Texto recebido do Prof. Galopim de Carvalho:
Há uma trintena de
anos, transportei comigo, vinda do Alentejo interior, uma comadre de visita a
uma filha residente em Almada. Viemos por Setúbal e, durante a subida da serra
da Arrábida, esta minha amiga, que pela primeira vez saía do campo a perder de
vista onde nascera e vivera, dava mostras de um certo mal-estar.
- Não sei o que tenho,
sinto-me apertada. Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só
cabeços. E que cabeços.
E foi assim até ao
alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A partir daí, na descida
para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e, quando passámos à planura, que
nos conduziu ao nosso destino, ouvi-a exclamar
- Aqui, sim, já se
pode ver ao longe! Já a gente respira!
Nunca mais esqueci
esta visão da nossa paisagem interiorizada na mente desta minha comadre e foi a
pensar nela que procurei reunir, em palavras simples, o que me foi dado
aprender sobre a “planície alentejana”.
Sempre que me afasto
da ficção em torno da cultura alentejana, em que o “ver ao longe” facultado
pela planura das suas paisagens é um dos temas mais apetecidos e exaltados, e
me concentro nos ensinamentos que a geografia ou a geomorfologia colocaram à
minha disposição, interrogo-me sobre a longa e complexa história geológica da
vasta superfície levemente ondulada por suaves outeiros (colinas) e abertos
valados que inspirou Antunes da Silva, Florbela Espanca, José Saramago, Manuel
da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Vergílio Ferreira e tantos outros.
“Planície” aparece
aqui entre comas porque, se bem que a palavra tenha perfeito cabimento como
figura de estilo no discurso literário, não o tem na abordagem geográfica ou
geomorfológica. Na origem, o termo planície, que nos chegou vindo do latim planitie, significa simplesmente
superfície plana. E, em rigor, plana é a superfície da água em repouso. Como
vocábulo do léxico geográfico, esta mesma palavra passou a referir uma extensão
maior ou menor de terreno aplanado, de notada horizontalidade e, na maioria dos
casos, a muito baixa altitude, onde a sedimentação supera largamente a erosão.
Planícies são, por exemplo, a lezíria do Tejo, os campos do Mondego ou os do
Sado. Ora, no âmbito desta disciplina, a chamada “planície alentejana” não
corresponde minimamente a este conceito.
Para podermos abordar
o conhecimento da “planície alentejana", temos necessariamente de começar
por saber o que é e como se formou a mais extensa das unidades fundamentais do
relevo da Península Ibérica, citada em todos os manuais de geografia por Meseta
Ibérica.
Em 1825, na sequência
de uma visita que fez à Península Ibérica, o geógrafo e naturalista alemão
Alexander von Humbolt (1769-1859) definiu aqui uma extensa superfície
planáltica, ocupando a maior parte do território, conhecida, desde então, por
Meseta Ibérica. Levemente basculada de NNE para SSW, esta superfície,
fundamental para a definição do relevo da maior parte de Espanha e de Portugal,
resultou do arrasamento do troço ibérico da grande cadeia de montanhas elevada
durante a orogenia hercínica ou varisca, entre finais do Devónico e meados do
Pérmico, ou seja, entre há 380 e 280 milhões de anos (Ma).
Uma primeira evidência
do começo desta aplanação, fruto de cerca de 90 milhões de anos (Ma) de erosão
(durante os quais terão desaparecido quatro ou mais quilómetros de altura da
montanha), já estava esboçada no Triásico superior (há 210 Ma), tendo ficado
conhecida por superfície pós-hercínica ou pré-triásica.
Observável em alguns
locais de Espanha, temos espectacular testemunho desta superfície de erosão na
discordância angular observável na Praia do Telheiro (Vila do Bispo), onde
camadas sub-horizontais do Triásico superior continental, de característica
coloração vermelha (Grés de Silves, com arenitos, siltitos e, por vezes, leitos
conglomeráticos) assentam sobre xistos e grauvaques do Carbónico superior
marinho (Vestefaliano, com 300 Ma) pregueados e truncados pela dita superfície
pós-hercínica.
Se tivermos em conta
que, no Triásico superior, o território hoje ocupado pela Península Ibérica se
encontrava numa latitude tropical, no interior da Pangea, a cor vermelha dos
sedimentos dessa idade, bem representados em Silves, Praia do Telheiro,
Santiago do Cacém, Coimbra, Águeda e Eirol (Aveiro), aponta para uma situação
climática quente de tendência semiárida, susceptível de mobilizar o ferro
(durante a estação húmida) e de o fixar sob a forma de óxido (na estação seca).
Neste quadro climático, a superfície pré-triásica terá tido, pelo menos em
parte, uma evolução próxima da da pediplanície tal com a definiu, em 1962, o
geomorfólogo sul-africano Lester King (1907-1989).
Em 1889, o geofísico
americano Clarence Edward Dutton (1841-1918) pôs em evidência o fenómeno
natural a que deu o nome de isóstase (ou isostasia), que definiu como o
equilíbrio gravítico que se estabelece entre a litosfera e a astenosfera, ou
seja, camada externa do manto superior terrestre, sobre a qual assenta, mais
densa e caracterizada por alguma plasticidade. À semelhança de um barco
sobrecarregado cujo casco vai emergindo da água à medida que se lhe alivia a
carga, também grande parte do bloco litosférico peninsular, aligeirado da carga
correspondente à montanha desaparecida por erosão, se foi soerguendo
(elevando).
É curioso assinalar
que uma primeira abordagem ao citado equilíbrio consta do livro “Tratado dos
Meteoros”, da autoria do filósofo francês Jean Bouridan (circa 1300-1360),
reitor da Universidade de Paris. Este clérigo não irmanado com qualquer ordem
religiosa, escreveu “A erosão torna mais leves os continentes que, aplanados,
tendem a erguer-se…” o que representa uma notável antecipação ao conceito de
isóstase.
Assinale-se que,
enquanto o interior da península se ia elevando, as suas bordaduras (as hoje
Orlas Meso-cenozóicas Ocidental e Meridional) iam-se afundando, em relação com
o estiramento (adelgaçamento) e fracturação da faixa da Pangeia precursora da
abertura do Oceano Atlântico. É nessas bordaduras afundadas que se irão
instalar as Bacias Lusitana e Algarvia e nelas acumular milhares de metros de
sedimentos resultantes da erosão da parte mais soerguida do referido bloco.
Ao longo do Jurássico
e do Cretácico inferior, esta superfície em elevação isostática continuou a ser
alvo de erosão mas, pelo menos numa grande parte deste intervalo, de cerca de
100 Ma, sob condições de clima quente e húmido indutoras de intensa alteração
das rochas. A natureza essencialmente quártzica e caulinítica dos sedimentos
terrígenos (conglomerados, arenitos e argilitos) de fácies deltaica do
Cretácico inferior da Orla Meso-cenozóica aponta nesse sentido, pelo que o
modelo de erosão poderá ser explicado com base no concebido e divulgado, em
1957, pelo alemão Julius Büdel (1903-1983), segundo o qual terão existido duas
superfícies de aplanação, uma exposta, ou seja, a “superfície topográfica” que
suportava a paisagem, sujeita a erosão pelas águas de escorrência e fluviais, e
outra no subsolo, entre a capa de alteração (rególito) e a rocha sã, referida
por “superfície basal”, tanto mais profunda, quanto maior tiver sido a
espessura do rególito. Büdel defendia que, quando a humidade prevalece
relativamente à secura, a meteorização é mais veloz do que a erosão e, assim, a
espessura do rególito aumenta. Se, segundo ele, o clima evoluir no sentido da
aridez, a erosão superficial torna-se mais veloz do que a meteorização das
rochas, podendo, no limite, pôr a descoberto a dita superfície basal que,
assim, se transforma numa superfície de aplanação. O arenito do Buçaco, que eu
tive oportunidade de estudar, em 1960, em conjunto com o de Coja (o Supra-Buçaco
de Orlando Ribeiro), conservados no fundo da Bacia da Lousã, discordantes sobre
esta superfície, são ainda, à semelhança dos do Cretácico inferior,
quartzo-cauliníticos, corroborando esta visão do geomorfólogo alemão.
Entre a idade
cretácica inferior (Albiano, com base no conteúdo polínico) deste arenito e os
primeiros depósitos que, por falta de elementos seguros de datação, têm sido
atribuídos, de forma abrangente, ao Paleogénico (65 a 23 Ma), decorreu um
grande intervalo de tempo, na ordem de três a sete dezenas de milhões de anos,
durante o qual o bloco crustal correspondente à Península não parou de subir,
rejuvenescendo o relevo, não só em virtude da procura do citado equilíbrio
isostático, mas também como consequência do começo da colisão das placas
africana e ibérica.
Os referidos
sedimentos, atribuídos “grosso modo” ao Paleogénico, são correlativos deste
rejuvenescimento do relevo, depositados nas planuras vizinhas. Na maioria
detríticos, com destaque para as arcoses, podem ser observados de norte a sul
do país, em Vale Álvaro e Vilariça (Bragança), Longroiva e Nave de Haver
(Guarda), Coja (Coimbra), Cabeço do Infante (Castelo Branco), sendo de
destacar, no que se refere ao Alentejo, os de Tramaga (Ponte de Sor) e Vale do
Guizo (Alcácer do Sal), na base da cobertura cenozóica da grande Bacia do
Tejo-Sado, e Marmelar (Vidigueira). Discordantes sobre a superfície afeiçoada
no final deste grande intervalo de tempo, apontam uma evolução climática no
sentido da secura, pelo que é de admitir que este afeiçoamento se tenha
verificado em regime de pediaplanação.
Não estando
condicionada ao nível de base geral (como acontece na chamada erosão normal de
Davis), este retoque na planura da Meseta, segundo o modelo preconizado por
Lester King, pode perfeitamente ter tido lugar em situação planáltica.
É, pois, a partir
desta superfície paleogénica, tida, no seu compartimento a norte da Codilheira
Central, como uma das superfícies de erosão mais perfeitas do mundo,
consentânea com o processo de pediaplanação, que podemos definir o relevo do
maciço antigo ibérico.
A compressão da Placa
Africana sobre a Península Ibérica (compressão Bética do ciclo orogénico
Alpino), em especial durante o Miocénico superior, conduziu a deslocamentos
verticais de blocos do soco, em alguns casos na ordem das centenas de metros,
através de falhas tardi-hercínicas. Deslocados entre si, como teclas de piano
desniveladas, estes blocos deram origem, por exemplo, às Serras da Estrela e do
Caramulo, aos planaltos transmontanos e da Guarda, às superfícies de Castelo
branco, de Évora e de Beja, e a depressões, como a de Celorico, a Cova da Beira
ou a que faz de substrato da grande Bacia Cenozóica do Tejo-Sado, cujo
enchimento completa a parte restante desta planura que caracteriza a maior parte
da paisagem alentejana.
Persistem nesta
aplanação ou nos troços dela desnivelados pela referida movimentação vertical
de blocos alguns relevos residuais ou de dureza, constituídos por quartzitos,
sob a forma de cristas alongadas, como são, em Portugal, entre outras, as
referidas como serras da Marofa, do Buçaco, de Penha Garcia, de Moradal, de
Marvão e de Alcaria a Ruiva. A par destes relevos há, ainda, os “Inselberge” ou
montes-ilhas graníticos, como o de Monsanto, na Beira Baixa que, embora raros,
parecem testemunhar um retoque tardio nesta superfície, muito provavelmente no
Vilafranquiano, de novo em regime semelhante ao que conduz à pediplanície,
consentâneo com a semiaridez geralmente atribuída a este intervalo de tempo.
A “planície
alentejana”
Desde há muito que a
ideia segundo a qual a erosão destrói o relevo e tem por meta a aplanação a
muito baixa altitude faz parte do pensamento racional. No século X, os membros
de uma fraternidade de filósofos ismaelitas, conhecida por “Irmãos da Pureza” (Ikhwan
al-Safa, em árabe), que se admite ter estado sediada em Bassorá, no Iraque,
escreveram numa enciclopédia que nos legaram “os continentes, uma vez arrasados
pela erosão, ficam ao nível do mar”.
Em finais do século
XIX, William M. Davis divulgou o conceito de peneplanície como um tipo de
aplanação inacabada, a relativamente baixa altitude, fruto de um longuíssimo
desgaste por parte da erosão fluvial, sob clima temperado húmido. O elemento de
origem latina “pene”, que escolheu para antepor à palavra “planície”, significa
“quase”, pelo que, para o autor, quer dizer uma planície inacabada, em vias de
o ser, cujo limite teórico, ainda não atingido, seria una superfície plana e
horizontal, ao nível do mar.
São muitos os
geógrafos profissionais e os livros de ensino que, entre nós, referem com mais
ou menos pormenor a peneplanície alentejana e têm-no feito, não no sentido
genético, de uma aplanação em vias de acabamento, desenvolvida no quadro
climático preconizado por Davis, mas sim no de uma aplanação imperfeita em
termos da configuração topográfica. Enquanto que para este geógrafo, o prefixo
“pene” tem a conotação de algo por atingir ou por acabar, para a generalidade
dos nossos estudiosos que a ela se têm referido, esse mesmo prefixo tem um
sentido meramente morfológico.
Voltando à tectónica
de deslocamentos verticais de bloco, referida atrás, do tipo “teclas de piano”
diferentemente desniveladas. A extensão do território nacional vulgarmente
referida por planície alentejana, ocupa, no essencial, duas destas grandes
teclas: a superfície de Évora, mais elevada e acidentada, variando entre 350 e
300 m de altitude; e a superfície de Beja, mais baixa e mais aplanada, entre
250 e 200 m, desnivelada pela importante falha da Vidigueira e bem marcada na
paisagem pelo abrupto que limita a sul a Serra de Portel.
Deixando de parte os
relevos residuais emergentes destas duas superfícies, Castelo de Vide e Marvão,
na de Évora, Ficalho e Alcaria a Ruiva, na de Beja, e os de natureza tectónica
(outras teclas de piano de menor extensão, no interior das grandes teclas
referidas), que as afectaram, entre os quais São Mamede, Monfurado, Alcáçovas,
Ossa, Grândola e Portel, o essencial da morfologia de suaves outeiros e abertos
valados, comum na paisagem alentejana, deve ser entendida como degradação por
embutimento fluvial, ao longo do quaternário, de uma pediaplanação conseguida
no Paleogénico, aperfeiçoada ao longo do tempo (superfície poligénica),
desnivelada, como se disse, pela compressão Bética e finalmente retocada
durante um episódio de semiaridez no Vilafranquiano, possivelmente o mesmo que
desencadeou os derrames caóticos, heterométricos, conhecidos por “ranhas”,
essencialmente quartzíticos e grosseiros, na Beira Baixa, e essencialmente
quártzicos e menos grosseiros, no Alentejo.
(*) Florbela Espanca,
no poema Minha Terra, in “Charneca em Flor”
Galopim de Carvalho
Nota. Agradeço ao Nuno
Pimentel a leitura crítica do texto.
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