segunda-feira, 27 de maio de 2019

AS DUAS CULTURAS REVISITADAS


Meu artigo no mais recente livro de "As Letras entre as Artes".



Em 7 de Maio de 1959, fez há dias sessenta anos,  Charles Percy Snow inglês (1905-1980), o químico, romancista, político e intelectual público inglês mais conhecido pelo nome abreviado C. P. Snow, proferiu em Cambridge, Inglaterra, uma conferência que ficou famosa que se inseria no quadro das Rede ou Sir Robert Rede Lectures (o patrocinador foi um chefe da justiça inglês nos séculos XV e XVI). O título  foi “As Duas Culturas” e o texto foi rapidamente impresso, tendo conhecida ampla circulação tanto no Reino Unido como no mundo todo.  Em Portugal saiu uma edição desse livro nas Publicações Dom Quixote, fundadas pela dinamarquesa Snu Abecassis, em 1965, tendo  um dos primeiros livros do prelo desta editora uma vez que foi publicado em Agosto desse ano, quando o início da atividade daquela editora foi em Abril. Inclui um pós-escrito do autor, “Um segundo relance”, escrito quatro anos depois, assim como um texto de uma outra conferência realizada na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, intitulado “Ciência e governo”. Possuo essa edição, traduzida por Idalina Pina Amaro, que foi o número um da colecção “Vector” e que só se pode encontrar nos alfarrabistas. Em 1996, saiu uma outra edição na editora Presença, traduzida por Miguel Serras Pereira, que contém uma ampla introdução. Julgo que ainda se pode encontrar nas livrarias.

É desta última edição que transcrevo  a expressiva defesa que Snow faz do seu ponto principal, que foi o pomo de uma enorme polémica, que é a manifesta limitação do que apelida “cultura tradicional”, ligada às humanidades, num mundo largamente dominado pela ciência e pela técnica (circunstância que já era clara no final da década de 60 com o lançamento do Sputnik):

“As pessoas são também limitadas – e talvez mais gravemente, uma vez que mostram um grande orgulho nas suas limitações. Gostam de continuar a sustentar que a cultura tradicional é a totalidade da cultura, como se a ordem natural não existisse. Como se a investigação da ordem natural não fosse interessante, nem enquanto valor autónomo nem pelas suas consequências. Como se a construção científica do mundo físico não fosse, na sua profundidade intelectual, na sua complexidade e articulação, a mais bela e prodigiosa obra colectiva do espírito do homem. E, contudo, a maior parte dos não cientistas não faz a mínima ideia do que seja essa construção. Ainda que a queiram compreender, não são capazes. Tudo se passa, em larga medida, como se, para uma extensão imensa da experiência intelectual, pertencessem a um grupo destituído de ouvido. Mas esta falta de ouvido não é um efeito da natureza, resulta da sua formação, ou antes, da sua falta de formação.”

Logo a seguir Snow deixa a sua invectiva aos homens de letras onde remete para a Segunda Lei da Termodinâmica, ou Lei da Entropia (a entropia é a grandeza física que expressa o grau de desordem de um sistema, sendo a única que permite distinguir o futuro do passado, pois nunm sistema isolado nunca diminui):

“Como acontece a quem tem falta de ouvido, os não cientistas não sabem o que perdem. Soltam uma exclamação de dó ao ouvirem falar de cientista que nunca leram uma grande obra de literatura inglesa. Desprezam- -nos, considerando-os especialistas ignorantes. Mas a sua própria ignorância e o seu próprio grau de especialização são também alarmantes. Estive muitas vezes em reuniões de pessoas que, pelos critérios da cultura tradicional, eram altamente instruídas e que expressavam com uma complacência notável a sua incredibilidade relativamente à ignorância dos cientistas. Numa ou duas ocasiões semelhantes, senti-me provocado e perguntei aos circunstantes quantos de entre eles saberiam dizer o que era a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta era fria: e negativa, também. Mas o que estava a perguntar equivalia, do ponto de vista científico, a esta outra pergunta: Leu alguma coisa de Shakespeare? Hoje penso que, mesmo que tivesse feito uma pergunta ainda mais simples – como, por exemplo: o que entende Você por massa, ou por aceleração? - que equivale, em termos científicos, à pergunta - Sabe ler? – só uma em cada dez dessas pessoas altamente instruídas compreenderia o meu inglês. É assim que, perante o grande edifício da física moderna, a maior parte das pessoas mais inteligentes do mundo ocidental demonstra uma compreensão que não ultrapassa a que seria acessível aos seus antepassados neolíticos. “

Snow chama, portanto, a atenção para a necessidade de integração da ciência e da tecnologia para a cultura, realçando que no Reino Unido, ao contrário de outros países, a escola não estava a proporcionar uma cultura integral do indivíduo. Foi provocador de um modo talvez excessivo, pelo que não admira que a sua palestra tenha feito correr rios de tinta. No texto intitulado ”Um segundo relance”, Snow recuou um pouco em relação à sua posição anterior que enfatizava a separação das duas culturas, ao referir a possibilidade de uma aproximação recíproca no que se poderia chamar uma “terceira cultura”. Ao analisar a polémica provocada pelo seu primeiro escrito, fez questão de  notar que não estava sozinho e que nem era o primeiro a dizer o que tinha dito sobre a separação das duas culturas. De facto, outros autores tinham apontado antes dele a questão de valorizar a ciência no quadro da cultura humana. Em particular, referiu um seu contemporâneo, o matemático polaco-britânico, de origem judaica, Jacob Bronowski (1908-1974), que, tal como Snow, fez carreira na administração pública e que, também tal como ele, alcançou uma posição destacada no espaço público da discussão intelectual.

Hoje, a necessidade da aproximação entre as duas culturas continua na ordem do dia. A separação entre o mundo das letras e artes, por um lado, e  o mundo das ciências e das técnicas, por outro, continua demasiado nítida. Há poucos anos, o editor americano John Brockman  falou também da necessidade de uma “terceira cultura”, onde as ciências seriam mais valorizadas. Mas, para ultrapassar a questão das “duas culturas”, não penso que precisemos de uma terceira cultura, temos simplesmente que as unir.  Se analisarmos bem a questão, concluiremos que há só uma cultura e que as “duas culturas” são apenas aspectos diferentes dela. É mais o que as une do que aquilo que as separa. Temos de prosseguir na via da aproximação encetada por Snow e Bronowski.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

As culturas só se tornam problema quando complicam em vez de simplificarem e ajudarem. Há culturas boas e culturas más. A cultura de cannabis, por enquanto, é considerada má. A cultura científica é boa. A cultura supõe uma experiência e aprendizagens direcionadas a fins que, na economia dos sistemas biológicos, químicos, implicam energias, o que. só por si, estaria explicado, científicamente, sem necessidade de justificação moral, ética, religiosa, humana, existencial.
Do ponto de vista da cultura científica, as coisas, sendo o que são, nem são boas nem más.
Mas, do ponto de vista da cultura artística, por exemplo, isso é irrelevante.
Do ponto de vista religioso, por exemplo, isso pode ser insustentável.
Do ponto de vista filosófico, por exemplo, as coisas serem o que são tem tanta relevância como poderem ser diferentes ou não serem por não terem de ser.
Do ponto de vista literário, por exemplo, as coisas não têm de ser como são.
Nenhum dos pontos de vista referidos, e haveria outros, tem de ser desvalorizado ou valorizado de acordo com uma escala hierárquica de valor. Mas o não ter de ser não que significa que seja. E aqui entra a cultura dos valores, que também não têm de ser como são.
Nenhuma cultura, alguma vez, em nome do que quer que seja, deixará de ser instrumental relativamente ao homem, por mais que o homem seja instrumentalizado. Porque ser vencido não significa ficar convencido e, por mais instrumentalizado que o homem seja, não acredito que o aceite livremente.

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...