É hoje apresentado em Lisboa o livro das Edições Afrontamento intitulado "Mundial 66. Olhares", coordenado por César Rodrigues e Francisco Pinheiro, que revisita o Mundial de Futebol de há 50 anos. Eis o texto da minha contribuição (tinha 10 anos na altura!):
COMO VI O
MUNDIAL DE 1966
Para mim o
Mundial de Futebol de 1966 – meu Deus, já passaram cinquenta anos! – foi, acima
de tudo, o jogo Portugal - Coreia do Norte. Nunca me esqueci e nunca me vou
esquecer. Foi no dia 23 de Julho de 1966 no estádio Goodinson em Liverpool, perante
mais de 40 000 espectadores, pelas 15 horas da tarde, hora tanto britânica
como portuguesa (tudo isto são informações que o Google me dá com um clique
rápido, algo impensável há meio século). Eu tinha feito há pouco mais de um mês
dez anos. Gostava de futebol e era, como ainda sou hoje, embora não exerça muito, adepto da Académica de
Coimbra: via os jogos da Briosa por um binóculo de uma janela da Cumeada e assistia
a alguns treinos no campo pelado de Santa Cruz, não muito longe do que haveria
de ser o meu liceu durante sete anos (tinha entrado no Liceu Nacional de D.
João III, hoje Escola Secundária de José Falcão, precisamente em Outubro de
1965, após ter sido aprovado no exame da quarta classe e na prova de admissão
aos liceus). Para mim o jogo teve lugar
na sala de convívio anexa ao bar do quartel onde o meu pai trabalhava. Na altura a televisão era um luxo que não
abundava nas casas de família mas era partilhada nos cafés. Muitos olhos, todos eles masculinos pois o
ambiente ali era militar, estavam fixos num pequeno ecrã evidentemente a preto
e branco (a televisão a cores só haveria de aparecer uns quatro anos após a
revolução de 25 de Abril de 1974). A equipa lusa, dita dos Magriços em
homenagem aos semi-lendários “Doze de Inglaterra”, tinha na fase de grupos batido
a Hungria, a Bulgária e o favorito Brasil, num jogo rijamente disputado. Agora
era uma partida dos quartos de final e a equipa nacional batia-se contra uma
desconhecida Coreia do Norte que, surpreendentemente, tinha derrotado a poderosa
Itália.
O desconsolo da
audiência começou logo a um minuto do jogo quando um norte-coreano bateu o
guarda-redes português José Pereira. Houve quem pensasse que um golo era fácil
de recuperar, mas não tardou a vir um outro e mais outro. Aos 25 minutos de
jogo a Coreia já estava a ganhar-nos por 3-0. Mais do que isso, os coreanos
estavam de facto a jogar melhor – corriam que nem uns desalmados, lembro-me de
ver um enxame de jogadores de branco muito pequeninos e muito rápidos na tal TV
a preto e branco. Uma névoa espessa de desilusão assentou praça naquela sala.
Houve quem não quisesse ver mais. O jogo parecia acabado.
Mas não estava
acabado para Eusébio, então no auge da sua forma. O negro moçambicano, vestido
de uma camisola vermelha que na TV era cinzenta, meteu-se em brios e não se
ficou perante os brancos. Reduziria para 2-3 ainda antes de soar o apito do
árbitro, que estava todo vestido de negro de modo que a TV não lhe alterava a cor, para
terminar a primeira parte. Na segunda parte o mesmíssimo Eusébio haveria de
meter mais dois golos, para o seu companheiro do Benfica e da selecção José
Augusto concluir a vitória com uma cabeçada certeira a dez minutos do fim. O resultado
final foi 5-3, a nosso favor. Cada golo originava uma explosão de palmas e
júbilo não só na sala onde eu estava, mas também decerto nas salas congéneres
espalhadas pelo país. Todos os olhos lusitanos estavam nesse dia em Liverpool. O último golo
não era sequer preciso, pois Eusébio, que nesse jogo se tornou uma lenda,
ganhou, por assim dizer sozinho, por 4-3 aos coreanos. Os golos de Eusébio estão na Internet em
qualquer ecrã perto de si, uma vez que agora existem ecrãs coloridos por todo o
lado que servem, à vontade do freguês, todos os golos de qualquer sítio do
mundo, a qualquer hora do dia e da noite. Os
aparelhos de hoje são muito mais finos do que outrora e o jogo Portugal-Coreia
do Norte pode até ser visto a cores, ainda que um pouco desmaiadas.
As emoções mais
fortes são as que perduram perenes. Já mal me lembro da derrota nas meias
finais de Portugal, no estádio de Wembley em Londres, contra a Inglaterra, com
Eusébio banhado em lágrimas no final (as imagens podem também ser vistas na
Internet, mas eu não mais as voltei a ver). Para um miúdo de dez anos o que
ficou foi uma lição para a vida: nunca desistir, quaisquer que sejam as
circunstâncias, mesmo que o nosso nome não seja Eusébio. Recordo-me, em
particular, da rapidez com que ele, após meter a bola no fundo das redes, a ia buscar para a colocar no centro do
relvado. Eusébio só houve um, mas, se metermos qualquer golo, devemos
lembrar-nos como ele fazia: em vez de perder tempo a festejar, ia buscar a bola
à baliza, para o jogo recomeçar mais depressa.
Ah, de 1966 lembro-me
também de Madalena Iglésias e da canção “Ele e Ela” (“Sei quem ele é / Ele é bom rapaz um pouco tímido até...”),
que ficou em 13.º lugar no Concurso da Eurovisão, o outro evento televisivo que
além do futebol atraía os olhares de um país a preto e branco. Hoje
Portugal tornou-se um país colorido,
enquanto a Coreia do Norte permanece a preto e branco. É assim o tempo: passa
nuns sítios, acelerando por vezes vertiginosamente, e noutros permanece pasmado.
Carlos Fiolhais*
*Professor de Fìsica da Universidade de Coimbra
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