sexta-feira, 20 de maio de 2016

Recrutamento de docentes de Matemática no ensino superior: um caso no ISCAL

Os subscritores, devidamente identificados em baixo, pediram a este blogue  para divulgar esta carta aberta, que de resto já está a circular na comunidade académica portuguesa:

            Com esta carta aberta, endereçada a toda a comunidade do Ensino Superior, e em particular à comunidade dos matemáticos, pretendemos tornar públicos alguns acontecimentos relativos a um concurso público, aberto em janeiro de 2015, para preenchimento de uma vaga de Professor Adjunto na área de Matemática Aplicada no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL) do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL).

            Os autores desta carta fizeram parte dos 38 candidatos ao referido concurso, não tendo nenhum de nós sido vencedor. Entre os candidatos, houve um entendimento bastante generalizado de que os resultados foram muito incorretos, tendo sido apresentadas 14 contestações à lista de ordenação provisória proposta pelo júri. Nenhuma destas contestações foi aceite, pelo que 3 dos autores desta carta interpuseram ainda recurso tutelar junto do presidente do IPL. Novamente sem sucesso. Os resultados do concurso foram homologados em dezembro de 2015.

            Em nossa opinião, este caso mostra claramente que um concurso pode satisfazer todas as normas em vigor (nomeadamente as que dizem respeito à constituição do júri e à grelha de avaliação), pode ser disputado por um grande número de candidatos com currículos de qualidade e, ainda assim, não determinar uma seleção minimamente aceitável do candidato vencedor. Por entendermos que este é um caso exemplar, decidimos divulgar os detalhes do processo, para que a comunidade universitária, e esperamos o próprio legislador, possam ter uma ideia mais precisa da forma como alguns concursos ainda decorrem. O nosso objetivo é dar um contributo para aumentar a transparência destes processos e ajudar a repensar as regras que enquadram estes concursos.

            Este é um assunto que a todos diz respeito. É sabido que o país investiu muito na formação de novos doutorados e investigadores, e que tem havido muita dificuldade em integrar esta nova geração nas instituições de ensino superior. É um lugar-comum que isto constitui um entrave à modernização e progresso das próprias instituições. Simultaneamente, e principalmente, é também um problema para os mais jovens, alguns com percursos de muito mérito, e que veem o país fechar-lhes as portas a uma vida profissional satisfatória.

            O concurso público em questão foi aberto pelo Edital Nº 19/2015 publicado no Diário da República, 2ª série, Nº 6, de 9 de janeiro de 2015, e o Júri teve a seguinte composição:

· Presidente do Júri:

- Professora Ana Cristina Arrabaça Miranda Perdigão, Vice-Presidente do Instituto Politécnico de Lisboa e Professora Coordenadora do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa;

· Vogais:

Prof. Doutor Jorge Sebastião de Lemos Carvalhão Buescu, Professor Associado com Agregação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa;
Prof. Doutor Fernando Manuel Pestana da Costa, Professor Associado com Agregação da Universidade Aberta;
Prof. Doutor Fernando José Malheiro de Magalhães, Professor Coordenador do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto do Instituto Politécnico do Porto;
Prof. Doutor Carlos Alberto Martins André, Professor Associado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa;
Prof.ª Doutora Sandra Cristina Dias Nunes, Professora Coordenadora da Escola Superior de Ciências Empresariais do Instituto Politécnico de Setúbal.

            Consta do referido Edital a abertura de um concurso para Professor Adjunto na área de Matemática Aplicada com as seguintes ponderações, previamente aprovadas pelo júri do concurso, tendo por objetivo a ordenação dos candidatos:
a)  Desempenho Técnico-Científico e Profissional na área (30 %).
b)  Avaliação da Componente Pedagógica (50 %).
c)  Outras atividades relevantes para a missão da instituição (20 %).

            Destacamos a distribuição das ponderações relativas ao desempenho Técnico-Científico (alínea a) que se divide da seguinte forma:
“a1) Atividades de divulgação científica e tecnológica e de valorização económica e social do conhecimento (moderador em palestras, seminários ou congressos, membro de corpo editorial ou de revisão/arbitragem científica de revistas técnicas, serviços à comunidade, etc.) — (15%).
a2) Coordenação de projetos científicos/desenvolvimento, orientação, arguição e participação em júris de investigação, dissertações, relatórios de estágio e projetos e organização de eventos científicos — (10%).
a3) Livros, capítulos de livros, comunicações científicas, artísticas e técnicas — (5%).”

            Para além destes critérios, é de notar que foi avaliada, na alínea c), a “Participação em órgãos e nas atividades de gestão da instituição” (10%), e a “Participação em grupos/comissões de trabalho institucionais, ações de divulgação da instituição” (10%).

            Alguns aspetos desta grelha são surpreendentes. Em particular, não encontramos nenhuma ponderação para a classificação da produção científica, nomeadamente relativa à autoria de publicações em revistas internacionais da área científica do concurso, sendo este um dos principais critérios para avaliar o mérito científico de um candidato, em qualquer concurso para docente do ensino superior. É bom relembrar que o objetivo da lei é o de selecionar candidatos com um percurso científico de qualidade. Consultando por exemplo o Decreto-Lei n.º 207/2009 de 31 de Agosto, citam-se os Artigos 15º-A (finalidade dos concursos): “Os concursos (…) destinam-se a averiguar o mérito dos candidatos, da sua capacidade profissional, da sua atividade científica, técnica e de investigação (…)” e o Artigo 30.º-A (deveres do pessoal docente): “d) Manter atualizados e desenvolver os seus conhecimentos culturais e científicos e efetuar trabalhos de investigação, numa procura constante do progresso científico e técnico e da satisfação das necessidades sociais”. Para lá do que diz a lei é isso que, reconhecidamente, melhor serve os interesses dos utentes do ISCAL e também o desenvolvimento da ciência no país. Parece-nos óbvio que esta grelha não cumpre esse objetivo.
            Concorreram 38 candidatos ao referido concurso. Da aplicação que o júri fez da grelha de avaliação resultou como primeira classificada uma candidata doutorada em Ciências da Educação que já lecionava na Instituição responsável pelo concurso há cerca de quatro anos, com a categoria de Professora Adjunta Convidada. A referida candidata não é autora de nenhum artigo científico em revista internacional na área do concurso, não participou em nenhum projeto de investigação na área da Matemática ou Matemática Aplicada (ou tão pouco em algum projeto financiado pela FCT), não é autora de nenhum livro, nem coordenou projetos ou realizou atividade editorial nas Áreas da Matemática ou Matemática Aplicada.
            Na tabela seguinte são apresentados os dados que constam nas bases de dados Web of Science e MathSciNet relativos aos trabalhos científicos da candidata vencedora do concurso, e de uma amostra dos restantes candidatos, bem como a respetiva posição na lista de ordenação final do concurso. O artigo da candidata vencedora que é mencionado na tabela é uma publicação em ata de conferência na área de Ciências da Educação.
Posição na lista de
 ordenação final
Nº artigos
Web of Science
Nº artigos
MathSciNet
Nº citações
Web of Science
1
1
0
0
2
45
34
377
5
9
9
107
7
12
16
11
8
20
17
108
10
11
11
136
11
13
18
4
18
9
8
22
26
26
32
437
Quadro 1: Posição dos candidatos na lista de ordenação final e alguns indicadores de desempenho científico.

            Para além do número de artigos e de citações destes concorrentes, gostaríamos ainda de salientar que uma pesquisa na base de dados Web of Science, revela igualmente que alguns destes publicaram em revistas de prestígio como Advances in Mathematics, Communications on Pure and Applied Mathematics, SIAM Journal on Scientific Computing, Annals of Pure and Applied Logic, SIAM Journal on Control and Optimization, Journal de Mathématiques Pures et Appliquées, Transactions of the AMS, Journal of the EMS, Proceedings of the LMS, Communications in Mathematical Physics, entre muitas outras.

Poderíamos ser levados a pensar que a candidata venceu o concurso porque as suas pontuações na componente pedagógica e em outras atividades compensaram pontuações muito fracas na componente científica. Mas isso não foi verdade. Na tabela seguinte são apresentadas as pontuações atribuídas na componente científica pelos vários membros do júri (com exceção da presidente do júri, que não atribuiu classificações) aos candidatos que constam da tabela anterior (as pontuações foram normalizadas de acordo com o procedimento definido no edital do concurso, tendo por referência uma pontuação total máxima de 100 pontos):

Posição

Avaliador 1

Avaliador 2

Avaliador 3

Avaliador 4

Avaliador 5
Média 
Componente Científica
1
18,0
19,4
28,8
20,3
27,4
22,8
2
30,0
24,2
31,2
21,5
26,0
26,6
5
27,0
21,0
31,9
16,5
41,1
27,5
7
23,0
22,6
27,4
17,7
26,7
23,5
8
18,0
33,9
28,9
20,3
31,5
26,5
10
30,0
41,9
27,4
24,1
30,8
30,8
11
11,0
22,6
34,2
15,2
15,8
19,8
18
7,0
17,7
21,9
11,4
20,5
15,7
26
17,0
21,0
26,4
17,7
16,4
19,7
Quadro 2: Pontuações atribuídas na componente científica.

Na coluna “Média Componente Científica” do quadro anterior é apresentada a pontuação final efetivamente atribuída a cada candidato na componente científica (alínea (a) da grelha de avaliação). A esta pontuação foram depois somadas as pontuações na componente pedagógica (alínea (b)) e em outras atividades (alínea (c)) para obter a pontuação final que determinou a lista de ordenação proposta pelo júri. A título de exemplo, a candidata vencedora teve uma pontuação final de 92,6/100 onde 22,8/100 dizem respeito à avaliação da componente científica. Já o segundo classificado teve 88,9/100 de pontuação final, com 26,6/100 na componente científica, etc.   
Fazemos a ressalva que não é o nosso entendimento que o processo de classificação dos candidatos deva ser uma tradução literal da sua performance nos indicadores de produção e impacto das publicações. Há certamente muitos outros aspetos a considerar, como a área de trabalho, a idade dos candidatos, a afinidade com o trabalho dos docentes da instituição que lançou o concurso, para mencionar apenas alguns. Muitos destes aspetos são subjetivos e a sua ponderação é naturalmente do âmbito de discricionariedade do júri. No entanto, no caso desta tabela classificativa, parece-nos que foram ultrapassados todos os limites razoáveis: afinal, um curriculum científico inexistente (para a área do concurso), é sempre inexistente. 
Estes argumentos foram apresentados ao júri nas 14 reclamações à lista provisória de ordenação final. Também se contestou o facto de a área científica da candidata (doutorada em Ciências da Educação) ter sido considerada pelo júri como afim da Matemática Aplicada.  
            O júri do concurso decidiu por unanimidade manter a ordenação dos candidatos e a pontuação atribuída à candidata vencedora. Em resposta à reclamação que argumentava que a tese de doutoramento da candidata não era da área do concurso, o júri declarou que “decidiu admitir a concurso todos os detentores do grau de doutor que, na sua tese de doutoramento e na sua investigação, tenham desenvolvido ou feito uso relevante de métodos matemáticos ou estatísticos, independentemente da área científica formal em que a referida tese foi originalmente classificada”. Por entendermos que era importante, fomos consultar a tese de doutoramento da candidata vencedora. Constatamos facilmente que no seu trabalho foram usados apenas métodos matemáticos e estatísticos de nível elementar, igualmente presentes em muitos trabalhos de outras áreas científicas como a Sociologia, História, Economia, Medicina ou Relações Internacionais. Na maioria das teses de doutoramento nestas áreas faz-se “uso relevante” de métodos matemáticos e estatísticos, porquanto são calculadas médias, quartis e percentagens, apresentadas tabelas de dados numéricos e gráficos de séries temporais, e efetuadas análises de variâncias, com o propósito de estudar o assunto da tese. Exatamente aquilo, e apenas aquilo, que é “feito uso” na tese da candidata. Seguindo este raciocínio chegamos à conclusão que quase todos os doutorados em Ciências Sociais e Humanas (e por maioria de razão em todas as outras áreas do saber) são doutorados em área afim da Matemática Aplicada, o que é claramente um absurdo.
            Por estas razões, na sequência da decisão do júri, três dos subscritores desta carta apresentaram ainda recurso tutelar ao Presidente do Instituto Politécnico de Lisboa. Foram apontadas, novamente, a falta de produção científica e a incorreta avaliação da área de trabalho da candidata. A 18 de Dezembro de 2015, a resposta do presidente do IPL, sustentada por pareceres do departamento jurídico, alegou a soberania do júri.
            E é assim que em 2015, uma candidata doutorada em Ciências da Educação, sem um único artigo científico publicado, nem atividade científica conhecida na área da Matemática e Matemática Aplicada, vence um concurso para Professor Adjunto de Matemática, um concurso com 38 candidatos, alguns com prémios Gulbenkian, vários investigadores FCT, alguns com currículos longos (tanto cientifica como pedagogicamente), outros extremamente promissores e muitos, muitos matemáticos que fazem investigação nestas áreas. Estes resultados foram possíveis não obstante um grande número de candidatos ter apresentado reclamações, e tentado tudo o que a lei permite para evitar este desenlace.
            Em conclusão, não nos parece que o interesse público tenha sido salvaguardado neste concurso, começando com os critérios do edital, e terminando na escolha da candidata vencedora. Em particular, tudo isto nos parece ir contra os objetivos de todo o investimento feito pelo país para desenvolver a Ciência e o Ensino Superior.
Cabe a todos nós, fazendo ou não parte do sistema universitário, contribuir para o melhor ensino superior público possível. Assim, e por último, apelamos a todos que ajudem a alertar para outras situações do mesmo género, tornando o sistema mais transparente, e aos docentes, em particular, que não aceitem colaborar em concursos com estes critérios, ou que ajam ativamente numa tentativa de os alterar.
Os signatários,
Pedro R. S. Antunes
Investigador FCT, GFM (UL)

Nuno Costa Dias
Professor Adjunto, Escola Náutica

Gilda Ferreira
Bolseira Pós-Doutoramento da FCT, LaSIGE (UL)



Rui A. C. Ferreira
Investigador FCT, GFM (UL)

Alexandre Rodrigues,
Bolseiro Pós-Doutoramento da FCT, Centro de Matemática (UP)

José Agapito Ruiz
Professor Auxiliar Convidado
Departamento de Matemática (UC)

João Filipe Lita da Silva
jfls@fct.unl.pt
Professor Auxiliar
Departamento de Matemática (FCT/UNL)
                       
                                                                       Hugo R. N. Tavares
            Investigador FCT, CAMGSD (UL)

Jorge F. D. Tiago

Bolseiro Pós-Doutoramento da FCT, CEMAT (UL)

8 comentários:

Eduardo Martinho disse...

“Assim, e por último, apelamos a todos que ajudem a alertar para outras situações do mesmo género, tornando o sistema mais transparente...”
Aqui fica de novo um alerta já antes divulgado: http://tempoderecordar-edmartinho.blogspot.pt/2015/12/escandalo-num-concurso-para-professor.html

Anónimo disse...

Parabéns pela descrição clara e objectiva da situação. Para ver se melhoramos a transparência e aumentamos a qualidade dos concursos.

Unknown disse...

Nós cá no ensino secundário público temos a soberania do director da escola secundária. Assim, docentes do ensino secundário, de todas as áreas curriculares (Matemática, Inglês, Geometria Descritiva, História, Filosofia, Biologia, etc. etc.) são avaliados no seu desempenho docente por uma educadora de infância com habilitações para o pré-escolar e complemento de formação para o 1.º ciclo do ensino básico. :::::::::::::::::: Alguns deste professores do ensino secundário têm mestrado e doutoramento (antes de Bolonha) pela Universidade de Lisboa e pela Universidade do Porto, são investigadores colaboradores na Universidade de Lisboa, têm investigação de pós-doutoramento original, etc. etc. etc.

Anónimo disse...

Bom, isto é só mais um exemplo do sistema absurdo que temos em portugal. Eu mesma já passei por vários concursos com desenlaces muito semelhantes! No ultimo concurso a que concorri na Universidade de Lisboa, fui considerada doutorada numa área não afim da Probabilidade e Estatistica porque, segundo o juri, sou doutorada em Matemática :) (e segundo o juri nao é uma area afim da Probabilidade e Estatística, de rir mas ok), mas de facto sou doutorada em probabilidade. Mas claro o concurso tinha "fotografia" e a resposta que o juri dá a quem reclama é sempre a mesma: "o juri é soberano...." Será que alguém irá um dia meter a mão nisto!?

Miguel disse...

Como é que este caso acabou? Ficou, tipo assim?

Rui disse...

Eventualmente, mas suspeito que não antes do ano 2927!

Rui disse...

Exactamente. E o número de publicações da candidata vencedora continua o mesmo: zero!

Alexandre Júlio disse...

Obrigado, colocaram aqui uma pérola para investigar. É um daqueles casos em que o "interesse público" suplanta o "direito ao esquecimento".
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