sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Prefácio ao livro "Contos fantásticos e outros textos" de Albano Estrela

Meu prefácio ao livro "Contos fantásticos e outros textos", de Albano Estrela, edição recente da Colibri (aqui).

"Como é sabido no meio académico, Albano Estrela é um dos nomes mais sólidos e influentes na consolidação científica e institucional das Ciências da Educação em Portugal.

Mas não é desse Albano Estrela - investigador, professor, orientador e dinamizador de equipas em projetos de investigação, e com uma vastíssima obra publicada nessa área - que aqui  se fala, mas do Albano Estrela escritor.

A antologia que agora se apresenta é constituída por uma recolha de textos de cariz literário, que Albano Estrela foi escrevendo e publicando nos últimos vinte e cinco anos. São textos de temática muito variada: histórias pessoais e familiares, contos fantásticos, de desassossego e de morte, histórias insólitas, dramatizações de epifanias vividas por algumas personagens reais (Aristides de Sousa Mendes, Winston Churchill, Marcel Proust, Stefan Zweig, Friedrich Nietzsche, Mário de Sá Carneiro) crónicas de reformados, e ainda textos sobre educação e literatura.

São oito capítulos temáticos na base dos quais se organiza esta antologia, sendo certo que, por uma questão de extensão, se publicam agora, de cada tema, só alguns textos, procurando uma representação significativa do escritor Albano Estrela e da sua obra.

Como a simples enunciação dos temas dá a entender, a personalidade de Albano Estrela é muito rica, imaginosa, complexa e muito crítica, embora sempre cheia de humanidade. Homem culto, diletante, sem nunca deixar de sentir a dinâmica da vida e sua complexidade, a sua escrita atende a todos os sinais e a todas as situações que a vida lhe vai proporcionando.

A sua produção literária capta, por um lado, essa complexidade, frequentemente já em domínios do inconsciente e do irracional. E, por outro, amando a vida, o seu inesperado e picaresco, e para a apreciação e usufruição dos quais está sempre disponível, a sua literatura faz, de uma maneira muito pessoal, essa síntese bastante rara entre o sério, o misterioso e o jocoso.

odemos dizer até que algo desequilibrada, essa síntese, porque o que parece ser predominante nele é o lado lúdico e solar das vidas e das situações, sem deixar de traduzir muito da riqueza e do inesperado da condição humana, tanto no seu aspeto dramático com cómico.

Nestes termos, dir-se-ia que a obra de Albano Estrela balança entre a razão e a irracionalidade, entre o pensamento e a cultura, por um lado, e uma imaginação descontextualizada, inesperada e freudiana, por outro. A fileira pensamento – cultura - formação filosófica, está sempre subjacente e condicionando, não tanto a imaginação criadora mas sobretudo a escrita, que se mantém sempre na esfera da racionalidade lógica e sintática.

E até da necessidade de explicar e de fazer compreender, porventura influência da sua atividade profissional. Compreender, contudo, não só o outro mas talvez, e até prioritariamente, ele próprio, e suas divagações, que parece pretender inserir nas suas personagens, para vê-las atuar e poder receber delas um certo reflexo de si mesmo.

As novelas de Albano Estrela, sobretudo as de cariz fantástico e insólito, são, em geral, perturbantes: pelas ideias ponto de partida, pela trama, pela inversão de ideias e sentimentos a que frequentemente nos obrigam, e pela inverosimilhança que se vai tornando verosímil mediante a clareza da escrita e o desenrolar dos factos relatados.

Há nestes textos um misto de comicidade e de inesperado que lhe dão um cunho particular. Como já assinalámos, o seu espírito é simultaneamente crítico e divertido, às vezes quase verrinoso, mas nunca cruel e sempre profundamente humanista. As suas personagens, umas a partir de pessoas conhecidas, outras a partir de relatos, ou textos lidos, outras ainda inventadas, manifestam-se por um frémito de aventura, de heroísmo, ou de loucura, que lhes permite uma afirmação individualmente superadora. Mas que acaba frequentemente por não se concretizar, ou melhor, por serem dominadas e integradas pelo tom crítico e a claridade da sintaxe de que o autor se serve.

Daqui resulta uma espécie de non-sense coerente, porque a estrutura narrativa e a forma estilística utilizada os enquadra, e, de algum modo, os redime aos olhos do escritor. E aos nossos. Tipos com manias, tiques, atitudes insólitas, obsessões, são inseridos em esquemas organizados de discurso e ação, de que o narrador é testemunha, seduzido por esse estranho mundo mas não entrando nele, narrando-o com a objetividade possível. Albano Estrela diverte-se sem dúvida com muitas das suas personagens, mas encontrando sempre nelas uma profunda dimensão humana.

Por outro lado, a morte e o que estará para além dela, a relação alma – corpo, de tão grandes e antigas angústias religiosas e filosóficas, é passada para novelas onde o mais corrente dos cidadãos se assuma cúmplice vivencial dessa problemática eterna e, na sua simplicidade, pretende vivê-la para a compreender. Albano Estrela aborda estas angústias perenes e trata-as ao rés-da-terra, em personagens correntes, mas, por vezes, com algo de megalómano, em todo o caso de mitómano, através de seres que andam nas ruas e por quem passamos sem darmos por nada, mesmo que, através deles nos vejamos frequentemente ao espelho.

Não é a razão a analisar essas problemáticas, mas pessoas correntes em quem certo grão de loucura se manifesta vivenciando esses mistérios, como se encarnassem velhíssimas tradições e práticas, de que o racionalismo moderno anda afastado, e a pós modernidade esquece e até ridiculariza, mas que continuam a viver no mais fundo da nossa alma e afloram no dia-a-dia de quase todos, ou, pelo menos, em situações limite, quando as vivemos.

Mas Albano Estrela trata isto de fora, faltando-lhe eventualmente em dramaticidade o que sobra em descrição factual e relativização quotidiana. No fundo, passa para as personagens o assumir - nas atitudes, nas ideias e nas decisões - dum insólito que o homem atual reprime desesperadamente até à negação, mas de que a literatura precisa de continuar a dar conta. Nesta perspetiva, as suas novelas e contos, por muito insólitos que sejam, adquirem uma frontalidade e uma normalidade desarmante, que talvez o não fosse noutras épocas, mas que o será na nossa, daí grande parte do seu interesse.

Poderá talvez dizer-se que o sentido crítico e a formação racional de Albano Estrela não lhe permitem ir mais longe, o que não apaga, antes realça, o desejo de conhecer essas paragens, a atenção aos seus sinais, e ainda uma sensibilidade ao mistério, ao obscuro, que enforma toda a nossa cultura e muita da sua espiritualidade. Uma tendência recorrente para o espiritual e o misterioso, uma sensibilidade a esses temas como quem retoma uma transcendência que recebeu com a religião e que Deus, ao afastar-se por via do racionalismo, deixou para trás como poças de água turva esquecidas pelas cheias. Em suma, um mistério que nos envolve, que passa para dentro da pessoa e parece transformá-la, projetando para o exterior uma realidade transfigurada e trespassada de um eu que se reproblematiza, ganhando uma calma e uma espécie de clarividência não longe da fundamentação filosófica.

Neste sentido, estes textos são, sobretudo, abertura ao mistério e esperança de o desvendar. Como alguém que tenta conciliar duas pessoas numa, ou os dois lados da mesma pessoa. Não resolve o problema mas não o consegue evitar; não se reconhece numa dupla personalidade, mas sente-a rodeando-o, tentando-o.

É, no fundo e talvez mais simplesmente, a imaginação do artista a trabalhar: a imaginação transplanta para a ficção a preocupação metafísica de um ser que se confronta com a duplicidade de um eu uno e duplo. Essa confrontação de eus é feita de deslocações exteriorizadas da pessoa, de almas que se encontram e dispersam, mas que o autor domina pela simples descrição objetiva dos episódios.

Talvez se possa falar num clássico desassossegado pela psicanálise, a psicologia das profundidades, e a desconstrução pós moderna. Mas na ideia, na temática, e não na forma, como se disse, que revela sempre uma coloquialidade e um gosto pela narração que nunca deixa de o apoiar, digamos assim, e ajudando, obviamente, os leitores.

Mas a obra de Albano Estrela tem outras dimensões. Nas histórias pessoais e de família, e em certas crónicas, aparece frequentemente o Porto da infância e juventude do autor, e uma época – o Portugal da primeira metade do século XX – de que nos dá verdadeiros quadros psicológicos, sociais e morais.
As epifanias sobre certos momentos dramáticos de algumas personalidades célebres constituem um curioso e original processo de entrar nessas personalidades, tentando apanhá-las em momentos muito dramáticos da sua vida. E dos quais resultaram consequências importantes para o futuro.

Todos os momentos da nossa vida podem ser determinantes, é certo, mas nem sempre damos conta disso. É perturbante perceber que, em certos casos e com certas pessoas, esses momentos foram de grande angústia e tiveram consequências na vida de inúmeras pessoas. E, em certos casos, bem dramáticas.

Nas histórias de reformados voltam a aparecer muitos dos problemas anteriores, mas distribuídos por vários tipos e histórias, como se cada uma representasse um problema, real ou possível, da terceira idade. Aqui, as personagens e as situações oscilam entre o caricato, a glória perdida, as ilusões desfeitas, a usufruição da vida sem ter de dar contas a ninguém, e até a própria indecisão que não se consegue ultrapassar, porque decidir implica perder a liberdade; e como a liberdade é o bem mais precioso e pela qual tanto se ansiou, mais vale não decidir, e ter a liberdade como possibilidade, do que concretizá-la numa decisão e perdê-la. Haverá melhor maneira que esta para sintetizar o grande problema dos reformados?

Os textos sobre educação e literatura são mais situações ou leituras onde o humano simplesmente humano, e o seu inesperado, se revela, que propriamente textos doutrinários sobre educação e literatura, que têm um outro e vasto campo na obra de Albano Estrela. Mas, também aqui, a personalidade do autor – perspicaz, divertida e bondosa – se manifesta, pois que ele humaniza tudo em que toca."
João Boavida
Coimbra, Maio de 2018

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