sexta-feira, 24 de maio de 2019

Inovações na genómica



Meu artigo na revista "Ter" do ISAVE (Amares):

Hoje em dia a inovação é uma palavra que está constantemente a chegar aos nossos ouvidos. De facto, são as inovações – entendida aqui como a novidade de base científico-técnica com implicações sociais – que nos abrem a porta do futuro. Na área da saúde estão  a ocorrer algumas inovações extraordinárias. Na minha visão, as mais extraordinárias estão a ocorrer  na área da genómica, com a sequenciação completa e a interpretação do genoma humano. As implicações na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças são enormes.

 O genoma humano é a informação hereditária que está contida no ADN dos seres vivos, em particular dos seres humanos. No interior de cada uma das células, em particular as do nosso corpo, reside o “código da vida apenas quatro letras, A, T, G e C, para designar respectivamente  a adenina, timina, guanina e citosina,  que são grupos químicos genericamente chamados bases que se sucedem ao longo do ADN, ácido desoxirribonucleico, uma molécula extensa com a forma de uma dupla hélice. O ADN é conhecido há muito como substância química: foi descoberto pelo médico suíço Friedrich Miescher (1844-1895) em 1871. No entanto, a descoberta da estrutura em dupla hélice da respectiva molécula só veio a ser realizada foi realizada em 1953 pelo físico inglês Francis Crick (1916-2004) e pelo biólogo norte-americano James Watson (n. 1928), que receberam por esse feito o Nobel da Medicina em 1962. A estrutura entrelaçada foi revelada por observações de raios X, conhecidos desde 1895 (talvez a maior contribuição que a Física deu à medicina). De facto, os raios X permitem ver o interior de cristais, como aqueles que são formados por moléculas de ADN bem empacotadas numa rede. A sequenciação ou decifração das letras do ADN demorou um pouco: O bioquímico inglês Frederick Sanger (1918-2013) foi o primeiro, em   1977,  a sequenciar o ADN de um organismo simples, o bacteriófago Phi X 174, que tem 5286 bases, agrupadas em 11 genes (genes são agrupamentos de bases, que contêm a  “receita” de produção de proteínas, as “máquinas-ferramentas” da vida). Esse cientista foi até hoje o único laureado com dois Prémios Nobel da Química: o segundo foi-lhe dado em 1980 precisamente pela sequenciação do referido genoma (a técnica de Sanger ainda hoje se usa). Veio somar-se ao primeiro, que lhe tinha sido dado em 1958 pela revelação da estrutura de uma proteína, a insulina, com base mais uma vez em observações de raios X. Quer a identificação do ADN, quer da sua estrutura, quer a sua decifração foram grandes inovações na bioquímica com implicações na medicina.
”, isto é, registo da nossa identidade biológica escrita com

Mas uma coisa é sequenciar um microrganismo e outra é sequenciar o genoma humano. O Projecto do Genoma Humano, um dos maiores empreendimentos científicos da nossa época, teve lugar entre 1990 e 2003: o seu objectivo consistia em mapear todos os genes do ADN humano e não apenas alguns em locais específicos. O empreendimento incluiu mais de 5000 cientistas, de 250 laboratórios, de vários sítios do mundo. Concluiu que os 23 cromossomas humanos continham cerca de três mil milhões pares de bases, 20 000 genes (menos do que se pensava, há seres vivos com mais genes!), com o total de 800 megabytes de informação, o que corresponde mais ou menos à capacidade  de um vulgar CD (do  total menos de 0,1 por cento é verdadeiramente individual, podendo o resto ser considerado um padrão da espécie humana).

Tremendos desenvolvimentos na bioquímica e na informática permitiram uma enorme queda do preço da sequenciação genómica (ver Figura), o que tem permitido aumentar o número de genomas disponíveis para análise. De 1990 a 2007, na chamada 1.ª geração de sequenciação, o custo de um genoma era de dez milhões de dólares, de 2007 a 2011 decorreu o tempo da 2.ª geração, na qual o custo caiu para 5000 dólares. Finalmente desde 2014 vivemos na 3.ª geração, período no qual a sequenciação do genoma passou a custar menos de 1000 dólares. Hoje ela custa hoje cerca de 700 dólares (foi o custo aproximada da sequenciação do meu genoma), sendo a meta  actual  atingir o preço de cem dólares. Essa meta – uma inovação a coroar outras – parece estar ao virar da esquina. Vai ter implicações na nossa saúde.

O projecto “1000 Genomas” recolheu dados sobre a diversidade genética da humanidade.  Somos diferentes, mas somos também iguais. Com a decifração do genoma humano começou a  estudar-se relação entre genes e doenças ou, nalguns casos, a predisposição para doenças. Se em certas doenças há uma relação inequívoca entre mutações genéticas (alterações nas bases nas cópias que a célula faz ao reproduzir-se) e  enfermidades, noutros casos, a maior parte e a mais interessante, só se pode falar de probabilidades. Algumas variações genéticas em certos sítios proporcionam, ou pelo menos favorecem, o desenvolvimento de algumas doenças, estando a literatura científica a aumentar com nova informação sobre essas relações.  As aplicações estão à vista. Por vezes a informação genética pode medir a medidas radicais de prevenção: a actriz norte-americana Angelina Jolie fez uma mastectomia total por ter uma probabilidade, baseada na análise genómica, de uma probabilidade de 80% de ter cancro da mama. Uma das aplicações mais promissoras dá pelo nome de farmacogenómica: a dose de alguns fármacos deve ser adequada ao perfil genético de cada pessoa, pois cada indivíduo metaboliza a um ritmo diferente do de outros Novas tecnologias, designadamente na área da nanotecnologia, prometem baixar ainda mais o preço da sequenciação e assim permitir a acesso a este tipo de tecnologia por parte de mais pessoas. Tais tecnologias somam-se a avanços na área do software, que permitem tratar grandes quantidades de dados, recorrendo por exemplo à inteligência artificial. A ideia consiste em aprender sobre a nossa saúde à medida que o tratamento de a quantidade de dados avança.

Não é arriscada a previsão de que a genómica desempenhará no futuro um papel muito maior do que hoje, quando se estão a generalizar as análises genéticas. No futuro, as buscas devidamente autorizadas a bases de dados, que contêm a informação genómica total de vários indivíduos, deverão substituir os testes genéticos actuais, que se destinam a obter informações sobre sítios precisos do genoma. A vantagem é que a sequenciação completa se faz uma só vez, podendo vir a ser usada ao longo da história clínicas das pessoas cuja informação está lá guardada.  Os médicos tomarão decisões cada vez mais ajudados por máquinas. Existem decerto questões éticas, legais, económicas e políticas sobre a utilização de dados genómicos. Colocam-se hoje novas questões, que têm necessariamente de ser informadas pela ética, relativas não só ao uso de dados genéticos, mas também às possibilidades de edição genética. Com efeito, recentemente um médico chinês anunciou que tinha usado uma nova técnica, o CRISPR (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), para fazer um certo tipo de melhoramento genético de embriões humanos, sem existir uma base legal para o procedimento.  Estas questões dizem respeito a todos, não podendo ser deixadas a cientistas, engenheiros, gestores ou políticos. São questões que têm  de ser decididas por todos. Convém por isso que a sociedade tenha acesso a informação adequada.


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