quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Ciência e tecnologia / Humanidades



Criatividade parece ser, nos últimos tempos, a palavra mágica para a reestruturação do curriculum escolar. Ao mesmo tempo, assiste-se, nas últimas décadas, a um quase desprezo pelas humanidades, área dedicada a estudos que são considerados inúteis porque não oferecem aptidões imediatas para o mundo empresarial, esse mesmo mundo que tanto precisa de criatividade.

Edward O. Wilson, biólogo, professor emérito da Universidade de Harvard, apresenta-nos, em Homo Creator, uma interessantíssima e acessível análise sobre a espécie humana, sobre os inícios da criatividade e daquilo que o Homem pode fazer com ela, para o bem e para o mal. 

Aí fala também da relação entre as Humanidades e as Ciências e Tecnologias, defendendo uma relação mais estreita entre elas, pois só assim poderemos contribuir para um melhor conhecimento do homem na sua relação com o os outros e com a natureza.

Um extracto da sua análise:


A humanidade é uma espécie quimérica. A base fisiológica dos nossos sentidos e emoções permanece a mesma dos nossos antepassados símios. A nossa capacidade para as artes criativas — linguagem narrativa, dança, música, imagens — data de antes da rutura africana há mais de sessenta mil anos. Tudo o resto mudou. A ciência e a tecnologia estão a duplicar a cada dez ou vinte anos. Abordam tudo o que existe no Universo, todo o espaço e tempo e tudo na Terra, e em todos os sistemas de estrelas e exoplanetas imagináveis. As humanidades, por outro lado, dedicam-se apenas às pessoas.

Aí reside o dilema das humanidades. Espera-se que elas, e com elas uma grande parte da educação liberal, descrevam e expliquem a essência de um mundo social de emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologia divina, sem nenhuma ideia clara de significado ou propósito. Na busca de um significado, a ciência e a tecnologia têm papéis distintos das humanidades. A ciência (com a tecnologia) diz-nos aquilo que é necessário para irmos onde quisermos, e as humanidades dizem-nos onde ir com o que quer que a ciência produza. Onde a ciência criou novas formas de intelecto e um grande poder material, as humanidades abordaram as questões da estética e do valor ou da ausência de valor, levantadas sobretudo pelas implacáveis energias stakhanovitas da ciência.

O empreendimento humano tem sido dominar a Terra e tudo o que nela existe, permanecendo limitado por um enxame de nações concorrentes, religiões organizadas e outras coletividades egoístas, a maioria das quais é cega ao bem comum da espécie e do planeta. As humanidades podem por si mesmas corrigir essa imperfeição. Estando centradas na estética e no valor, têm o poder de desviar a trajetória moral para um novo modo de raciocínio, que englobe o conhecimento científico e tecnológico.

Para cumprir este papel, as humanidades irão precisar de se misturar com a ciência, porque o novo modo depende acima de tudo de uma autocompreensão da nossa espécie, que não pode ser obtida sem investigação científica objetiva. Tal como a luz do Sol e a luz do fogo que orientaram o nosso nascimento, precisamos que as humanidades e a ciência se unam para elaborar uma imagem completa e honesta daquilo que realmente somos e daquilo em que nos podemos transformar. Essa conjugação é o alicerce potencial do intelecto humano.



Isaltina Martins

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

As humanidades e a ciência não estão separadas. Falar em humanidades não pode fazer esquecer as ciências do homem e as ciências da vida, nem a riqueza das línguas e literaturas, das artes, da música à pintura, passando pelos desportos, das filosofias, da antropologia, da psicologia, da demografia, da sociologia, da ciência política, do direito, da justiça, da história, da gastronomia e, porque não?, das religiões...
Falar em humanidades, sem mais, normalmente corresponde a apagar a luz do quarto para dormir. Mas as humanidades, tal com a esperança, serão a última coisa a morrer e as ciências humanas ainda agora iniciaram o seu percurso, a sonhar, de mão dada, ora pelas ciências da vida e da Terra, ora pela estatística, ora pela genética, pela psicologia...
As humanidades são a expressão da humanidade, ela própria, no seu espectáculo ímpar e pluridimensional, por causa e apesar da ciência, com mais ou menos ciência, sempre do lado da ciência, mas antes e depois da ciência, porque o homem é anterior à ciência, e não apenas à ciência "stricto sensu", com hipóteses de lhe sobreviver, mas não de esta a ele.
As humanidades e as ciências do homem não criaram o homem nem o substituem em circunstância alguma.
Ao homem deve ser sempre reconhecido o direito de dispor das humanidades e das ciências, mas nunca da humanidade.
As humanidades não se dedicam apenas às pessoas. Há aqui uma desatenção por parte do autor, relativamente a um lugar comum, que já é tempo de desmontar. Todas as ciências, toda a cultura, o próprio Deus, são humanos, fazem parte das humanidades.

Anónimo disse...

No ensino escolar, as ciências sofrem ataques - promovidos pelos doutores da educação acantonados no Ministério e nas chamadas Escolas Superiores -, cuja barbaridade apenas se pode comparar à desconstrução em curso das humanidades no ensino secundário.
Quer dizer, para os tais doutores, o ideal de homem novo, à saída da escolaridade obrigatória, deverá ser um cidadão cheio de valores e virtudes, mas vazio de conhecimentos científicos e humanísticos!
Assim, não vamos lá!

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