quinta-feira, 19 de maio de 2016

CRISE NO CASTELO DA CULTURA OU A UNIVERSIDADE EM RUÌNAS


Moisés de Lemos Martins  é professor na Universidade do Minho e director do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Conheci-o através dos seus demolidores artigos contra a gestão anterior da FCT, que tentou destruir boa parte da ciência em Portugal, designadamente parte das ciências sociais e humanas, usando um ignominioso processo que de "avaliação" só tinha o nome. Conheci-o pessoalmente por ter partilhado com ele uma sessão das Novas Conferências do Casino, no casino Estoril, onde falámos, cada um do seu ponto de vista, de ciência e cultura na sociedade contemporânea (o filósofo Miguel Real chamou no final a atenção para o facto de se ter assistido a um diálogo, raro entre nós, entre as teses da modernidade e da pós-modernidade) .  No ano passado organizou na sua universidade um excelente encontro sobre "Comunicação e Luz", integrado no Ano Internacional da Luz, do qual em breve sairão as actas (estive lá e escrevi um contributo sobre "a luz como fenómeno e metáfora") .

Só agora tive oportunidade de ler o seu livro de 2011 (Grácio Editores e Universidade do Minho), "Crise no Castelo da Cultura", Com o subtítulo "Das Estrelas para os Ecrãs" (a capa mostra a observação dos céus mas, estando sobreposta uma mão digital, que levanta ambiguidade: será o céu ou um computador, serão estrelas ou simplesmente um ecrã?). O livro está acessível em pdf na integra aqui (a Universidade do Minho tem sido campeã na afixação digital dos seus trabalhos). O livro é uma concatenação de ensaios do autor, convenientemente reescritos e arrumados. São  apresentados os estudos culturais, as ciências da comunicação, a modernidade, a relação entre cultura, tecnologia e democracia, e o imaginário social criado pelos media). Apesar de ter um aparato académico, com numerosas citações e notas de pé de página, o livro, de tão bem escrito que está, lê-se com agrado, permitindo a um leitor como eu, que está mais de fora dos chamados "estudos culturais" e das  "ciências da comunicação" perceber melhor os grandes temas que atravessam essas áreas. O título do livro é explicado logo na Introdução, com  uma citação de Paul Virilio, o filósofo e urbanista francês que tem criticado insistentemente o império da  informática (confesso que, sendo eu físico computacional, gosto de ler os críticas filosóficas a esse império). Moisés Martins partilha da inquietação de Virilio, a informática veio lançar perigo sobre as as relações humanas ("os ecrãs são ligações frias, que nos desligam do calor dos corpos" e a cultura do ecrã é "a expressão de uma comunidade fria", escreve ele). A cultura, a sociedade, estão em crise com a omnipresença a imagem, do virtual e do número. O mundo surge fragmentado, o futuro incerto.  Embora eu não partilhe do pessimismo pós-moderno acho que a modernidade veio trazer uma sociedade nova, onde espreita o perigo. Mas, como o poeta alemão Hoelderlin escreveu (morei em Frankfurt, na Alemanha, na rua de Hoelderlin). penso que "onde espreita o perigo, surge também  a salvação" Não se trata aliás de um problema novo, a tecnologia sempre veio alterar a sociedade., desde o fogo e a cozinha na pré-história até às máquinas a vapor e as máquinas eléctricas, na Revolução Industrial.

Queria destacar a parte que mais me sobressaltou na leitura. Nas pp. 150 e 151. o autor aborda desassombradamente o estado actual da Universidade, não apenas portuguesa mas mundial. Na secção intitulada "A Universidade no corrupio da notícia" lê-se que as universidades, que deviam ser o lugar da reflexão, que exige tempo, transformaram-se em sítios de marketing, procurando a todo o custo visibilidade mediática simplesmente para sobreviver ou mesmo para aumentar o seu "negócio". As aulas passaram a imitar a publicidade. Tudo passou a ser quantificado tal como num "business plan", sendo os docentes e investigadores "recursos humanos". A investigação tem procurado, dados os constrangimentos externos e alguma patetice interna, dirigir-se ao aplicado em detrimento do fundamental (esquecendo que a investigação fundamental... é fundamental!). Cito a voz  clarividente de Moisés Martins (itálicos meus, para realçar algumas das suas ideias. que eu partilho):
"É verdade, há muito que a Universidade passou a ser pensada para alunos médios. E a esta opção estratégica corresponde a ideia de professores igualmente medianos. Talvez radique aí, aliás, a razão da sistemática campanha de desvalorização do pensamento nas instituições de ensino superior. A ideia de índice de produtividade e a permanente chamada ao pedagogismo burocratizam e infantilizam os professores. Uma e outra ideia traduzem uma concepção sensaborona da «excelência» e da «qualidade». Uma e outra não têm a mais pequena grandeza: não têm exigência ética, nem o rosto nem a razão de professores e alunos. O que aí é estimulado são as sensibilidades medianas, que permanecem ligadas a valores tradicionais indiscutíveis, sejam eles éticos, morais, narrativos, pedagógicos e científicos, repetindo até à exaustão aquilo que, sem resistência, é admitido por todos. 
Pensado para alunos e professores médios, também na sala de aula o ensino superior se torna, entretanto, melancólico: nenhuma gravidade, nenhuma preocupação pelo estado a que chegámos; uma cada vez mais acentuada impossibilidade para intervir no curso dos acontecimentos; e o pensamento de cócoras, em adejo vão de pássaro desplumado.
Uma aula, hoje, já não é um exercício do olhar. Dificilmente alguma coisa nela exercita os olhos para a calma, dificilmente alguma coisa nela agiliza para um passo de dança. Um aula, hoje, deve contar com marcações regulares, uma espécie de soluços narrativos, com sucessivas rajadas de acetatos e slides. E também pode passar pela conexão a uma espécie de sistema de rega automática, gota-a-gota, com a voz do professor dobrada em fundo pelas imagens de um powerpoint. Nas salas de aula generalizou-se o estilo comercial, num caso o estilo do spot, noutro o do filme de promoção, modos distintos para um mesmo objectivo: a busca da comunicação imediata e a proposta de um sentido à maior velocidade. As aulas não podem, de facto, desmerecer na comparação com o ritmo da comunicação publicitária. Dir-se-ia que exercitar o olhar para a calma e agilizar o pensamento para um ritmo de dança, tornam uma aula lenta, aborrecida, para a qual já não há paciência.  
Afunda-se o pensamento, e com ele, é o próprio ideal académico que se afunda. Ou seja, afunda-se a Universidade a golpes de melancolia. Pela minha parte, todavia, gostaria de contrapor à melancolia, a essa sereia estética que se satisfaz em diletantismo descomprometido, o critério ético do desassossego crítico. Ou seja, vejo a Universidade como um lugar de liberdade irrestrita, como o lugar de uma democracia a vir. Acima de tudo, a Universidade encarna para mim um princípio de resistência crítica e uma força de dissidência, comandados ambos por aquilo a que Jacques Derrida  chama «uma justiça do pensamento». Penso que é essa, aliás, a missão da Universidade. Cabe-lhe, como finalidade última, a salvaguarda das possibilidades da (a)ventura do pensamento, ou seja, cabe-lhe fazer do ensino e da ciência uma ideia, sem a qual o presente é uma pura forma de onde se ausentou toda a potência".
Posso não acompanhar o autor noutros trechos da sua obra próxima dos autoresv pós-modernos (por exemplo, a pós-modernidade revelou-se uma crítica, muitas vezes ignorante, não apenas dos excessos e perversões da ciência mas também da própria ciência) mas  não podia estar mais de acordo quanto ao que ele diz da Universidade. "Universidade em ruínas" já lhe chamaram.

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