Minha crónica no Público de hoje (na imagem a praia do Porto Santo):
“Já chegámos à Madeira” foi a frase que João Gonçalves Zarco
e Tristão Vaz Teixeira, escudeiros do infante D. Henrique, podiam ter dito
quando chegaram ao Porto Santo, a ilha do arquipélago da Madeira mais próxima da costa africana, em 1419 ou em 1420. Não devem, porém, ter dito. Trata-se de uma das
expressões idiomáticas em que
a língua portuguesa é fértil, usando-se normalmente como
uma interrogação e em tom indignado. Talvez remonte a 1807, ano em que os
ingleses se apossaram da ilha, no contexto da Guerra Peninsular.
No passado dia 1 de Novembro foi o
presidente Marcelo Rebelo de Sousa que chegou à Madeira, ou, mais precisamente, na senda de Zarco e Teixeira, ao
Porto Santo, para dar início às
comemorações dos 600 anos da descoberta do arquipélago. Marcelo falou
do “começo de uma saga,”
inaugurou uma estátua henriquina e tirou as selfies do costume. Seis séculos é um número que vale a pena assinalar, sendo de somenos que essa data específica não tenha
sustentação histórica, tal como não tem
sequer o ano de 1418 que está na Wikipedia (a Comissão encarregue das
celebrações foi prudente ao estender a festa do 6.º centenário até 2020).
Não se sabe ao certo quando é que chegámos à Madeira. Uma das fontes mais antigas é a Crónica da Guiné de Gomes Eanes de Zurara, um
manuscrito descoberto na Biblioteca Nacional de França em meados do século XIX (saiu há pouco uma edição
moderna nas Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, Círculo de Leitores).
Acontece que esta crónica,
toda ela um panegírico ao famoso infante, foi concluída em 1453, mais de três décadas após a chegada lusa. E, embora ela date
de 1420 o início do povoamento da ilha da Madeira, não é precisa quanto à chegada
ao Porto Santo. Conta que “dois
escudeiros nobres (…) depois da vinda que o infante fez do descerco de Ceuta
(…) requereram que os aviasse como pudessem fazer de suas honras, como homens
que muito o desejavam, parecendo-lhes que o seu tempo era mal despeso se não
trabalhassem alguma coisa por seus corpos.” Em linguagem actual, queriam fazer
feitos de valor. Como o dito descerco foi em Outubro de 1419, o pedido terá sido feito nesse ano ou
no seguinte. Foi provido: “E
vendo o infante suas boas vontades, lhes mandou aparelhar uma barca em que
fossem de armada contra os mouros, encaminhando-os como fossem em busca de
terra de Guiné.” Não havia mouros em Porto Santo, mas “com tempo contrário chegaram à ilha,” talvez ao extenso areal
dourado que hoje é fruído
pelos veraneantes. Do Porto Santo vê-se
a ilha da Madeira, mas, segundo Zurara, só lá foram na viagem
seguinte na companhia de Bartolomeu Perestrelo, um fidalgo de ascendência
italiana da casa do infante D. João (Cristóvão Colombo haveria, por volta de 1479, de casar com uma filha
de Perestrelo, Filipa Moniz, de quem teve um filho que lhe sucedeu como
vice-rei e governador das Índias de Castela).
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