Meu prefácio a um livro de humor que está quase, quase a sair na Gradiva:
Assim como no humor há
alguns temas de eleição - anedotas
políticas,
profissionais, étnicas, sexistas, etc.- , também há vários estilos de piadas ou anedotas - as de
pergunta-resposta, de trocadilho, de humor negro, as picantes ou sujas, as
secas, entre outras. Uma piada diz-se seca quando o humor não é imediato, pelo menos para toda a gente, isto é,
quando um interlocutor pode ripostar: “essa foi mesmo seca.” Os estilos podem
sobrepor-se, pelo que uma piada seca pode ser de pergunta-resposta, de
trocadilho, de humor negro, picante, etc. Um dos elementos mais característicos da piada é o efeito de surpresa: o final (punch line) deve ser inesperado, correspondendo à frustração de uma expectativa, a uma qualquer incongruência, a um desafio às regras da lógica (nonsense). Rimo-nos de uma anedota precisamente por causa
deste efeito de surpresa, embora seja muito curioso que nos voltemos a rir
mesmo quando já conhecemos o fim. Nas piadas secas rimo-nos às vezes por simpatia para com
o outro, o autor ou o contador, pois nem sempre nos apercebemos logo onde está a piada.
A relação das anedotas com a ciência é mais íntima
do que normalmente se imagina. Em primeiro lugar, é um facto que a ciência
tem estudado o humor. Sigmund Freud publicou em 1905 (o mesmo ano em que
Einstein propôs a teoria da relatividade restrita) uma obra intitulada As Anedotas e a
sua relação com o inconsciente, da qual há tradução brasileira (Imago, 1996), na qual se analisava e procurava classificar
o humor (mais tarde Einstein e Freud haveriam de se tornar amigos e até de escrever um livro em conjunto). Para o médico austríaco as piadas dividiam-se simplesmente em dois
grupos: as “ingénuas”, que consistem em meros jogos de palavras (os trocadilhos), e as “preconceituosas,” que partem de posições de
acantonamento (as anedotas étnicas e as sexistas são-no em geral). As modernas neurociências estudam as razões e os mecanismos do riso, estando a chegar à conclusão de que o antigo provérbio “rir faz bem à saúde” está certo. Com
efeito, no processo do riso libertam-se no cérebro
endorfinas, hormonas que produzem sensações de bem-estar. É também um facto que há imensas piadas sobre ciência e
cientistas, algumas delas verdadeiras ou pelo menos com um fundo de verdade
(anedota significa originalmente um caso curioso, que é pouco
conhecido). Mas há uma relação ainda mais profunda entre ciência e
humor, que foi justamente enfatizada pelo matemático americano John Allen Paulos, no seu livro Mathematics
and Humour (The University of Chicago Press, 1980). E já agora essa relação
estende-se à arte, em particular à poesia. Em
todas essas actividades ocorre um processo criativo, entendendo-se por criação
a revelação de uma relação que estava oculta. O escritor húngaro emigrado para o Reino
Unido Arthur Koestler, que foi admirador da ciência e autor de um magnífico descrição da história da cosmologia (The Sleepwalkers, Hutchinson, 1959), escreveu no seu
livro The Act of Creation (Hutchinson 1964) sobre a relação entre humor, ciência e poesia: “O padrão lógico de processo
criativo é o mesmo nos três
casos: consiste na descoberta de semelhanças escondidas. Mas o clima emocional é diferente… o paralelo cómico tem um toque de agressividade; o raciocínio por analogia do
cientista está isento de emoção, quer dizer, é neutro; a imagem poética é empática ou admirativa, inspirada por um tipo positivo de emoção.” Segundo a teoria do humor de Koestler (outros grandes
autores propuseram teorias do humor, como o alemão Arthur Schopenhauer, o inglês
Herbert Spencer e o francês Henri Bergson), o riso é uma
descarga de energia devido à verificação de incompatibilidade entre dois sistemas de referência
bem distintos. É curioso o seu uso da linguagem da física: “um
sistema, devido à sua maior quantidade de movimento, é incapaz de realizar um desvio súbito de ideias para um tipo diferente de lógica ou para uma nova
regra do jogo; mais ágil do que se pensava tende a persistir… e encontra a sua solução no riso.” As piadas são secas quando não se vê logo o paralelo
escondido que acaba de ser revelado por uma associação muito rápida e inesperada.
As piadas secas estão na moda, em Portugal como
noutros países. Mas faltava-nos entre nós (as piadas têm uma
componente cultural muito ligada à língua,
sendo muitas delas intraduzíveis) um livro contendo piadas secas sobre temas
de ciência. Este é o livro! O autor, João Barbosa,
é professor de física e também filósofo
da ciência, com uma tese de doutoramento sobre o sucesso
do modelo do Big Bang da evolução do
Universo, para além de ser escritor de literatura infantil e poeta. Ele tem, conforme o
leitor poderá em breve verificar, um domínio das palavras e um sentido de humor refinado.
As suas 202 piadas secas, ou, como ele diz para se defender (o humor é sempre uma defesa), “secas, infrassecas e microssecas”, têm piada
mesmo quando à primeira vista parecem não ter piada nenhuma.
Estas piadas secas, nas suas distintas variantes de secura, divididas por vários temas de ciência, incluindo o tema dos extraterrestres que, apesar de ainda não terem
sido encontrados, surgem cada vez mais como um tópico científico, são, na sua maioria, do tipo de jogos de palavras,
a maior parte dos quais só funcionam na língua portuguesa. Mas, se há ciência em Portugal, uma ciência
que a Gradiva tem abundante e exemplarmente divulgado, também há entre nós humor baseado na ciência.
Basta lembrar-nos dos “Cientistas de pé”, o grupo de stand up comedy sobre temas de
ciência que o criativo bioquímico David Marçal liderou e que deu origem ao livro Toda a Ciência (menos as partes chatas) (Gradiva, 2013), ou do programa da SIC Isto é Matemática, cujo guião acaba de sair em forma de livro (Texto, 2018),
escrito por um matemático bem disposto, Rogério Martins, e por um guionista com uma irreprimível tendência para o humor, o Tiago DaCunha Caetano. A ciência
pode ser uma coisa séria, mas podemos e até devemos
brincar com coisas sérias. Quando se brinca com ela, a ciência fica inevitavelmente divertida, portanto mais acessível.
Os jogos de palavras que nos fazem rir são coisas
sérias. O já referido matemático John
Allen Paulos, no seu livro Penso,
logo rio. Uma abordagem alternativa da filosofia (Inquérito, 1992), faz uma associação
entre o filósofo da linguagem austríaco naturalizado britânico Ludwig Wittgenstein e o matemático e escritor inglês, autor de Alice no Pais das Maravilhas (o original é de 1865), Lewis Carroll.
O que têm os dois em comum? Pois é o
gosto pelos jogos de palavras, o interesse com o absurdo que a linguagem
proporciona. A diferença
entre Wittgenstein e Carroll era que
o primeiro viveu atormentado com os problemas da linguagem ao passo que o
segundo se mostrava muito divertido no uso da linguagem. Salvaguardadas as
devidas distâncias, João Barbosa revela-se neste livro uma mistura de Wittgenstein e
Carroll. Ora descobrimos Wittgenstein, numa análise mais profunda, ou então descobrimos Carroll,
numa vista mais superficial. Ou ficamos arreliados por não perceber ou ficamos
contentes por perceber. Ou uma mistura das duas coisas, quando não percebemos
bem se percebemos ou não.
O que é perceber uma piada? O que é que tem e o que é que não tem piada? As
piadas secas estão ali na fronteira entre um e outro território. O que é seco para uns será molhado para outros. O avaliador do humor – usando linguagem científica, o medidor do grau de humidade - é quem
ouve a piada e não quem a conta. Por mim, sorri e cheguei várias vezes a rir em voz
alta ao ler o manuscrito deste livro (quem estava perto poderá ter pensado que eu
estava a ficar maluco…), mas os leitores deste livro decidirão por si
próprios. Adivinho que irão sorrir,
havendo o sério risco de ficarem, como eu, a rir alto de vez
em quando (é bom que se assegurem que não está ninguém perto que possa duvidar do vosso estado mental).
De uma coisa estou certo, porque é ciência: se sorrirem ou rirem será decerto bom para a vossa
saúde.
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