Meu artigo na revista "Ter" do ISAVE (Amares):
Hoje em dia a inovação é uma
palavra que está constantemente a chegar aos nossos ouvidos. De facto, são as
inovações – entendida aqui como a novidade de base científico-técnica com
implicações sociais – que nos abrem a porta do futuro. Na área da saúde
estão a ocorrer algumas inovações
extraordinárias. Na minha visão, as mais extraordinárias estão a ocorrer na área da genómica, com a sequenciação completa
e a interpretação do genoma humano. As implicações na prevenção, diagnóstico e
tratamento de doenças são enormes.
O genoma humano é a informação hereditária que
está contida no ADN dos seres vivos, em particular dos seres humanos. No
interior de cada uma das células, em particular as do nosso corpo, reside o “código
da vida apenas quatro letras, A, T, G e C, para designar
respectivamente a adenina, timina,
guanina e citosina, que são grupos
químicos genericamente chamados bases que se sucedem ao longo do ADN, ácido
desoxirribonucleico, uma molécula extensa com a forma de uma dupla hélice. O
ADN é conhecido há muito como substância química: foi descoberto pelo médico
suíço Friedrich Miescher (1844-1895) em 1871. No entanto, a descoberta da
estrutura em dupla hélice da respectiva molécula só veio a ser realizada foi
realizada em 1953 pelo físico inglês Francis Crick (1916-2004) e pelo biólogo norte-americano
James Watson (n. 1928), que receberam por esse feito o Nobel da Medicina em
1962. A estrutura entrelaçada foi revelada por observações de raios X, conhecidos
desde 1895 (talvez a maior contribuição que a Física deu à medicina). De facto,
os raios X permitem ver o interior de cristais, como aqueles que são formados
por moléculas de ADN bem empacotadas numa rede. A sequenciação ou decifração
das letras do ADN demorou um pouco: O bioquímico inglês Frederick Sanger
(1918-2013) foi o primeiro, em 1977, a sequenciar o ADN de um organismo simples, o
bacteriófago Phi X 174, que tem 5286 bases, agrupadas em 11 genes (genes são
agrupamentos de bases, que contêm a “receita”
de produção de proteínas, as “máquinas-ferramentas” da vida). Esse cientista
foi até hoje o único laureado com dois Prémios Nobel da Química: o segundo
foi-lhe dado em 1980 precisamente pela sequenciação do referido genoma (a
técnica de Sanger ainda hoje se usa). Veio somar-se ao primeiro, que lhe tinha
sido dado em 1958 pela revelação da estrutura de uma proteína, a insulina, com
base mais uma vez em observações de raios X. Quer a identificação do ADN, quer
da sua estrutura, quer a sua decifração foram grandes inovações na bioquímica
com implicações na medicina.
”, isto é, registo da nossa identidade biológica escrita com
Mas uma coisa é sequenciar um
microrganismo e outra é sequenciar o genoma humano. O Projecto do Genoma
Humano, um dos maiores empreendimentos científicos da nossa época, teve lugar
entre 1990 e 2003: o seu objectivo consistia em mapear todos os genes do ADN
humano e não apenas alguns em locais específicos. O empreendimento incluiu mais
de 5000 cientistas, de 250 laboratórios, de vários sítios do mundo. Concluiu
que os 23 cromossomas humanos continham cerca de três mil milhões pares de
bases, 20 000 genes (menos do que se pensava, há seres vivos com mais genes!),
com o total de 800 megabytes de informação, o que corresponde mais ou menos à
capacidade de um vulgar CD (do total menos de 0,1 por cento é verdadeiramente
individual, podendo o resto ser considerado um padrão da espécie humana).
Tremendos desenvolvimentos na bioquímica
e na informática permitiram uma enorme queda do preço da sequenciação genómica
(ver Figura), o que tem permitido aumentar o número de genomas disponíveis para
análise. De 1990 a 2007, na chamada 1.ª geração de sequenciação, o custo de um
genoma era de dez milhões de dólares, de 2007 a 2011 decorreu o tempo da 2.ª
geração, na qual o custo caiu para 5000 dólares. Finalmente desde 2014 vivemos na
3.ª geração, período no qual a sequenciação do genoma passou a custar menos de 1000
dólares. Hoje ela custa hoje cerca de 700 dólares (foi o custo aproximada da
sequenciação do meu genoma), sendo a meta actual
atingir o preço de cem dólares. Essa meta – uma inovação a coroar outras
– parece estar ao virar da esquina. Vai ter implicações na nossa saúde.
O projecto “1000 Genomas”
recolheu dados sobre a diversidade genética da humanidade. Somos diferentes, mas somos também iguais. Com
a decifração do genoma humano começou a
estudar-se relação entre genes e doenças ou, nalguns casos, a
predisposição para doenças. Se em certas doenças há uma relação inequívoca
entre mutações genéticas (alterações nas bases nas cópias que a célula faz ao
reproduzir-se) e enfermidades, noutros
casos, a maior parte e a mais interessante, só se pode falar de probabilidades.
Algumas variações genéticas em certos sítios proporcionam, ou pelo menos
favorecem, o desenvolvimento de algumas doenças, estando a literatura
científica a aumentar com nova informação sobre essas relações. As aplicações estão à vista. Por vezes a
informação genética pode medir a medidas radicais de prevenção: a actriz norte-americana
Angelina Jolie fez uma mastectomia total por ter uma probabilidade, baseada na
análise genómica, de uma probabilidade de 80% de ter cancro da mama. Uma das
aplicações mais promissoras dá pelo nome de farmacogenómica: a dose de alguns
fármacos deve ser adequada ao perfil genético de cada pessoa, pois cada indivíduo
metaboliza a um ritmo diferente do de outros Novas tecnologias, designadamente
na área da nanotecnologia, prometem baixar ainda mais o preço da sequenciação e
assim permitir a acesso a este tipo de tecnologia por parte de mais pessoas.
Tais tecnologias somam-se a avanços na área do software, que permitem tratar
grandes quantidades de dados, recorrendo por exemplo à inteligência artificial.
A ideia consiste em aprender sobre a nossa saúde à medida que o tratamento de a
quantidade de dados avança.
Não é arriscada a previsão de que
a genómica desempenhará no futuro um papel muito maior do que hoje, quando se
estão a generalizar as análises genéticas. No futuro, as buscas devidamente
autorizadas a bases de dados, que contêm a informação genómica total de vários
indivíduos, deverão substituir os testes genéticos actuais, que se destinam a
obter informações sobre sítios precisos do genoma. A vantagem é que a
sequenciação completa se faz uma só vez, podendo vir a ser usada ao longo da
história clínicas das pessoas cuja informação está lá guardada. Os médicos tomarão decisões cada vez mais
ajudados por máquinas. Existem decerto questões éticas, legais, económicas e
políticas sobre a utilização de dados genómicos. Colocam-se hoje novas
questões, que têm necessariamente de ser informadas pela ética, relativas não
só ao uso de dados genéticos, mas também às possibilidades de edição genética. Com
efeito, recentemente um médico chinês anunciou que tinha usado uma nova
técnica, o CRISPR (do inglês Clustered Regularly
Interspaced Short Palindromic Repeats), para fazer um certo tipo de
melhoramento genético de embriões humanos, sem existir uma base legal para o
procedimento. Estas questões dizem
respeito a todos, não podendo ser deixadas a cientistas, engenheiros, gestores
ou políticos. São questões que têm de
ser decididas por todos. Convém por isso que a sociedade tenha acesso a
informação adequada.
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