sexta-feira, 9 de novembro de 2018
"A ARTE DE CRIAR PAIXÃO PELA CIÊNCIA," ENTREVISTA QUE DEI A JOSÉ JORGE LETRIA
Excerto do meu último livro "A Arte de criar paixão pela ciência" (Guerra e Paz, entrevista conduzida por José Jorge Letria):
"Portanto, eu tenho a preocupação de ligar a ciência à vida. A ciência só entra na sociedade se conseguir romper a questão das «duas culturas», a alegada oposição entre cultura científica e cultura literária. Eu falo com autores de livros infantis (ainda há pouco estive num debate com eles aqui na Sociedade Portuguesa de Autores), eu falo com músicos (tenho feito palestras antes dos concertos da Orquestra Metropolitana de Lisboa), eu falo com humoristas (estive num programa de fim de ano dos Gatos Fedorentos), tentando que a ciência esteja omnipresente. Pelo menos, que seja vista como uma dimensão humana, uma dimensão que não pode estar escondida, pois faz parte da imensa criatividade de que o homo sapiens é capaz. Eu fico muito contente com o facto de a Sociedade Portuguesa de Autores reconhecer que os cientistas são autores, que veja criatividade tanto nos artistas como nos cientistas. Os cientistas são um pouco como os artistas, pois também eles usam a imaginação: conseguem imaginar a imaginação da natureza. O reconhecimento da ciência é uma minha preocupação permanente. Eu acho que nunca está nada acabado neste a arte de fazer pontes 151 campo, que tem de se fazer sempre mais e que cada dia é um dia novo para poder fazer mais para aproximar a ciência à sociedade. E é por isso que, pegando na sua questão dos títulos, em escritos que abrangem uma pluralidade de assuntos, procuro ser criativo e original, suscitando o interesse.
Pegando agora na questão das pseudociências, que é um problema do mundo todo, e também é um problema português. Quando uma pessoa diz que há ignorância nos Estados Unidos e não sei mais onde, que a pseudociência aí domina, olhamos à nossa volta e vemos que a ignorância e a pseudociência estão nas nossas livrarias. As nossas livrarias estão cheias de livros de astrologia, esoterismo e auto-ajuda, que são bem mais numerosos do que os livros de ciências. Portanto, não me venham dizer que é um problema dos Estados Unidos ou de não sei onde. É, pelo menos, um problema da cultura ocidental.
A situação é paradoxal. A ciência triunfou no mundo, está por todo o lado nas nossas vidas, não podemos fazer praticamente nada sem ela; é a ciência que torna a nossa vida minimamente confortável. No entanto, apesar disso, nós não percebemos bem o que é a ciência e desconfiamos dela. Eu acho que desconfiamos porque não percebemos. A questão da confiança é esta: quando uma pessoa não conhece alguém, fica de pé atrás. As pessoas não tratam a ciência por tu. Os próprios professores de ciência, por não terem suficiente intimidade com a ciência, não conseguem pôr os miúdos a tratar a ciência por tu, uma condição básica da cultura científica.
A ciência é, mais do que um corpo de conhecimentos, um método que deve começar a ser transmitido o mais cedo possível. Ver, mexer, agarrar, examinar, interrogar o mundo, fazer perguntas ao mundo, perguntar o como e o porquê das coisas é a atitude mais natural desta vida. A nossa vida não passa de uma relação com o mundo. Acima de tudo, e em última análise, a ciência procura responder a essa pergunta que, às vezes, nós exteriorizamos, mas que os antigos gregos já fizeram há muitos séculos: «Quem somos nós?» Nós somos parte do mundo, não nos serve de muito o dualismo, a ideia de que há o mundo e de que há o homem, pois o homem é inegavelmente parte do mundo. E, cada vez mais, a ciência – daí o imparável crescimento das ciências sociais e humanas – consegue saber mais quem nós somos.
A pergunta «Quem somos nós?» irá perseguir-nos sempre, enquanto existirmos e espero bem que a nossa espécie vá existir muito tempo, pois somos a única no Universo, tanto quanto sabemos, que o consegue conhecer. Quem somos nós? Para o saber, as ciências sociais e humanas têm de dialogar com as ciências naturais e exactas. Por outras palavras, o saber tem de ser um saber alargado e um saber em diálogo permanente. Não há saber verdadeiro se não for alargado em diálogo permanente. Só assim é possível haver humanidade.
Portanto, quando falo – no meu livro mais recente, escrito com o David Marçal, A Ciência e os Seus Inimigos – de inimigos da ciência, falo também de inimigos da humanidade; no fundo, da gente que recusa o progresso, que consiste num maior e melhor conhecimento do mundo e de si próprio. Há hoje vários tipos de fundamentalistas, gente que recusa o diálogo por ter ideias já feitas, na política, na religião, decerto, mas também na filosofia. E também existem cientistas acantonados nalguns ramos da ciência.
Há fundamentalismos que não parecem que o são, mas que o são de facto. Quando se diz que uma coisa não é uma coisa, mas é aquilo que nós quisermos que essa coisa seja, eu percebo a imaginação subjacente, mas reafirmo que há a coisa. Vemos hoje correntes pós-modernas que querem minar o edifício da realidade. Sem o conseguirem, naturalmente. Nós somos reais, se batermos com a cabeça numa parede, está lá a parede e nós sentiremos a dor. Portanto, a ciência tenta explicar o que é a cabeça, tenta explicar a parede e tenta explicar a dor, até para a fazer passar mais rapidamente.
Vivemos num mundo que, apesar de toda a racionalidade de que o homem é capaz, ainda é muito irracional."
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1 comentário:
Alguém poderá aprender leis e conceitos básicos das ciências físicas sem saber matemática?
A matemática é uma disciplina considerada difícil pela maioria da população. O casamento perfeito entre a cultura literária e a cultura científica, por enquanto, ainda não é mais do que uma miragem a tremeluzir ao longe. A maioria das pessoas, como eu, têm lá em casa, bem arrumadinho na estante, "Breve história do tempo", de Stephen Hawking, mas, se porventura algum dia o folhearam, como eu, não foi por aí que passaram a achar a física mais interessante ou divertida. Certas subtilezas das ciências só estão ao alcance de pessoas muito inteligentes. Querer contornar esta dificuldade no ensino das ciências nas escolas secundárias, reduzindo a quase nada (através do programa das "aprendizagens essenciais") as matérias lecionadas, é uma gigantesca farsa que poderá a vir a ter um final muito triste!
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