lhes está associada. Esta conferência, para a qual são convidados especialistas em Direito do Consumo e Intervenção Cívica incide, por um lado, na caracterização da mencionada situação e, por outro lado, na sua análise. O fim último é prestar apoio às decisões dos agentes educativos, mais directamente ligados às escolas, no respeitante à matéria em discussão. 

Programa
1. Relações entre empresas, sistemas educativos e escolas públicas
2. Abordagem estratégica das empresas na escola pública: a publicidade
3. Implicações dessa abordagem no aliciamento para o consumo e na protecção de dados dos alunos e das suas famílias
4. Responsabilidade dos educadores na formação dos alunos e na sua protecção

Um dos conferencistas convidados, Mário Frota, para sintetizar a sua intervenção leu um poema de Carlos Drummond de Andrade com a ênfase que merece por parte de quem é professor e vê a investida das empresas na escola, incentivada pelas políticas internacionais e legitimada pelas políticas nacionais. O poema foi este:

EU, ETIQUETA 

Em minha calça está grudado um nome 
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida 
que jamais pus na boca, nesta vida. 
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência, 
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda,
ainda que a moda seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional
ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo,
tiro glória de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora 
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar cada
vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto 
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente. 

Andrade, C.D. (1989). Obra poética. Lisboa: Publicações Europa-América (vol. 4-6).

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

O acesso à literatura sempre foi dificultado e, atualmente, muito mais. Não é que alguém tenha dificuldade em aceder a um livro. É muito mais do que isso. Só tem acesso à literatura quem tiver tempo e condições de leitura, pensamento, reflexão, escrita, partilha, crítica.
Na realidade, é preciso ser uma espécie de herói ou de privilegiado para aceder, usufruir e escolher um modo literário de estar e de manifestar.
Mas é o modo de estar e de se manifestar mais promissor e mais poderoso que se possa imaginar, mais aberto e livre e libertário, sem condicionantes metodológicas ou de processos, nem morais, nem éticos, nem científicos, nem pessoais...Nada pode ser tão apetecível para um humano que quer expressar, comunicar, divulgar, registar...como a literatura. Não conheci ninguém que lhe encontrasse limites, a não ser, claro está, os que apontei inicialmente e que se vêm agravando com a despromoção e eliminação de espaço e tempo "concedido", no ensino e na vida, à literatura.
Infelizmente, uma das razões para não escrever ou ler, é estarmos mobilizados para uma guerra prioritária dos outros, que não se compadece com aquilo que tu sentes, ou queres, ou pensas, ou gostas, ou imaginas e que é insensível e surda à tua guerra e à tua vida. Mas há quem, no meio dos bambardeamentos, ainda encontre força e discernimento para olhar, pensar, sentir, escrever, nem que seja com sangue.
A literatura é o maior desafio intelectual que um homem pode aceitar.
Haja inteligência e imaginação para criar personagens que sabem muito mais do que o autor.

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...