Meu artigo no mais recente livro de "As Letras entre as Artes".
Em 7 de Maio de 1959, fez há dias
sessenta anos, Charles Percy Snow inglês
(1905-1980), o químico, romancista, político e intelectual público inglês mais
conhecido pelo nome abreviado C. P. Snow, proferiu em Cambridge, Inglaterra,
uma conferência que ficou famosa que se inseria no quadro das Rede ou Sir
Robert Rede Lectures (o patrocinador foi um chefe da justiça inglês nos séculos
XV e XVI). O título foi “As Duas
Culturas” e o texto foi rapidamente impresso, tendo conhecida ampla circulação
tanto no Reino Unido como no mundo todo.
Em Portugal saiu uma edição desse livro nas Publicações Dom Quixote,
fundadas pela dinamarquesa Snu Abecassis, em 1965, tendo um dos primeiros livros do prelo desta
editora uma vez que foi publicado em Agosto desse ano, quando o início da
atividade daquela editora foi em Abril. Inclui um pós-escrito do autor, “Um
segundo relance”, escrito quatro anos depois, assim como um texto de uma outra
conferência realizada na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos,
intitulado “Ciência e governo”. Possuo essa edição, traduzida por Idalina Pina
Amaro, que foi o número um da colecção “Vector” e que só se pode encontrar nos
alfarrabistas. Em 1996, saiu uma outra edição na editora Presença, traduzida
por Miguel Serras Pereira, que contém uma ampla introdução. Julgo que ainda se
pode encontrar nas livrarias.
É desta última edição que
transcrevo a expressiva defesa que Snow
faz do seu ponto principal, que foi o pomo de uma enorme polémica, que é a
manifesta limitação do que apelida “cultura tradicional”, ligada às
humanidades, num mundo largamente dominado pela ciência e pela técnica (circunstância
que já era clara no final da década de 60 com o lançamento do Sputnik):
“As pessoas são também limitadas
– e talvez mais gravemente, uma vez que mostram um grande orgulho nas suas
limitações. Gostam de continuar a sustentar que a cultura tradicional é a
totalidade da cultura, como se a ordem natural não existisse. Como se a
investigação da ordem natural não fosse interessante, nem enquanto valor
autónomo nem pelas suas consequências. Como se a construção científica do mundo
físico não fosse, na sua profundidade intelectual, na sua complexidade e
articulação, a mais bela e prodigiosa obra colectiva do espírito do homem. E,
contudo, a maior parte dos não cientistas não faz a mínima ideia do que seja
essa construção. Ainda que a queiram compreender, não são capazes. Tudo se
passa, em larga medida, como se, para uma extensão imensa da experiência
intelectual, pertencessem a um grupo destituído de ouvido. Mas esta falta de
ouvido não é um efeito da natureza, resulta da sua formação, ou antes, da sua
falta de formação.”
Logo a seguir Snow deixa a sua invectiva
aos homens de letras onde remete para a Segunda Lei da Termodinâmica, ou Lei da
Entropia (a entropia é a grandeza física que expressa o grau de desordem de um
sistema, sendo a única que permite distinguir o futuro do passado, pois nunm
sistema isolado nunca diminui):
“Como acontece a quem tem falta
de ouvido, os não cientistas não sabem o que perdem. Soltam uma exclamação de
dó ao ouvirem falar de cientista que nunca leram uma grande obra de literatura
inglesa. Desprezam- -nos, considerando-os especialistas ignorantes. Mas a sua
própria ignorância e o seu próprio grau de especialização são também
alarmantes. Estive muitas vezes em reuniões de pessoas que, pelos critérios da
cultura tradicional, eram altamente instruídas e que expressavam com uma complacência
notável a sua incredibilidade relativamente à ignorância dos cientistas. Numa
ou duas ocasiões semelhantes, senti-me provocado e perguntei aos circunstantes
quantos de entre eles saberiam dizer o que era a Segunda Lei da Termodinâmica.
A resposta era fria: e negativa, também. Mas o que estava a perguntar
equivalia, do ponto de vista científico, a esta outra pergunta: Leu alguma
coisa de Shakespeare? Hoje penso que, mesmo que tivesse feito uma pergunta
ainda mais simples – como, por exemplo: o que entende Você por massa, ou por
aceleração? - que equivale, em termos científicos, à pergunta - Sabe ler? – só
uma em cada dez dessas pessoas altamente instruídas compreenderia o meu inglês.
É assim que, perante o grande edifício da física moderna, a maior parte das
pessoas mais inteligentes do mundo ocidental demonstra uma compreensão que não
ultrapassa a que seria acessível aos seus antepassados neolíticos. “
Snow chama, portanto, a atenção
para a necessidade de integração da ciência e da tecnologia para a cultura, realçando
que no Reino Unido, ao contrário de outros países, a escola não estava a
proporcionar uma cultura integral do indivíduo. Foi provocador de um modo talvez
excessivo, pelo que não admira que a sua palestra tenha feito correr rios de
tinta. No texto intitulado ”Um segundo relance”, Snow recuou um pouco em
relação à sua posição anterior que enfatizava a separação das duas culturas, ao
referir a possibilidade de uma aproximação recíproca no que se poderia chamar
uma “terceira cultura”. Ao analisar a polémica provocada pelo seu primeiro escrito,
fez questão de notar que não estava
sozinho e que nem era o primeiro a dizer o que tinha dito sobre a separação das
duas culturas. De facto, outros autores tinham apontado antes dele a questão de
valorizar a ciência no quadro da cultura humana. Em particular, referiu um seu
contemporâneo, o matemático polaco-britânico, de origem judaica, Jacob
Bronowski (1908-1974), que, tal como Snow, fez carreira na administração
pública e que, também tal como ele, alcançou uma posição destacada no espaço
público da discussão intelectual.
Hoje, a necessidade da aproximação
entre as duas culturas continua na ordem do dia. A separação entre o mundo das
letras e artes, por um lado, e o mundo
das ciências e das técnicas, por outro, continua demasiado nítida. Há poucos
anos, o editor americano John Brockman falou também da necessidade de uma “terceira
cultura”, onde as ciências seriam mais valorizadas. Mas, para ultrapassar a
questão das “duas culturas”, não penso que precisemos de uma terceira cultura,
temos simplesmente que as unir. Se
analisarmos bem a questão, concluiremos que há só uma cultura e que as “duas
culturas” são apenas aspectos diferentes dela. É mais o que as une do que
aquilo que as separa. Temos de prosseguir na via da aproximação encetada por
Snow e Bronowski.
1 comentário:
As culturas só se tornam problema quando complicam em vez de simplificarem e ajudarem. Há culturas boas e culturas más. A cultura de cannabis, por enquanto, é considerada má. A cultura científica é boa. A cultura supõe uma experiência e aprendizagens direcionadas a fins que, na economia dos sistemas biológicos, químicos, implicam energias, o que. só por si, estaria explicado, científicamente, sem necessidade de justificação moral, ética, religiosa, humana, existencial.
Do ponto de vista da cultura científica, as coisas, sendo o que são, nem são boas nem más.
Mas, do ponto de vista da cultura artística, por exemplo, isso é irrelevante.
Do ponto de vista religioso, por exemplo, isso pode ser insustentável.
Do ponto de vista filosófico, por exemplo, as coisas serem o que são tem tanta relevância como poderem ser diferentes ou não serem por não terem de ser.
Do ponto de vista literário, por exemplo, as coisas não têm de ser como são.
Nenhum dos pontos de vista referidos, e haveria outros, tem de ser desvalorizado ou valorizado de acordo com uma escala hierárquica de valor. Mas o não ter de ser não que significa que seja. E aqui entra a cultura dos valores, que também não têm de ser como são.
Nenhuma cultura, alguma vez, em nome do que quer que seja, deixará de ser instrumental relativamente ao homem, por mais que o homem seja instrumentalizado. Porque ser vencido não significa ficar convencido e, por mais instrumentalizado que o homem seja, não acredito que o aceite livremente.
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