quinta-feira, 5 de maio de 2016

"Ó MINHA TERRA NA PLANÍCIE RASA…" (*)


Texto recebido do Prof. Galopim de Carvalho:
Há uma trintena de anos, transportei comigo, vinda do Alentejo interior, uma comadre de visita a uma filha residente em Almada. Viemos por Setúbal e, durante a subida da serra da Arrábida, esta minha amiga, que pela primeira vez saía do campo a perder de vista onde nascera e vivera, dava mostras de um certo mal-estar.
- Não sei o que tenho, sinto-me apertada. Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só cabeços. E que cabeços.
E foi assim até ao alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A partir daí, na descida para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e, quando passámos à planura, que nos conduziu ao nosso destino, ouvi-a exclamar
- Aqui, sim, já se pode ver ao longe! Já a gente respira!
Nunca mais esqueci esta visão da nossa paisagem interiorizada na mente desta minha comadre e foi a pensar nela que procurei reunir, em palavras simples, o que me foi dado aprender sobre a “planície alentejana”.
Sempre que me afasto da ficção em torno da cultura alentejana, em que o “ver ao longe” facultado pela planura das suas paisagens é um dos temas mais apetecidos e exaltados, e me concentro nos ensinamentos que a geografia ou a geomorfologia colocaram à minha disposição, interrogo-me sobre a longa e complexa história geológica da vasta superfície levemente ondulada por suaves outeiros (colinas) e abertos valados que inspirou Antunes da Silva, Florbela Espanca, José Saramago, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Vergílio Ferreira e tantos outros.
“Planície” aparece aqui entre comas porque, se bem que a palavra tenha perfeito cabimento como figura de estilo no discurso literário, não o tem na abordagem geográfica ou geomorfológica. Na origem, o termo planície, que nos chegou vindo do latim planitie, significa simplesmente superfície plana. E, em rigor, plana é a superfície da água em repouso. Como vocábulo do léxico geográfico, esta mesma palavra passou a referir uma extensão maior ou menor de terreno aplanado, de notada horizontalidade e, na maioria dos casos, a muito baixa altitude, onde a sedimentação supera largamente a erosão. Planícies são, por exemplo, a lezíria do Tejo, os campos do Mondego ou os do Sado. Ora, no âmbito desta disciplina, a chamada “planície alentejana” não corresponde minimamente a este conceito.
Para podermos abordar o conhecimento da “planície alentejana", temos necessariamente de começar por saber o que é e como se formou a mais extensa das unidades fundamentais do relevo da Península Ibérica, citada em todos os manuais de geografia por Meseta Ibérica.
Em 1825, na sequência de uma visita que fez à Península Ibérica, o geógrafo e naturalista alemão Alexander von Humbolt (1769-1859) definiu aqui uma extensa superfície planáltica, ocupando a maior parte do território, conhecida, desde então, por Meseta Ibérica. Levemente basculada de NNE para SSW, esta superfície, fundamental para a definição do relevo da maior parte de Espanha e de Portugal, resultou do arrasamento do troço ibérico da grande cadeia de montanhas elevada durante a orogenia hercínica ou varisca, entre finais do Devónico e meados do Pérmico, ou seja, entre há 380 e 280 milhões de anos (Ma).
Uma primeira evidência do começo desta aplanação, fruto de cerca de 90 milhões de anos (Ma) de erosão (durante os quais terão desaparecido quatro ou mais quilómetros de altura da montanha), já estava esboçada no Triásico superior (há 210 Ma), tendo ficado conhecida por superfície pós-hercínica ou pré-triásica.
Observável em alguns locais de Espanha, temos espectacular testemunho desta superfície de erosão na discordância angular observável na Praia do Telheiro (Vila do Bispo), onde camadas sub-horizontais do Triásico superior continental, de característica coloração vermelha (Grés de Silves, com arenitos, siltitos e, por vezes, leitos conglomeráticos) assentam sobre xistos e grauvaques do Carbónico superior marinho (Vestefaliano, com 300 Ma) pregueados e truncados pela dita superfície pós-hercínica.
Se tivermos em conta que, no Triásico superior, o território hoje ocupado pela Península Ibérica se encontrava numa latitude tropical, no interior da Pangea, a cor vermelha dos sedimentos dessa idade, bem representados em Silves, Praia do Telheiro, Santiago do Cacém, Coimbra, Águeda e Eirol (Aveiro), aponta para uma situação climática quente de tendência semiárida, susceptível de mobilizar o ferro (durante a estação húmida) e de o fixar sob a forma de óxido (na estação seca). Neste quadro climático, a superfície pré-triásica terá tido, pelo menos em parte, uma evolução próxima da da pediplanície tal com a definiu, em 1962, o geomorfólogo sul-africano Lester King (1907-1989).
Em 1889, o geofísico americano Clarence Edward Dutton (1841-1918) pôs em evidência o fenómeno natural a que deu o nome de isóstase (ou isostasia), que definiu como o equilíbrio gravítico que se estabelece entre a litosfera e a astenosfera, ou seja, camada externa do manto superior terrestre, sobre a qual assenta, mais densa e caracterizada por alguma plasticidade. À semelhança de um barco sobrecarregado cujo casco vai emergindo da água à medida que se lhe alivia a carga, também grande parte do bloco litosférico peninsular, aligeirado da carga correspondente à montanha desaparecida por erosão, se foi soerguendo (elevando).
É curioso assinalar que uma primeira abordagem ao citado equilíbrio consta do livro “Tratado dos Meteoros”, da autoria do filósofo francês Jean Bouridan (circa 1300-1360), reitor da Universidade de Paris. Este clérigo não irmanado com qualquer ordem religiosa, escreveu “A erosão torna mais leves os continentes que, aplanados, tendem a erguer-se…” o que representa uma notável antecipação ao conceito de isóstase.
Assinale-se que, enquanto o interior da península se ia elevando, as suas bordaduras (as hoje Orlas Meso-cenozóicas Ocidental e Meridional) iam-se afundando, em relação com o estiramento (adelgaçamento) e fracturação da faixa da Pangeia precursora da abertura do Oceano Atlântico. É nessas bordaduras afundadas que se irão instalar as Bacias Lusitana e Algarvia e nelas acumular milhares de metros de sedimentos resultantes da erosão da parte mais soerguida do referido bloco.
Ao longo do Jurássico e do Cretácico inferior, esta superfície em elevação isostática continuou a ser alvo de erosão mas, pelo menos numa grande parte deste intervalo, de cerca de 100 Ma, sob condições de clima quente e húmido indutoras de intensa alteração das rochas. A natureza essencialmente quártzica e caulinítica dos sedimentos terrígenos (conglomerados, arenitos e argilitos) de fácies deltaica do Cretácico inferior da Orla Meso-cenozóica aponta nesse sentido, pelo que o modelo de erosão poderá ser explicado com base no concebido e divulgado, em 1957, pelo alemão Julius Büdel (1903-1983), segundo o qual terão existido duas superfícies de aplanação, uma exposta, ou seja, a “superfície topográfica” que suportava a paisagem, sujeita a erosão pelas águas de escorrência e fluviais, e outra no subsolo, entre a capa de alteração (rególito) e a rocha sã, referida por “superfície basal”, tanto mais profunda, quanto maior tiver sido a espessura do rególito. Büdel defendia que, quando a humidade prevalece relativamente à secura, a meteorização é mais veloz do que a erosão e, assim, a espessura do rególito aumenta. Se, segundo ele, o clima evoluir no sentido da aridez, a erosão superficial torna-se mais veloz do que a meteorização das rochas, podendo, no limite, pôr a descoberto a dita superfície basal que, assim, se transforma numa superfície de aplanação. O arenito do Buçaco, que eu tive oportunidade de estudar, em 1960, em conjunto com o de Coja (o Supra-Buçaco de Orlando Ribeiro), conservados no fundo da Bacia da Lousã, discordantes sobre esta superfície, são ainda, à semelhança dos do Cretácico inferior, quartzo-cauliníticos, corroborando esta visão do geomorfólogo alemão.
Entre a idade cretácica inferior (Albiano, com base no conteúdo polínico) deste arenito e os primeiros depósitos que, por falta de elementos seguros de datação, têm sido atribuídos, de forma abrangente, ao Paleogénico (65 a 23 Ma), decorreu um grande intervalo de tempo, na ordem de três a sete dezenas de milhões de anos, durante o qual o bloco crustal correspondente à Península não parou de subir, rejuvenescendo o relevo, não só em virtude da procura do citado equilíbrio isostático, mas também como consequência do começo da colisão das placas africana e ibérica.
Os referidos sedimentos, atribuídos “grosso modo” ao Paleogénico, são correlativos deste rejuvenescimento do relevo, depositados nas planuras vizinhas. Na maioria detríticos, com destaque para as arcoses, podem ser observados de norte a sul do país, em Vale Álvaro e Vilariça (Bragança), Longroiva e Nave de Haver (Guarda), Coja (Coimbra), Cabeço do Infante (Castelo Branco), sendo de destacar, no que se refere ao Alentejo, os de Tramaga (Ponte de Sor) e Vale do Guizo (Alcácer do Sal), na base da cobertura cenozóica da grande Bacia do Tejo-Sado, e Marmelar (Vidigueira). Discordantes sobre a superfície afeiçoada no final deste grande intervalo de tempo, apontam uma evolução climática no sentido da secura, pelo que é de admitir que este afeiçoamento se tenha verificado em regime de pediaplanação.
Não estando condicionada ao nível de base geral (como acontece na chamada erosão normal de Davis), este retoque na planura da Meseta, segundo o modelo preconizado por Lester King, pode perfeitamente ter tido lugar em situação planáltica.
É, pois, a partir desta superfície paleogénica, tida, no seu compartimento a norte da Codilheira Central, como uma das superfícies de erosão mais perfeitas do mundo, consentânea com o processo de pediaplanação, que podemos definir o relevo do maciço antigo ibérico.
A compressão da Placa Africana sobre a Península Ibérica (compressão Bética do ciclo orogénico Alpino), em especial durante o Miocénico superior, conduziu a deslocamentos verticais de blocos do soco, em alguns casos na ordem das centenas de metros, através de falhas tardi-hercínicas. Deslocados entre si, como teclas de piano desniveladas, estes blocos deram origem, por exemplo, às Serras da Estrela e do Caramulo, aos planaltos transmontanos e da Guarda, às superfícies de Castelo branco, de Évora e de Beja, e a depressões, como a de Celorico, a Cova da Beira ou a que faz de substrato da grande Bacia Cenozóica do Tejo-Sado, cujo enchimento completa a parte restante desta planura que caracteriza a maior parte da paisagem alentejana.
Persistem nesta aplanação ou nos troços dela desnivelados pela referida movimentação vertical de blocos alguns relevos residuais ou de dureza, constituídos por quartzitos, sob a forma de cristas alongadas, como são, em Portugal, entre outras, as referidas como serras da Marofa, do Buçaco, de Penha Garcia, de Moradal, de Marvão e de Alcaria a Ruiva. A par destes relevos há, ainda, os “Inselberge” ou montes-ilhas graníticos, como o de Monsanto, na Beira Baixa que, embora raros, parecem testemunhar um retoque tardio nesta superfície, muito provavelmente no Vilafranquiano, de novo em regime semelhante ao que conduz à pediplanície, consentâneo com a semiaridez geralmente atribuída a este intervalo de tempo.

A “planície alentejana”
Desde há muito que a ideia segundo a qual a erosão destrói o relevo e tem por meta a aplanação a muito baixa altitude faz parte do pensamento racional. No século X, os membros de uma fraternidade de filósofos ismaelitas, conhecida por “Irmãos da Pureza” (Ikhwan al-Safa, em árabe), que se admite ter estado sediada em Bassorá, no Iraque, escreveram numa enciclopédia que nos legaram “os continentes, uma vez arrasados pela erosão, ficam ao nível do mar”.
Em finais do século XIX, William M. Davis divulgou o conceito de peneplanície como um tipo de aplanação inacabada, a relativamente baixa altitude, fruto de um longuíssimo desgaste por parte da erosão fluvial, sob clima temperado húmido. O elemento de origem latina “pene”, que escolheu para antepor à palavra “planície”, significa “quase”, pelo que, para o autor, quer dizer uma planície inacabada, em vias de o ser, cujo limite teórico, ainda não atingido, seria una superfície plana e horizontal, ao nível do mar.
São muitos os geógrafos profissionais e os livros de ensino que, entre nós, referem com mais ou menos pormenor a peneplanície alentejana e têm-no feito, não no sentido genético, de uma aplanação em vias de acabamento, desenvolvida no quadro climático preconizado por Davis, mas sim no de uma aplanação imperfeita em termos da configuração topográfica. Enquanto que para este geógrafo, o prefixo “pene” tem a conotação de algo por atingir ou por acabar, para a generalidade dos nossos estudiosos que a ela se têm referido, esse mesmo prefixo tem um sentido meramente morfológico.
Voltando à tectónica de deslocamentos verticais de bloco, referida atrás, do tipo “teclas de piano” diferentemente desniveladas. A extensão do território nacional vulgarmente referida por planície alentejana, ocupa, no essencial, duas destas grandes teclas: a superfície de Évora, mais elevada e acidentada, variando entre 350 e 300 m de altitude; e a superfície de Beja, mais baixa e mais aplanada, entre 250 e 200 m, desnivelada pela importante falha da Vidigueira e bem marcada na paisagem pelo abrupto que limita a sul a Serra de Portel.
Deixando de parte os relevos residuais emergentes destas duas superfícies, Castelo de Vide e Marvão, na de Évora, Ficalho e Alcaria a Ruiva, na de Beja, e os de natureza tectónica (outras teclas de piano de menor extensão, no interior das grandes teclas referidas), que as afectaram, entre os quais São Mamede, Monfurado, Alcáçovas, Ossa, Grândola e Portel, o essencial da morfologia de suaves outeiros e abertos valados, comum na paisagem alentejana, deve ser entendida como degradação por embutimento fluvial, ao longo do quaternário, de uma pediaplanação conseguida no Paleogénico, aperfeiçoada ao longo do tempo (superfície poligénica), desnivelada, como se disse, pela compressão Bética e finalmente retocada durante um episódio de semiaridez no Vilafranquiano, possivelmente o mesmo que desencadeou os derrames caóticos, heterométricos, conhecidos por “ranhas”, essencialmente quartzíticos e grosseiros, na Beira Baixa, e essencialmente quártzicos e menos grosseiros, no Alentejo.
(*) Florbela Espanca, no poema Minha Terra, in “Charneca em Flor”

Galopim de Carvalho


Nota. Agradeço ao Nuno Pimentel a leitura crítica do texto.

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